19.6.23

Futuros

 

O futuro começou ontem

Em entrevista a Daniel Prado (BBC News Brasil), o indígena ticuna Alex Rufino contesta a visão de que, após a queda de um avião, a sobrevivência de quatro crianças indígenas em floresta densa da Colômbia teria sido um milagre. Ao se afirmar isso, ele pondera, não se toma a perspectiva de quem nasce íntimo da floresta, portanto protegido por ela. Rufino nos oferece uma sabedoria alternativa, e nela estão tanto o aprendizado corriqueiro (o que comer, como se proteger de animais) quanto a teia espiritual que atua no sentido de dar bom destino àqueles que se encontram à deriva.

Nós, urbanos, perdemos dia a dia o contato com o passado. Nossa sede é de futuro, acreditando que a colheita brota do nada. Estamos ansiosos pela inteligência artificial – capaz, dizem alguns, e não nos importamos muito com isso, de ceifar a vida humana da face da terra –, do mesmo modo com que esperamos o novo modelo do carro ou do relógio que medirá as horas e nosso batimento cardíaco e que talvez nos faça, durante o sono, virar de lado para facilitar a respiração. Nossa fé é que o passado esteja capsulado nas traquitanas do futuro, portanto não precisamos olhar para trás, um tempo esquecível, morto.

Não sairíamos vivos da floresta, mas os indígenas têm sobrevivido não é de hoje ao nosso mundo, que lhes é hostil. Não só hostil, inimigo. Destruímos quase tudo que era deles, cabendo-nos agora, em respeito, deixar-lhes (aos poucos restantes) as terras que cuidam e preservam desde muito antes de uma formalidade constitucional. Podemos ir além, despir-nos de nossa soberba e aprender com a sabedoria milenar que cultivam. Um pouco mágica? Bastante, por isso potente. Na entrevista de Rufino, ele diz que a mãe das crianças indígenas, morta no acidente, espalhou-se em espírito pela floresta e ajudou seus filhos a sobreviver aos quarenta dias.


O futuro terminou ontem

Eu não a conhecia, na realidade, jamais havia ouvido falar seu nome. Portanto o anúncio de sua morte poderia ter me passado despercebido ou me custado apenas o acionamento de um daqueles botões de solidariedade da rede social. Mas não. Um querido amigo, logo de manhã, começou a dividir conosco seu luto, seu abandono. Esse amigo, além de livreiro, é poeta e perdia uma amiga também poeta. Logo, outros conhecidos meus também se manifestaram. A poeta que perdeu o futuro tinha a idade de meu filho mais velho, jovem demais. Eu não a conhecia, repito, mas a dor daqueles que a perderam me feriu igualmente e de tal modo que o dia todo pensei sobre aquela morte. Talvez o fato de ser uma poeta torne pior o que já é terrível – a morte de uma jovem. Morreu uma jovem justo agora que precisamos dos que carregam os grãos do passado até o futuro, assim como os indígenas, assim como as poetas.

2 comentários:

Adriane Garcia disse...

É isso. Tudo tão irrefletido. A IA não se constituirá em ser desejante, apenas em desejo dos seres desejantes. De que adianta produzir se não houver quem deseje o que é produzido? Quanto aos indígenas, eles são os mestres do futuro, sigamo-los ou não.

Rodrigo Leste disse...

Excelente reflexão, em tom coloquial e palatável, sobre o desmantelo do atormentado ser humano contemporâneo, urbano, iludido com as perspectivas de um futuro que pode ser desastroso. A perda de nossa conexão com o passado (e nossos antepassados) é clara demonstração da cegueira espiritual de nossa civilização. Bravo, Xandão!