Tenho um compromisso fajuto e injustificável comigo mesmo:
evito as grandes aglomerações. Não estou dizendo só de não ir a grandes jogos,
shows ou eventos. Fui ao comício das Diretas Já, aqui no Rio, a shows históricos
no Maracanã – Sting e Rolling Stones – e no Nilton Santos vi, no ano passado, Roger
Waters e acompanho de vez em quando o Botafogo. Se na minha juventude comparecia
a tudo meio empurrado, agora só na força bruta. Uso com alguma liberdade a
palavra aglomeração e a associo ao movimento que leva todo mundo a ler o mesmo
livro, a ver o mesmo filme, a ouvir a mesma música. Nem li “O nome da Rosa”, do
Umberto Eco, nem vi o filme inspirado nele. Não fui assistir ao Paul McCartney,
nunca pisei no Rock in Rio. Tenho uma penca de exemplos dos quais não me
orgulho. Sofro porque perco boas coisas e, pior ainda, por me ver numa postura
bem elitizada. Um entojo de gente. Arre!
Mas não me furtei a pegar a onda do momento. Não, amigos,
ainda não foi o último lançamento da Anita, uma figura bem interessante, mas
cuja obra desconheço quase completamente. Me refiro ao filme do Walter Salles,
“Ainda estou aqui”.
Não faz muito tempo, bati um papo com um amigo estudioso da
atuação dos militares no nosso país, em especial do golpe de 1964. Ele me
chamou a atenção para o fato de que muitos livros, filmes e séries voltados à
ditadura e seus desdobramentos carregam um alto grau de manipulação e esgarçam
a história para pegar o leitor ou espectador no contrapé emocional. Usam as
artimanhas das novelas televisivas, quase sempre forçando a tinta de histórias
românticas ou tentando levar o público às lágrimas. É um ponto a se considerar.
De todo modo, tenho como leitura recente “O corpo interminável”, da Cláudia
Lage, livro que, a partir das “descobertas” de um jovem casal sobre os estragos
da ditadura na vida de seus antepassados, trafega pelo caminho distante do
apelo sentimental.
Meu amigo Rafael Conde, cineasta de Belo Horizonte – onde
tem havido uma cena audiovisual muito interessante, particularmente no polo de
Contagem (de lá saiu “Marte Um”, de Gabriel Martins, talvez o mais conhecido,
mas não o único bom) –, está percorrendo o país para divulgar seu mais novo trabalho,
“Zé”, baseado em livro de mesmo nome, de Samarone Lima. O filme narra a
história do líder estudantil José Carlos Novais da Mata Machado, um mineiro
bem-nascido, que aprofunda a visão crítica do pai sobre o golpe e passa a viver,
em péssimas condições e clandestinamente, a serviço do movimento de resistência.
Ele acaba preso, torturado e assassinado pela ditadura. Rafael também não faz
truque dramático para conquistar o espectador. Ele expõe, com habilidade
cinematográfica, uma faceta daqueles tempos sombrios.
Comecei a falar do filme arrasa bilheteria do momento (ah,
como é bom ter um brasileiro nesse lugar!), aquele que, vencendo meus tolos preconceitos,
fui assistir, e me perdi. Não, não me perdi, só rememorava obras que revisam a
ditadura e fogem ao dramalhão, numa espécie de elaboração de resposta a meu
amigo.
Em “Ainda estou aqui”, o diretor teve a chance de fazer uma senhora novela mexicana da história da família de Eunice Paiva. Afinal é uma mulher que, com cinco filhos menores, teve de dar conta de viver sem notícias do paradeiro de seu marido – o ex-deputado federal e engenheiro civil Rubens Paiva –, um dia arrancado de casa e, soube-se depois, bem depois, logo assassinado pela ditadura. O cineasta, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice, passou longe desse caminho e, contando com pelo menos três interpretações fora do comum, de Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro, enfrentou um dos piores momentos de nossa história dosando muito bem o drama pessoal e o coletivo. Sem apelação, nos dá a chance de mais uma vez reconhecer as atrocidades da ditadura, o que pode nos ajudar a vencer uma tendência brasileira de, em intervalos marcados, agarrar-nos a propostas autoritárias, inimigas do complexo convívio democrático.
Foi assim que inventamos um caçador de marajás na reta de largada da democracia; quando esta parecia estável, saímos pela rua pedindo para prender todos os corruptos. Bem-intencionados e inocentes, caímos na esparrela desse discurso que não para em pé. O movimento nos levou a um governo incompetente, desatinado e, soubemos há pouco, não só inimigo da democracia, mas também capaz de fazer qualquer coisa para jogá-la no esquecimento, inclusive matar os candidatos vitoriosos da última eleição e um juiz que segurou na careca as investidas antidemocráticas. Teremos aprendido? Não sei, mas o público dos filmes do Walter e do Rafael ou os leitores da Cláudia criam um calo, ficam esperto, não caem em conversa mole de quem vira as costas para a ciência e cultiva o ódio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário