5.8.19

Bandeira Gullar dos Anjos




Bolha (leia o poema)


Vamos viver na bolha, Anarina. Deixarei aqui meus inimigos, levarei os livros, minha única riqueza. A vergonha vai comigo. Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante: esses que se abraçaram à escuridão e a ela continuam abraçados. Aqui ecoa quente a sandice dos bárbaros, sua truculência. Na bolha pode ser que, em momento de desentendimento, o tom de nossa voz se eleve e nos escapem uma ameaça ou outra, mas lá é a bolha, e os do nosso lado estarão deitados em berço esplêndido de ar. Vamos viver na bolha, Anarina.

Quando dois e dois voltarem
a ser quatro (leia o poema)

Como dois e dois estão sob suspeição e já não se sabe se somam quatro, a vida se equilibra na corda bamba, vale ou não vale a pena? O pão, que era caro, caro está, e a liberdade, pequena que seja, anda acuada num beco sem saída. Teus olhos continuam claros, mas a catarata os tornou opacos, tua pele morena não pode mais com o sol, mesmo que o oceano seja, só de longe, azul e o fedor da lagoa chegue longe. Como um tempo de terror por trás da alegria me acena e a noite carrega o dia estúpido nas suas costas açoitadas, rezo para que dois e dois se acertem e voltem a somar quatro, pois desconfio que a vida vale a pena, esteja o pão a que preço estiver e desde que a pequena liberdade encontre a saída daquele beco.



Assim já nem tão íntimos  (leia o poema)


O formidável enterro de tua última quimera está sendo agorinha, e, como não nos espanta, a ingratidão, tua companheira inseparável, com suas garras de pantera, não terá te deixado só. Não posso desejar que te acostume à lama que te espera, na lama estamos todos, homens que, nesta terra miserável, moramos entre feras e, por inevitabilidade e necessidade, fera nos tornamos. Não te dou cigarro nem fósforo, o escarro é a véspera de outro escarro, o beijo secou, a mão não afaga, tudo agora é na base da pedra — da bala.









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