11.3.23

Coluna social de um lugar nenhum

Rautosco Ó de Liveira anda cabreiro. O nome de sua mulher, Rita, ecoa pela cidade. Rita linda, Rita linda, ouve-se de norte a sul. Ficou orgulhoso no início, e enciumado a partir de uma certa hora. Abriu-se com um amigo e prestou atenção no conselho: tome a Ritalina, meu caro, e relaxe e goze. Rautosco, injuriado, rompeu com aquele maldito. Além de não saber falar o nome de sua mulher, fez aquela alusão de que o seu problema era sexual.

 

Cornélio sofreu uma vida com o nome. De Cornélio a corno é um pulo, o que lhe custou uma adolescência terrível. Mas a maturidade chega, e com ela Cornélio esqueceu as bobagens da juventude. Virou um intelectual respeitado na pequena cidade. Do alto de sua sabedoria, não poupou os ignaros, o que alguns viram como uma espécie de vingança, uma atitude mesquinha, de gente mal resolvida. Enfim, a vida caminhava como sempre caminha, uns fazendo juízo dos outros, falando pelas costas, mantendo relações cordiais no momento de encontros. Até que... No bar da praça, um mocinho humilde, desses que vivem na periferia, mas gostam de frequentar o centro, manter amizade com os ricos, enfim, esse moço soltou que seu pai estava com um trombone nas veias. Cornélio não se aguentou, arregaçou as mangas, vestiu a arrogância costumeira e corrigiu o jovem: “Trombose, querido, trombose”. O rapaz pegou o celular e ligou o vídeo. O pai esticava a perna e dela saía o som de um trombone muito bem tocado, aliás, tão bem tocado que a turma da rua passou a chamar as pernas do velho de Raul de Souza. Cornélio ficou com cara de tacho. Primeiro por ter sido humilhado por um pé descalço, depois por não ter ideia de quem era Raul de Souza. Voltaram a chamá-lo de corno, e daí em diante doeu como nunca.

 

Cilene ficou em silêncio e mascou o chiclete como se tirasse leite das pedras. Dividia sua atenção entre mascar e ouvir. O chiclete é um negócio incrível, ela pensava. No início é doce, depois vai perdendo a doçura, mas, quando menos se espera, um docinho discreto volta à boca. Decerto ouvia menos do que deveria. Ainda assim entendia as intenções do senhor seu chefe. Quando ele deu uma pausa para beber água e encher a xícara de café velho, ela tirou a goma da boca – naquele momento sem doce de tudo – e a pregou na testa do homem. Deu as costas ao mal-intencionado e foi embora numa alegria com sabor de melancia.

 

Ifigênia ganhou o porco na rifa. Havia comprado o bilhete no intuito de ajudar a igreja, que usaria o dinheiro para adquirir mantimentos para os desvalidos de sempre. Ifigênia apostou que não ganharia o sorteio, pois nunca ganhou nada na vida. Quer dizer, ganhou o que o povo chama de pé na bunda. Melhor seria que dissessem levou um pé na bunda, mas preferiam usar, para azar do verbo, ganhar. Azar dela também, pois nunca ganhou nada e, quando ganhou, ganhou um porco. O que faria com um porco? Onde guardaria o porco? Quem sabe o devolvia à igreja e sugeria que fizessem nova rifa ou o matassem e dessem aos que se beneficiariam com o dinheiro arrecadado? Mas isso seria desprezar a sorte, essa que nunca a visitava. Comprou uma coleira – uma coleira! – e foi buscar o bicho. Era uma leitoa vistosa, que Ifigênia não sabia dizer se pronta para o abate. Ou para a reprodução. Não entendia nada de porcos. Ou por outra, não entendia nada a não ser de levar ou, vá lá, ganhar pé na bunda. Nisso era escolada, tinha título de doutora. O homem riu da coleira. Prontificou-se a entregar a porquinha onde quer que Ifigênia quisesse. Ela então pediu que ele a deixasse na porta da quitinete do Hermes. Que levasse junto um bilhete. “Hermes, seu porco vegano, cuida que a filha é tua.” Ifigênia voltou para casa feliz por ter ganhado alguma coisa na vida. A sorte da vingança lhe sorriu. Ou gargalhou.


O prefeito é um entojo, diz a voz popular. Por que votaram nele, ninguém sabe explicar. O outro, o outro era... O outro candidato, pelo jeito, não tinha empatia. Votaram no entojado. Alguns se mandaram para a roça, outros foram visitar os filhos na capital, sem contar os que viajaram para a Europa, enfim, deram um jeito de ficar bem longe da cidade. Houve de tudo, dependendo das possibilidades de cada um. Os despreocupados ou sem condição teriam de conviver com a situação pelos quase mil e quinhentos dias do mandato. Foi quando a Ritinha, casada com o Rautosco, teve a ideia de a população se aglomerar toda manhã à porta da casa do prefeito e cantar músicas de protesto, gritar palavras de ordem, enfim, chatear bastante quem os vinha chateando e, em nada sendo feito, assim continuaria. Se tudo desse certo, ele renunciaria e, descobrindo-se pessoa não grata, se mandaria da cidade. Se tudo desse certo... mas não deu. Quer dizer, deu. O prefeito não aguentou uma semana e renunciou. O vice, moço bom, apesar de se mostrar em breve péssimo administrador, tomou posse e todos viveram felizes para sempre. Menos Rautosco e Ritinha. Ele não engolia aquela história de os conterrâneos acharem a Rita linda. Não só achavam, anunciavam aos quatro ventos. Com essa dor, o enciumado surtou no meio do povo, foi internado e não passa muito bem. Ritinha agora é política, não tem tempo para assuntos domésticos e diz que entrega sem medo o marido aos cuidados do SUS.

6 comentários:

Patrícia Pessôa disse...

Adorei sua coluna social. Ri demais do Cornélio❤️

Cesar Cardoso disse...

Quando começou a tocar Raul de Souza na crônica eu botei na minha vitrola também. Recomendo.

Abraços.

Nilma Lacerda disse...

Impagáveis, esses personagens não da crônica, mas de contos. Supimpa, diria, mas a origem do nome é controversa e não quero meter meus bugalhos no meio dos seus alhos. Sem conotação sexual, por favor. Por favor, também, que tal mudar de lugar, e ir para a coluna social? Assim mesmo, de lugar nenhum. Estupendo. De verdade, sem crônica ou outro lugar.

No Osso disse...

Paçoca, César e Nilma, obrigado pela leitura. Paçoca, era pra rir mesmo. César, quem sabe um desavisado, ao ler esse nome, Raul de Souza, não corra a uma das plataformas de música para conhecê-lo? Nilma, são um pouco contos mesmos, cenas do interior fantástico.

silvana guimarães disse...

Excelente, Alexandre. Delirei (e ri muito) com a leitura.

Imagina: meu bisavô paterno achava Cornélio um nome tão lindo, que batizou dois filhos assim: Cornélio & Cornélia. Ah, a Cornélia era a mãe do poeta Emílio Moura.

Um beijo!

No Osso disse...

Silvana, o pai do Caio Maciel também era Cornélio. Eu disse a ele que na família de meu pai, na qual houve João, Joaquim (meu pai), Gregório, Manuel, Ernesto e Lupércio, não houve Cornélio, um nome bonito. E eu conheço uma Cornélia e uma Cordélia.
Obrigado pela leitura, querida.