15.4.19

Verissimo, nem te conto


Na rua Barão de São Borja, quase esquina da Dias da Cruz, no Méier, vive meu traficante. Calma, meu traficante de títulos. Penso assim: não fosse por um título como “História Universal da Infâmia”, quem leria Borges, o cego? E Ramos, o preciso, sem a força de um sonoro “Vidas Secas”? No início da minha vida literária, por não ser bom de título e imbuído de boas intenções, recorri ao tráfico. Acabei viciado. Acontece.

O importante no parágrafo anterior, verdadeiro nariz de cera, é o Méier, pois, ao sair do encontro com o traficante, vi uma placa anunciando que Doroteia P., médium recém-instalada no bairro, abria as portas para promover o diálogo entre os que aqui estão e os que estão num plano superior. Sempre tenho um probleminha amoroso ou financeiro ou uma pedrinha nos rins, uma insônia, então pensei que um contato dessa dimensão poderia jogar luz sobre o meu futuro, aguçar a minha esperança, ou simplesmente permitir que eu falasse com papai ou mamãe.

Meire, a assistente, me deixou numa saleta com mais duas pessoas. Não tardou muito, ela voltou, pediu um minuto de nossa atenção e contou como fora o processo de desenvolvimento mediúnico de sua mestra. Doroteia P. gostava de fotonovelas e, não raro, passava pelos sebos do Centro à procura de velhas revistas. Sentia-se feliz ao comprar uma Sétimo Céu, uma Capricho, uma Grande Hotel que faltasse a sua coleção. Certa vez, encontrou uma correspondência do Instituto Universal Brasileiro endereçada a um tal Rolando Hole Medonho, que, por algum motivo, não chegou a abri-la. O Instituto era conhecido por promover, no mundo anterior à internet, cursos por correspondência. Como não houvesse nada que lhe interessasse, a fã de fotonovelas levou o pacote. Sem saber, adquirira um curso de mediunidade. Ao descobrir o que era, em vez de se desfazer do material, folheou o primeiro exemplar; em seguida, estudou a coleção. Em linhas tortas, Deus lhe indicara um caminho, na realidade, o caminho.

Meire nos contava aquilo, esclareceu, para mostrar como o acaso interfere magnificamente em nossas vidas. Foi além: naquele exato instante, o mesmo acaso lançava de novo seus dados. Fiquei boquiaberto, a ponto de me esquecer da novela que escrevia, do título comprado, do sofrimento da criação; da vidinha miserável, enfim.

Doroteia P. nos esperava em um cômodo pouco iluminado. Magra e com um longo cabelo solto, fez sinal para que sentássemos e disse que usaria a tábua de Ouija, o jogo do copo, como era conhecido. Justificou a escolha por seu aspecto coletivo, que nos permitiria, sem que um largasse a mão do outro, papear com os do lado de lá. Oramos o pai-nosso. Em seguida, a médium fez a pergunta inicial: “Tem alguém aí?” O copo deslizou para o “sim”. Era o momento de nossas perguntas, mas o espírito quebrou a regra e se adiantou: “Como está o Brasil? Vocês têm cuidado bem das estrebarias e da memória do venerável presidente Figueiredo?” O ambiente ficou tenso, e a voz insistiu: “Não vão me responder?” Doroteia P., tentando manter o controle da sessão, quis saber quem falava conosco. Eu sabia quem era: “É a Velhinha de Taubaté”. “Espertinho”, a alma disse com ironia. A médium, que nunca lera uma linha de como enfrentar uma situação semelhante, ordenou que eu continuasse a conversa. “Depois que a senhora morreu, em 2005, vítima do desencanto com o mensalão, o Brasil foi pra frente, foi pro lado e agora, justo agora, resolveu ir pra trás. Sendo assim, temos um vice que monta cavalos e um presidente que ressuscitou não só seu venerável Figueiredo, mas também Geisel, Médici, Costa e Silva e Castello Branco.” O copo correu pela mesa e indicou que a Velhinha suspirava. Que suspirava, não, que suspirou — “Ufa” — e fechou o bico.

Doroteia P. voltou à cena: “Alguém aí?” Outro espírito nos disse que acabávamos de fazer o bem a uma alma penada. A Velhinha cumpriu sua passagem, feliz da vida por saber que o Brasil resgatou o passado, aquele tempo “imaculado e grandioso”. Ouvi um tímido “mito” sair da boca de um dos que estavam ao redor da mesa e vi o outro fazer uma arminha com os dedos. A médium, aliviada, deu por encerrada a sessão. Cobrou cinquenta mangos de cada um, abusivo no meu modo de entender, mas nem reclamei. Ninguém reclamou.

Fui pro bar e, entre uma cerveja e outra, li o título comprado ao homem do Méier. Me pareceu meio malhado, mas, ainda mexido com a recente experiência sobrenatural, não dei bola para as questões literárias. Tive, isso sim, vontade de ligar pro Veríssimo e açodar sua curiosidade com um “nem te conto”. Não e não, seria uma baita indelicadeza, afinal se os autores não controlam a vida dos personagens — uma verdade inquestionável —, o que dizer da morte. Preferi abandonar a ideia, o cronista do Rio Grande não merecia saber que os personagens também mergulham na vida eterna — alguns acabam presos ao purgatório. Melhor que mantivesse a crença de que, uma vez que não é mais escrito, o personagem deixa de existir. Melhor que não soubesse no que deu sua crédula e inocente Velhinha de Taubaté.

11 comentários:

Unknown disse...

Talvez nem a Velhinha de Taubaté acreditasse em tudo o que está (ou não) acontecendo!!

Teresa Garbayo disse...

Alexandre, muito bom! Gostei do começo ao fim. Haja talento e imaginação!
Só não curti uma palavra da chamada. Tem que ter um apelo, claro, mas desacorçoado parece o ranger de um portão enferrujado. Não pode.

No Osso disse...

Tereza, certa vez fui fazer uma oficina literária e o orientador encrespou com uma palavra minha. Mas ele disse uma coisa bem legal: "se você não tiver nenhuma ligação afetiva com a palavra, troque por outra". No caso do "desacorçoado", eu tenho essa ligação, pois faz parte de conversas irônicas que eu ouvia na minha infância. Era um tio falando para outro, coisa assim. De vez em quando eu a uso, um jeito de não deixá-la morrer sozinha lá no dicionário.

Mas que é feia, é.

Obrigado pela visita.

Pacoblog disse...

Alexandre. Ótimo o conto e adorei a ideia de que o personagem "morre" quando deixa de ser escrito. Sim, ele é VIVO enquanto o autor escreve e nós o lemos. Outro dia, no programa do Boldrin, ele fez uma homenagem ao Péricles, criador do Amigo da Onça. Lembra? É a concretização da imagem que você coloca no teu texto. Um personagem que "morreu".

Dagmar Braga disse...

Muito bom, moço!
E, desta vez, até consegui fazer um comentário! Obra da Doroteia P?
Um abraço.

silvana guimarães disse...

Adorei, Alexandre.
Problema da Velhinha de Taubaté resolvido (?), fiquei curiosa: qual foi o título que você comprou? ;-)
Um abraço!

No Osso disse...

Silvana, o título tava malhado, dei dois e joguei no lixo.

Obrigado pela visita.

Ney, me lembro bem do Péricles, quer dizer, do amigo da Onça. Era incrível. E adoro o Boldrin, um dos melhores programas que tem por aí. Nunca o assisto ao vivo, mas vou no Youtube procurar.

Dagnuncamar, você tem ido ao centro da Doroteia P.? Que maravilha, qualquer dias nos encontramos lá, preciso fazer outros contatos.

angela leite disse...

Alexandre, seu conto-crônica é digno de ser enviado ao Veríssimo, pois tem o sabor do que ele costuma escrever! Às vezes também embatuco com títulos, mas agora sei que no Méier (logo ali), terei a solução. Espero que seja menos salgada que uma consulta com a Doroteia... Abraço apertado!

No Osso disse...

Angela, precisando de chegar ao homem do Meier, faça contato, sou o intermediário, o que chamam de avião.

Abraços e obrigado pela leitura.

Jorge Vicente disse...

Magnífico conto-crónica, meu amigo!

Mas fico imaginando: os espíritos desencarnam, mas nem por isso deixam de admirar presidentes ditadores. Aff.

Muitos abraços!
Jorge

Nilma Lacerda disse...

Com atraso, leio e me admiro. Ótimo, rapaz. Concordo que deve enviar pro Veríssimo, está impagável - pra contrabalançar o desacorçoado.