6.12.20

O que fiz das minhas leituras de confinamento: final

 Para encerrar os comentários sobre minhas leituras em tempo de confinamento, faço mais alguns e, se não estou errado, feito isso, terei dado conta dos livros de prosa lidos entre março — quando terminei, ainda antes do confinamento, “Os miseráveis”, de Victor Hugo — e novembro.

Pais e filhos” (Cosacnaify), de Ivan Turguêniev, uma história que, situada num momento de transição na Rússia, quando se dá o fim da servidão, popularizou o termo niilista. No romance, o tal niilista é o sujeito frio, científico e, por ironia e o grande achado do autor russo, incapaz de se manter em pé diante do amor. “O caminho de San Giovanni” (Companhia das Letras) é uma série de ensaios memorialísticos, que têm como pano de fundo a cidade natal de Ítalo Calvino. O papel do cinema, a plantação do pai, aspectos da cidade pequena se juntam na cabeça desse escritor tão peculiar que, por meio da escrita, nos conduz pela geografia de seu pensamento.

Numa blitz à estante, encontrei “O corpo e outras histórias” (Companhia das Letras), de Hanif Kureishi, livro com uma novela — “O corpo”, que é (estamos num momento em que se é possível nos transferir para outro corpo) e não é (a questão da técnica e a consequência social não são muito exploradas) ficção científica — e uma série de contos, eu diria que bem estranhos, desses que dão uma chacoalhada no leitor. Ainda assim, nada parecido em intensidade e risco ao que faz Sam Shepard no romance “Aqui de dentro” (Estação Liberdade). O múltiplo autor, ao mesmo tempo que escreve um romance, o desestrutura. Talvez por isso, Patti Smith, ex-companheira de Shepard, diz que, ao ler os originais, navegou “por um mosaico de ecos de conversas, perspectivas alteradas, lembranças claras e impressões alucinatórias”.

A visita de João Gilberto aos Novos Baianos” (Companhia das Letras), de Sérgio Rodrigues, usa como tema o futebol (é do autor “O drible”, um dos romances contemporâneos que resistirão ao tempo), a música e o mundo da literatura. Se Sérgio Sant’anna escreveu, nos anos de 1980, “O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” (Companhia das Letras), cujo conto-título mostra como toda a cidade se mobilizou pelo show de João Gilberto, cancelado na última hora, Sérgio Rodrigues narra a visita do cantor (um artista reconhecido, já um pouco senhor) aos Novos Baianos (aquela turma jovem, que vivia em comunidade e sobre a qual recaíam todos os tipos de suspeita: amor livre, uso de drogas). Os dois contos ajudam a entender como o pai da bossa nova transformou-se em “mito”. No caso do livro de Rodrigues, seus contos sobre o mundo da literatura são um achado, deliciosamente irônicos.

Procurando dar conta de leituras atrasadas, li “Ensaio para o adeus”, de Eliezer Moreira (Editora Patuá), um romance de suspense, baseado em uma história muito peculiar, a de um repórter que, ao cobrir um assassinato, vê que o morto é a sua cara e com ele passa a ser confundido. Eliezer foi finalista do Jabuti de 2019, com outro livro, pelo que li a respeito, na linha desse primeiro, “Olhos bruxos” (Penalux).

Destaco duas leituras de mulheres, Lívia Garcia-Roza, “Meus queridos estranhos” (Record), e Andressa Barichello, “Ter a escrita” (Editora Patuá). Lívia escreve sobre uma mulher transitando entre os quarenta e os cinquenta anos abandonada pelo marido. Apesar de ele falecer logo em seguida e a viúva não tardar a casar-se de novo, a dor de ter sido abandonada perdura. O fato de ter uma filha adolescente, caprichosamente adolescente, não consegue ocupar esse vazio, se é que não o aumente. A mulher burguesa, educada, sem grandes limitações financeiras, enfim, moderna, caminha pelo livro percorrendo um arco muito bem (d)escrito de nuances. O livro de Andressa é de crônica. Sou cronista e não consigo fugir de comparar o meu mundo ao de Andressa. Começo pelo óbvio: eu um homem, ela uma mulher. Eu nos últimos passos da minha quinta década de vida, ela na força da juventude. Eu cada dia mais enfrentando o mundo de fora para dentro, ela, de dentro para fora. Gosto dessas diferenças. Seja como for, o talento da escritora foi reconhecido pelo Jabuti, que incluiu seu livro entre os semifinalistas do prêmio de 2019.

O último livro do período é realmente uma charada, pode ser um livro de ensaio ou um metarromance, um livro de humor ou, o que não descarta o humor, de reflexão profunda sobre a escrita. O título dá uma pista sobre o “mistério” alimentado por Marcel Bénabou, “Por que não escrevi nenhum de meus livros” (Tabla). O autor era, ao lado de Calvino e outros, membro do Oulipo — Ouvroir de Littérature Potentielle —, grupo que se impõe, na construção de uma história, regras limitantes, por exemplo, escrever sem usar a vogal “e”, o que fez Georges Perec em “O sumiço”. No livro que comento, a primeira discussão de Bénabou é como alguém pode não escrever nenhum de seus livros. A partir daí, há um embate intenso entre o leitor e o escritor, entre o escritor que tem pressa em publicar e o que não tem nenhuma, entre o escritor e o sujeito que deseja apenas um banho de sol. Como minhas crônicas foram sobre leitura, logo, um campo largo para meu esquecimento mostrar toda sua força, cito do livro: “Hoje, quando por exemplo arrumando caem-me às mãos certos folhetos em que anotara os títulos e as datas de minhas leituras de então, fixo-os longamente, incrédulo e consternado que absurda bulimia foi essa que me fez devorar tantas obras cuja lembrança não guardei, nem mesmo de tê-las manuseado?”

2 comentários:

Dag Bandeira disse...

Poxa, não li nenhum desses, tenho o "Amor em dois tempos" aqui em casa. Vou lê-lo para trocarmos figurinha.

Nilma Lacerda disse...

Tenho lido um bocado, escrito talvez mais (feliz, infelizmente?), mas vou na trilha da Dagmar: não li nenhum desses. Mas breve lerei o Bénabou, que você me fez comprar. Grata pela biblioteca, sempre.