21.4.25

A cocada do Bruxo

Igor Calazans é um poeta de Niterói e vive no Rio. É também um animador cultural, oferece oficinas de poesia e organiza saraus, entre outras coisas. Enfim, é um cara desprendido que gosta de juntar poetas os mais distintos. E junta.

Ultimamente ele organiza dois saraus. Um, no Baratos da Ribeiro – sebo e ponto de eventos culturais fincado no coração de Botafogo –, é um tributo a algum poeta, o "Ode ao Poeta". O encontro funciona assim: Igor distribui poemas da pessoa homenageada, e aqueles no público que se sentirem à vontade escolhem um para falar ao microfone. Quando o homenageado está presente, ao final lhe é feita uma pequena entrevista, e o espaço fica aberto para que ele leia seus poemas e outros que o influenciaram ou que são de seu agrado. É comovente.

O outro é o Epoché – termo grego, cunhado pelos céticos, em oposição ao dogmatismo –, um sarau mais tradicional, no qual poetas são convidados para declamar dois ou três poemas. O surpreendente é que desfilam poesias de toda sorte – sem dogmas – e os ouvidos se adaptam às mudanças de rumo. Há algum tempo, a reunião tem sido no Capitu Café, situado no último endereço de Machado de Assis.

Quando anunciei que estaria no sarau, que aconteceu no dia 12 de abril, minhas amigas curitibanas, as arquitetas e cronistas Fernanda (Morishita) e Mônica (Moro Harger), me avisaram que estariam no Rio e iriam me ver. E foram. E não couberam no recinto, tendo de ficar na calçada, por sorte, em mesa servida pelo café. Com elas estavam o filho da Fernanda, o Theo – que eu já conhecia de papel, por ser a figura central do livro de crônicas de sua mãe, "Cartas para Theo" (Editora Verso) –, e outras amigas, pessoas agradáveis que esticavam os assuntos sempre de forma leve e inteligente. Me dividindo entre os dois espaços, entrei e saí da área do sarau várias vezes (no outro dia, me justifiquei com os poetas que acabei por não assistir, o motivo era justo e retratava o sucesso do evento).

É inevitável, nesses nossos dias documentais, que a gente se fotografe. Para escritores, o Capitu é um sonho. À porta há uma escultura do antigo e ilustre morador, um convite para rodeá-lo e fazer selfies e não selfies a perder de vista. Na escultura, Machado está sentado à mesa. Numa das mãos, uma xícara vazia de café, na outra uma caneta-tinteiro que se aproxima do papel pousado bem à sua frente. O Bruxo toma notas. Mais na ponta da mesa, um pote que se parece com um balde de leite pequeno – na certa, o recipiente da tinta – e um pratinho com doce. Sugeri que não era doce nenhum e sim um prensado de maconha. Rimos, tiramos fotos. Numa delas, um homem aparecia assim no canto, e eu disse que na edição da foto a gente o tiraria. Mais risadas, inclusive do futuro excluído.

Esse homem, Alviño seu nome, se aproximou de nós, o celular aberto em uma foto. Queria tirar de nossa cabeça a ideia espúria do conteúdo do pratinho, aquilo não era maconha, mas uma cocada. Aí virou zueira, bagunça, brincadeira sem fim. Ele então nos contou que é o autor da escultura. Mais ainda, dentro do café, a série de desenhos do criador de Capitu e Braz Cuba é também dele. Ou seja: ao lado do sarau, uma exposição bem bonita. Viva Machado, que, descubro, se amarrava numa cocada.

Em seus últimos dias do décimo ano de vida e já se preparando para subir a ladeira da adolescência, Theo dormiu nos braços de um tio, o que levou minhas queridas cronistas de Curitiba para casa antes da esticada a um tradicional restaurante do Cosme Velho. Lá, nesse dia tão intenso e fraterno, formou-se uma imensa mesa recheada de poetas. Uma beleza só, promovida pelo nosso Calazans.

7.4.25

Meu Deus particular

 Se não estou lelé da cuca, falei do Milton Nascimento em uma crônica recente. Volto a falar dele, leitor e leitora, agora por conta do documentário “Milton Bituca Nascimento”, dirigido por Flávia Moraes. O filme acompanha a parte internacional de “A última sessão de música”, a derradeira turnê do menino nascido carioca e crescido mineiro.

Na viagem, Bituca confessa seu amor à mãe, desfruta de momentos de carinho com o filho, canta para plateias europeias e estadunidenses, tudo entremeado por depoimentos sobre sua dimensão artística. O filme carrega a ideia de que ele teria apresentado o Brasil ao mundo. É verdade, mas Carmen Miranda, Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros o precederam. Milton, por sua vez, percorreu uma trilha especial, tendo sido abraçado por Wayne Shorter, Herbie Hancock, afluentes do grande rio chamado Miles Davies. E continua sendo, agora, por exemplo, por Esperanza Spalding, baixista e cantora de jazz com quem gravou um CD (“Milton + esperanza”) indicado ao Grammy, cuja cerimônia de premiação esnobou o senhor de oitenta anos, com saúde debilitada. Uma vaia aos organizadores.

Que som é aquele, de onde veio? A essa pergunta, repetida em depoimentos e na narração, ensaiam-se várias respostas, inclusive a sempre lembrada influência mineral, das montanhas. Não me lembro quem fala – Chico Amaral (músico mineiro), se não me engano – que o melhor a fazer é fechar os olhos e se deixar levar pelo mistério, sem querer entendê-lo. Com as mãos em movimentos circulares, Quincy Jones sugere uma benção especial de Deus em Miles Davies e Milton Nascimento. Acredito nessa distinção, mas isso não os impediu de cortar bons dobrados em suas vidas terrenas. O vício do primeiro, a doença do segundo. O racismo, nos dois casos.

O depoimento do Wagner Tiso, parceiro desde os tempos de meninos em Três Pontas, é comovente. Desculpando-se, ele chora – a moça na fila de trás da minha no cinema faz eco: “eu também estou chorando”. Bom, e eu também. O Chico Buarque, outro octogenário, ao assistir àquele vídeo famoso – Milton vocalizando o início de “O que será?”, ao lado de um Chico encantado –, experimenta a mesma emoção, expressa num leve piscar de olhos, uma forma de não deixar as lágrimas caírem. A gente está no mesmo barco, bambino.

Há pelo menos um momento de poesia absoluta: Criolo e Mano Brown, um sem saber o que se passa com o outro, falam a letra de “Morro Velho”. Criolo, sereno, se agarra à beleza da amizade entre o preto e o branco, o rico e o pobre. Mano Brown, contestador, não esquece a luta de classe, delimita bem que, no fim, é o preto na lida e o branco no comando, dono de tudo. Há que se dizer que as duas coisas estão na letra do Milton. Essas leituras tão distintas acontecem com Hamilton de Holanda solando a melodia no bandolim. Nessa cena, o filme toma outra dimensão, são três caras que se chegaram ao Bituca bem depois do Clube da Esquina, das andanças mundo afora, das parcerias com Elis, Chico, Caetano e Gil. É forte. Assim como é forte o final, Milton ouvindo e regendo Angela Maria cantar Babalu. Presenciamos a reverência sentimental do homem ao seu berço musical, as cantoras.

Corro o risco de cometer uma heresia, mas vamos lá: o texto narrado por Fernanda Montenegro é fraco, repetitivo. E a narração da atriz – que me marcou em “Eles não usam Black-tie” e nos recentes “Ainda estou aqui” e “Vitória” – me pareceu excessiva.

Fui à estreia de “A última sessão de música” (na saída, Lenine flanava pelo estacionamento assobiando “Meu menino”, música da Ana Terra e Danilo Caymmi, gravada no Clube da Esquina 2 e não cantada no show). Não sou chegado a ninguém, não fui agraciado diretamente com um convite vip, mas estava lá. A história é longa, não a contarei, o que interessa é que eu e uma grande amiga fazíamos parte da plateia. O show me jogou nas cordas, emoção que deixou de ser momentânea, transformando-se em perene: ficou como memória de minha querida amiga que em breve nos deixaria.

É nascimento.

É vida, “vida, que amor brincadeira”.

Não poderia deixar de ser morte.

Milton é meu Deus particular.