6.4.15

PC português

Não conto mentira, mas tenho péssima memória, pouco espírito investigativo e sou propenso a afirmar categoricamente como verdadeiro o que não passa de suspeita ou é fruto de um sonho. Rola por aí que os computadores americanos têm memória, os portugueses, uma leve lembrança. Sou um PC português.
No livro que lancei em 2014 — “Qual é, solidão?”, Editora Oito e Meio —, há um conto, “Sob chuva”, no qual Lois, ao voltar a sua casa, depois de um dia complicado, encontra a namorada do amigo assistindo ao filme “Quem comeu os cogumelos?”. Tudo no conto é invenção, menos o filme, ainda que eu nunca tenha encontrado alguém que o conhecesse e, além disso, jamais tenha visto referência a ele por aí, ou, por outra, li uma única na internet, numa edição de 1982 do Diário Oficial: sua liberação com cortes para exibição após as 23 horas. Certa madrugada de insônia, assisti na TV Manchete a partes do filme, o bastante para ficar marcado pelo nonsense da trama. Rever ou ver por inteiro esse filme pode reatar alguns dos meus nós. Ou desatar de vez os poucos ainda intactos.
Eu soube, tão logo Darcy Ribeiro morreu, que ele mantinha um galo em seu apartamento. O pensador indignado — ele dizia que nunca se resignaria, preferindo indignar-se ao longo da vida — não deixou filhos, mas um galo em Copacabana, essa selva de pedras cantada em verso e prosa. Não acho referências ao galo de Darcy no oráculo Google, por exemplo. Recentemente voltou à tona o apartamento dele — sem o galo. Acreditemos ou não, o imóvel foi usado durante anos por pessoas do judiciário enquanto, na Justiça, até agora não se sabe o destino a ser dado a ele — onde, eu juro, viveu um galo —, já que não há um herdeiro direto. Talvez a escorregada recente do juiz afastado do caso Eike Batista não seja de fato uma escorregada, mas sim prática mais comum do que a nossa insana razão pode imaginar.
Drummond — ele? Eu é que não fui — dizia que um bom poeta deveria gostar de um mau poeta, desses que todos rechaçam, e, ao mesmo tempo, deveria desprezar um poeta consagrado pela unanimidade. Um escritor que respeito muito, cujo nome preservo, não coloca Saramago no panteão dos grandes. Se concordo? Ora, que vale minha opinião se sou apenas um cronista “sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior”? Bem, também não sou um zé-ninguém, ouçam o que lhes conto a seguir.

Em 1983, feito agora, havia um clima de protestos incessantes. Participávamos de várias passeatas com a intenção de acabar de vez com a droga daquela ditadura (DDD). Um dos primeiros focos do movimento era não deixar ir adiante os decretos-lei que Delfim Neto preparava para conter os salários. A inflação era altíssima e, na visão do governo, contendo os salários, a demanda seria contida e, por fim, os preços cairiam. Muito bem, essa política a rua chamava de arrocho e contra ele gritava: “greve geral derruba general”. O governo interveio em sindicatos, fez e aconteceu. Em certo momento, as forças políticas foram convidadas para uma conversa com o temível ministro. Eu estava lá. Não me perguntem como fui parar lá, importa o fato de eu estar lá. Cheguei faminto; na mão um sanduíche de queijo, desses simples, pão de forma e queijo prato derretido. Pois bem, sentei-me à mesa, ao lado do ministro, gordo como todos sabem. Justo no momento em que dei uma senhora mordida no meu lanchinho, a autoridade avançou sobre ele. Eu puxava de um lado com a boca, ele de outro com a mão. Com isso o queijo foi sendo esticado, esticado, esticado. Levantei-me e me afastei da mesa. O queijo continuou preso entre o pão na mão do ministro e o pedaço na minha boca. Cruzei a porta, saí de Brasília, e o queijo cada vez mais esticado, uma linha fina que não se rompia. A ditadura, feito aquele queijo, só chegou ao fim depois de muito esticada. Hoje uns a querem de volta, eu não — não pelo fato de terem me roubado um sanduíche que era um sonho, mas sim porque, naqueles dias, quase tudo era um pesadelo.

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