16.11.15

Drummond, uma professora, poetas na plateia e a pele da poesia

Não sou de frequentar saraus de poesia, pois, a meu ver, a poesia pede intimidade e recolhimento. Mas, por favor, não tirem conclusões apressadas, escutem-me: sei que há pessoas que recitam magistralmente, com arte (uma arte a serviço da outra). A primeira memória que tenho de poesia vem de um compacto simples (disquinho de vinil) no qual Juca de Oliveira falava Drummond e Vinícius de Moraes. Para ser sincero, essa é uma segunda memória, a primeira são os poemas que circulavam em minha casa, entoados por meu padrinho, por meu irmão mais velho e pelos primos da idade dele. Mesmo sabendo da força da palavra dita, ainda prefiro, livro na mão, manter-me só e deixar os olhos correrem pelas páginas e, se tanto, a boca segredar-me aquele verso estupendo que não cala em si. 

Sarau imperdível: Sabadoyle, com a presença de Drummond.


Vencendo a minha resistência, neste ano participei, no dia 31 de outubro, de uma parte das comemorações do aniversário de Drummond. Sentadas num dos jardins da casa dos Moreira Salles, transformada em sede do instituto que leva o nome da família, umas vinte pessoas ouvimos uma professora do Colégio Pedro II, Mariana, se não estou equivocado, comentar “A flor e a náusea”, do livro “A rosa do povo”, lançado pela José Olympio em 1945. Sua palestra teve início com a leitura do poema — contra a minha expectativa, pessimista como de hábito, lido de forma sóbria (uma murmuleitura bem a meu modo, com a vantagem de a voz da Mariana não ser anasalada feito a minha). Depois contextualizou o poema, chamando a atenção para o fato de a publicação ter ocorrido quase no final da II Guerra Mundial (“O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.”). Acrescentou que Drummond, ao longo do tempo, foi se definindo em torno de uma militância não partidária (“Posso, sem armas, revoltar-me?”), tendo se afastado com certa rapidez (e rispidez) do Partido Comunista. 
Esticado seu pano de fundo, Mariana percorreu o poema verso a verso, estrofe a estrofe, especulando quanto daquele mundo convulso ecoara em cada um de seus trechos. O poeta criticava a coisificação (“Melancolias, mercadorias espreitam-me.”), sem, contudo, perder o compromisso rítmico. Com entusiasmo, analisou o verso: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” Ao não fazer uso de uma só exclamação, a falta de ênfase sobressai, tornando as coisas mais tristes ainda. Mariana, dispondo de não mais que uma hora, raspou essas questões e foi adiante: debruçou sobre o momento em que o poeta se mostra solitário (“Quarenta anos e nenhum problema/resolvido, sequer colocado./Nenhuma carta escrita nem recebida.”). Resumindo: a professora fez e aconteceu. (Professora feito a Mariana dá alento a nós que andamos imersos na desesperança dos dias atuais.)
Havia, entre os ouvintes, um poeta famoso, que, enquanto esteve entre nós, tanto quanto eu, não deu um uivo — apesar de ser, em grande parte do tempo, o foco da professora, que o reconheceu. Lá pelas tantas, quando ele já havia deixado a palestra, outro poeta se juntou ao grupo. Fumando, manteve-se afastado e igualmente mudo até o final, quando então, meio de gracejo, perguntou ao vento qual a cor da flor que nasceu no asfalto. O ponto central do poema é o anúncio feito pelo homem coisificado, solitário, cuja arma é um poema: “Uma flor nasceu na rua!” Flor descrita mais adiante: “Sua cor não se percebe./Suas pétalas não se abrem.” O tal poeta piadista queria instigar os ouvintes ou, quem sabe, nos convocar a enxergar a cor que não se deixava perceber.
A flor, na visão da professora, tinha muitas características alheias a ela. “Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é realmente uma flor.” Flor que, descobrimos no desfecho do poema, “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. De uma forma ou de outra, a flor, ao irromper, estava apta a cumprir seu papel e empurrar o mundo para um lugar no qual a coisificação e a solidão indesejada (tudo que afasta o humano de sua integridade) não encontrariam espaço. “Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu.”(1)
Um verso não foi comentado pela professora ou por qualquer um de nós, espalhados pelo jardim. Na descrição da flor, contrária em essência a uma flor, Drummond escreve: “e lentamente passo a mão nessa forma insegura.” Forma insegura? As formas não deveriam ser planas ou não? Simétricas ou não? Até mesmo frágeis? Que forma é essa que é insegura?
Um poema não pode ser desvendado por completo nem por uma professora dedicada a ele, nem por um poeta que abandone uma palestra cujo tema é aquele poema, nem por outro que adentre por ela como um tufão histriônico. É da natureza sedutora do poema ocultar-se sob medida. Em “Procura da poesia”, que, no mesmo livro, antecede o “A flor e a náusea”, Drummond alerta e provoca: “Chega mais perto e contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra/e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?”
O que um bom poema propõe — mostrar a pele, esconder o corpo — é um jogo erótico, talvez por isso goste tanto de lê-lo em silêncio, na cama, quando posso comê-lo e por ele ser devorado.
Do acervo da Casa de Rui Barbosa.




(1) O poema completo pode ser lido na Revista Germina.


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