24.2.25

Enfim, o verão

 O tão esperado verão chegou.

Tiramos da gaveta a roupa de praia, o protetor solar, a sede de cerveja, caipirinha e pilantragem e vamos tratar de desfrutar dessa deliciosa estação.

Encontrei minha amiga Solange e, mal falei seu nome, ela me interrompeu, não se chama mais Solange, está brigada com o sol. É agora Ange, mas prefere ser chamada de Anja. O que te aconteceu, menina? Ela resolveu, no calor do meio-dia, refrescar-se nas águas do mar. Três horas depois, voltou para casa cheia de hematomas, como se houvesse levado uma surra. Vai entrar em demanda contra a prefeitura por não instalar ar-condicionado naquelas areias escaldantes. Revoltou-se quando tentei lhe explicar que isso seria impossível e me mandou ver o que fazem os árabes no Catar. Não sei o que fazem, e ela tampouco esclareceu. Fechou a cara e me deixou a ver navios. Aliás, navios lotados, em debandada do inferno.

Mas isso é pouco diante do ocorrido com um casal amigo. Começaram a se beijar, a se tocar, a se querer com toda a luxúria do desejo, reforçada por uma segunda intenção talvez até mais forte: ficarem nus para amenizar o calor. Não funcionou. Resolveram então sacar a pele. Nem assim. Se desfizeram das carnes, preservando, no início, o coração. Mas como dele também emanava um outro tipo de calor, o dispensaram igualmente. Esqueléticos, sem suas formas de mútua atração, não se diferenciavam um do outro. Assim, não chegaram aos finalmentes, convencidos de que seria ou masturbação, o que não condizia com a idade, ou necrofilia, o que apontaria uma psicopatia grave.

Vi com meus olhos umedecidos – não de lágrimas, mas de suor – um jovem derreter-se. Caminhávamos pela Atlântica, ele indo pro Leme, eu, por motivos que não vêm ao caso, fugindo de lá. À medida que nos aproximávamos, ele se liquefazia e começava a evaporar. Quando cruzamos um com o outro, só lhe restava de concreto o pensamento. Um pensamento, aliás, em alto e bom som. Não reclamava do calor, mas desses tempos em que nem podia mais ser machista em paz.

Diante de tanta bizarrice, pensei em salvar o mundo. Nosso presidente poderia convidar o homem-laranja para desfrutar de um verão tropical. O convite seria politicamente incorreto – oferecendo ao visitante mulatas, escravos para transportá-lo em liteiras, índios capazes de dar, em troca de espelhos, caça, ouro, mulheres –, impossível de ser recusado por tipo desprezível como o convidado. Logo que chegasse ao paraíso, correria para a praia e, em um segundo, iria de laranja a vermelho, de vermelho a roxo, de roxo a esturricado, de esturricado a, como diriam os jornais do dia seguinte, uma coisa parecida a uma lenha sendo levada pelas ondas frias de Copacabana.

Não posso me perder em fantasias, então volto a pensar com serenidade nas delícias do verão. Nas palavras do Foguinho Inimigo, meu colega de copo, bons tempos eram aqueles em que o calor carioca, em seus piores momentos, se assemelhava ao do Saara. Agora, quando fazem essa comparação, é porque deu uma refrescada, bateu um vento. Estou pronto para discordar, quando Ian, nosso estimado garçom, deixa a cerveja na mesa depois de encher nossos copos. Pô, menino, essa tá quente. Impossível, ele rebate, ela saiu da geladeira vestida de noiva, a ponto de congelar. Três passos entre o freezer e a mesa transformaram o vinho em água vulcânica. O Anticristo está solto.

Ah, como é bom o verão! Que assim continue.

Derrubemos florestas.

Tiremos petróleo da foz da bacia do Amazonas.

Ergamos edifícios.

10.2.25

Finícios

Não, meu leitor, não quis escrever fenícios, de quem quase nada saberia falar. Inventei uma palavrinha (não o alfabeto), se é que inventei, haja vista que não há muita criatividade em juntar o fim e o início.

Essa pequena pérola de gosto duvidoso me ocorreu ao me dar conta de que ainda em janeiro já havia perdido um primo, visto a padaria que frequentei por vinte e oito anos ser fechada e, como se não bastasse, assistido ao Trump voltar à presidência dos EUA, agora mais poderoso e sem a preocupação de esconder seus pendores autoritários, fascistas.

Meu primo está morto. Ele – preciso contar a vocês, por favor, escutem, mesmo sem interesse – nasceu em São Paulo e jovenzinho começou a passar férias na minha cidade natal. Nos tornamos amigos. Eu o invejava não só por ele ser bonito, mas por também ser desembaraçado. Uma vez, fomos tomar um ônibus e, mal chegamos à rodoviária, ele já conversava com uma menina e, mais que isso, dava uma mordida na maçã que ela comia. Seriam Adão e Eva não fosse a minha presença nem um pouco divina, mas cerceadora. Esse dom o levou a trabalhar com turismo e viver na Bahia, onde se deu nosso último encontro, em 2016. Me ocorre outra lembrança: no final dos anos de 1970, andávamos pela avenida do Contorno, em Belo Horizonte, e discutíamos como seriam os fogões do ano 2000. Não guardo ideia de como chegamos a esse assunto e me pergunto por que não apaguei tamanha insignificância da memória. Um palpite: o afeto é alimentado de miudezas, de verdadeiras bobagens. 

Devo confessar que a padaria não era de excelência. Estava mais para inconstante. No dia que acertava a mão, produzia um francês de me fazer esquecer o da padaria do Neném, a da minha infância. Mas não raro a receita desandava. Acontece. Seja como for, quando uma empresa fecha, histórias tristes se insinuam. Pode ser que o dono não tenha resistido à concorrência. Pode ser que a família em conflito tenha renunciado ao negócio para não cultivar a rixa entre os herdeiros. Certo, certo mesmo, é que um fato desses aumenta a fila do desemprego. Alguns talvez logo se ajeitem, outros, não. No caso da padaria, o que será da moça da chapa, faladeira e simpática? Do moço do café e do suco de laranja, mestre em infernizar a vida da chapeira? Do Russo? O Russo, por onde ele anda? Já não estava na padaria havia tempo. Por que não perguntei por ele? Quando uma padaria é fechada, nos descobrimos menos atentos do que imaginamos ou piores do que parecemos ser.

Quanto ao Trump, bem, ele em si já é ruim – figura grotesca, de ideias torpes etc. –, mas pior ainda é que ele abre espaço para os seus iguais ou seguidores mundo afora. Digo uma verdade, palavra de sábio, praticamente de um fenício inventando o alfabeto: a civilização não evolui, os boçais, que ocupam os poderes, não deixam.

Ah, ia me esquecendo. Ainda em janeiro perdi minha paciência. Quer dizer, minha paciência com o verão.