2.11.15

Escrevendo e andando


Gosto de caminhar: areja o espírito. Faz bem a si mesmo quem leva o cérebro para tomar sol e depois o corpo sarado para ler/escrever/cogitar à sombra. A ciência já mostrou que mente e corpo são uma coisa só, em processo permanente de retroalimentação. Em nichos específicos, a resistência em aceitar o benefício recíproco entre o trabalho intelectual e o físico é alimentada com ironia, mas, apesar disso ou justamente por isso, há um monte de histórias mostrando que o exercício corporal, mesmo o mais tênue e indisciplinado, ajudou muitos pensadores/escritores/leitores.

Rimbaud.

Em “Autobiografia poética e outros textos” (Editora Autêntica), Ferreira Gullar pontua que Rimbaud foi um viajante — com notórias idas e vindas da casa da mãe, no interior da França — que encarou as distâncias caminhando. Quando partiu para a África, no último terço de sua vida (período nebuloso e pouco conhecido), ele cumpriu a pé o trajeto da França à Turquia, dali à Síria e, por fim, à África — caminho similar, ainda que em sentido oposto, ao que se percorre nesta diáspora contemporânea a que assistimos — quase sempre vexados — pela televisão. É verdade que, nesse período final, não se tem notícia de que Rimbaud tenha escrito (traficava armas), mas, enquanto fez seus poemas, seus deslocamentos não foram esporádicos. Da caminhada, concluo, alimentava-se o poeta — e, depois, o traficante.


Hemingway.

Rimbaud nada mais foi que um depositário dos ensinamentos de Aristóteles, criador da Escola Peripatética. Segundo o Aurélio, peripatético é aquilo “que se ensina passeando”, e era isso que o filósofo fazia: ao ar livre, indo de um lado para o outro, repassava suas lições aos estudantes. Por sua vez, Hemingway — e também Victor Hugo, segundo Mario Vargas Llosa, em recente artigo em El País — escrevia de pé, colocando os papéis em branco em um atril. Ele não andava, veja bem, mas seu trabalho de escritor, associado a sentar e produzir, fugiu do lugar comum. Isso sem contar que Hemingway era adepto da pesca, da caça, enfim, um cara que se mexia — e bebia atleticamente, o que não vem ao caso. Outro americano, Philip Roth, não só escreve de pé como caminha para burilar as ideias, se é que não caminha para encontrá-las.

Numa época em que eu não estava nada bem, passei a caminhar pelos sete ou oito quilômetros da lagoa Rodrigo de Freitas. Lembro-me de que, ao começar o exercício, eu me via refém dos tais problemas que me afligiam, porém, a partir do primeiro quilômetro, os pensamentos tornavam-se leves, e essa leveza acabava por dar um nó no baixo astral. Não raro, entre um passo e outro, surpreendia-me um clique “poético”. Eu não suportava encarar a folha em branco sem que pudesse, de cara, emoldurar nela o título do que, incerto, escreveria dali em diante. Numa dessas caminhadas surgiu “Relato das taturanas”, título de um conto de meu primeiro livro, e, de quebra, vislumbrei o próprio conto.

Ao longo do tempo, alguns escritores — quem sabe desejando compensar o sedentarismo — têm criado personagens que caminham. Fiando apenas na memória, listo Geraldo Viramundo — o louquinho de “O grande mentecapto” (Record), de Fernando Sabino, perdido em andanças por Minas Gerais —, tantos errantes na literatura de João Gilberto Noll, uma andarilha de distâncias curtas, Alice, de “Quarenta dias” (Alfaguara/Objetiva), o mais recente romance de Maria Valéria Rezende, e, ainda, Don Quixote, verdadeiro atleta montado em seu Rocinante, ou o ladrão de Jean Genet — à maneira de Rimbaud, cortando a Europa a pé.

Estou feliz. Levantei a bola da relação entre o trabalho intelectual e a atividade física, listei exemplos — meio besta, um meu — e, assim, desenhei um honesto painel sobre a questão. Posso me preparar para finalizar esta crônica com bafos de ensaio (de banda de garagem agarrada a dois ou três acordes). Então, para concluir...

Opa, espere, ouço vozes.
O quê?
Onde?
Quem?

Ah, é ele, o diabo que me habita. Vem dizer que Rimbaud morreu de um câncer que brotou em uma de suas pernas — logo amputada depois de o poeta que não mais escrevia voltar, já doente, mas ainda a pé, da África para a França. O coisa-ruim vai além e me pergunta o que acontece ao personagem de “Hotel Atlântico” (Francis), de João Gilberto Noll. Perde a perna, lembro-me bem. Pergunto ao chifrudo o que afinal tem a ver o fato de um andarilho acabar morrendo de uma ferida em suas pernas. Evasivo, ele se cala. Aproveito seu aparente desânimo e afirmo que a morte é um acidente. No caso de Rimbaud e no do personagem de Noll, um acidente com toque elevado de ironia, pois suas pernas eram a fonte da qual eles emergiam e se firmavam na vida.



Rimbaud. foi da Europa e voltou para ela. Muitos estão fazendo o contrário, com ganas de voltar para suas casas.






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