16.6.25

Mil nomes nenhum

Eu não vejo a Janaína há tanto tempo que não posso dizer se continua com aquele sorriso acolhedor e olhar curioso. Já o Bão, com quem me encontro cotidianamente, não mudou nadinha e acha tudo maravilhoso. Mas, rapaz – eu o cutuco –, e essas guerras, essa carnificina infantil, esses donos do mundo destrambelhados da vida? Ele dá de ombro e responde categórico: “Bão, isso está fora do meu alcance”. Assim é ele, e talvez por isso eu o veja, finja que não o vejo e nunca dou publicidade de seu nome.

Quando falo em Janaína, sim, ela existe, é minha prima, mas seu nome é outro – sei bem qual é, mas não vou dizê-lo. O sorriso e o olhar dela são daquele jeitinho mesmo, ou eram há uns vinte, trinta anos, última vez que a vi. O mundo é cruel. Já o Bão, esse não existe, é uma mistura de figuras que encontro por aí. Para o sucesso dos doidos extremistas, é preciso que haja os que batem palmas para eles. O Bão – também chamado de Isentão, embora de isento não tenha nada – é o sumo dessa turma.

Vou ser bem sincero: acredito nas coisas e pessoas inexistentes. Personagem de livro, desse fico amigo. Feito aquele menino do “Tia Julia e o escrevinhador”, do Vargas Llosa. Cara legal, pô. Quer ser escritor e, como é comum aos dezoito anos, se apaixona por uma mulher mais velha – não tem quarenta e é tratada pelos familiares como um estorvo, um absurdo –, que também se apaixona por ele. Além disso, tem um bom amigo, é bem aceito pelos tios e pelos avós (até o surgimento da tia, que não é exatamente tia), vira e mexe bota panos quentes em conflitos na rádio em que trabalha, inclusive naqueles nos quais os patrões estão envolvidos. Não é um garoto legal? Aos dezoito eu era um pouco assim, é verdade que com umas doses a mais de canjebrina. E aquela mulher do “Syngué sabour –– Pedra de Paciência”, do escritor afegão Atiq Rahimi? Numa das intermináveis guerras internas no país, o marido se feriu, requerendo assim todo o tempo da esposa. Ao lado do homem sem nenhum sinal vital além de respirar e se sujar, ela vai se soltando, falando – será ouvida? – tudo aquilo que a gente imagina não ser comum a uma afegã falar: conta de sua insatisfação sexual ou de como idolatra a tia que se tornou prostituta. Não que eu tenha me apaixonado por ela, mas, puxa vida, que mulher espetacular.Agora vou contar uma vantagem. Um amigo meu – milagre sem santo, fato sem nome – me escreveu dia desses uma mensagem enigmática. “E a Elisa”? Meu Deus, quem seria? Não demorou tanto assim para a ficha cair: é uma personagem de meu conto “Chorão”, escrito recentemente. Meu amigo caiu de amores por ela. Não fosse o compromisso de escrever minhas crônicas quinzenais para a Rubem, eu aposentava o escritor que sou, pois fui laureado com um Nobel particular. O dicionário agradece a minha boa vontade com palavras esquecidas. Canjebrina, laureado: regozijai!

Há um ponto nisso tudo que não sei se vocês estão percebendo. Não guardo nomes de personagens. Nem dos meus. Conto outro caso similar ao da Elisa. Uma de minhas irmãs (não digo como foi registrada ao nascer, embora haja uma história interessante em seu batismo) me liga – não havia essas modernidades de zap e zup e sei lá mais quê – e diz as mesmas palavras do meu amigo: “E o ...?” Ela falou a alcunha (dicionário, festejai!), eu não sabia de quem se tratava, até que fui severamente repreendido: “É o seu personagem do ‘Todas as fichas’, ora essa”. Agradeci e me desculpei. Vejam que terrível, voltei a me esquecer do nome ou do apelido dele (razão das reticências um pouco acima), um sujeito legal e, não por isso nem apesar disso, viciado em jogo e prostitutas. Conheço uma pessoa parecida. Ela, além dessas características, às três da manhã, recém-chegada da rua, fritava um bife que muitas vezes me arrancou da cama e me fez descer as escadas para filar a boia. Sei bem como se chama, mas não digo como é nem lhe faço um outro batismo.

2.6.25

Crianças na rua

Em 1980, ano em que cheguei ao Rio, foi lançado o disco “Raíces de América”, gravado a partir de um show do grupo homônimo, formado por músicos argentinos, chilenos e brasileiros, com participação especial da atriz Isabel Ribeiro e direção de Flávio Rangel. Provavelmente foi uma das minhas irmãs que, na casa de nossos pais, no período das férias, me apresentou o som que, bonito de muitos jeitos, me marcou principalmente pelo trecho do poema do argentino Armando Tejada Gómes (aqui reproduzido sem que eu saiba de quem é a tradução) declamado por Isabel. 

Há uma criança na rua

A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.

É dever do homem proteger o que cresce,

Cuidar para que não tenha uma infância dispersa pelas ruas,

Evitar que naufrague seu coração de barco,

Sua enorme vontade de pão e chocolate,

Caminhar por seus países de bandidos e tesouros

Pondo-lhe a esperança no lugar da fome.

 

De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,

De outro modo é absurdo porque de nada vale se há uma criança na rua.

Importam duas maneiras de conceber o mundo:

Uma, ser alguém como as outras pessoas ou

Arrancar cegamente dos demais a bolsa.

E a outra, um destino de salvar-se com todos,

Comprometer a vida até o último náufrago.

 

Como se pode dormir de noite se há uma criança na rua?

Exatamente agora, se chove nas cidades,

Se desce o nevoeiro gelado no ar

E o vento não é nenhuma canção nas janelas,

Não deve andar o mundo com o amor descalço

Levando um diário como uma asa na mão.

 

Trepando nos trens, provocando-nos o riso,

Golpeando-nos como um anjo de asa cansada,

Não deve andar a vida, recém-nascida, já lutando,

A meninice arriscada a um pequeno ganho,

Porque então as mãos são dois fardos inúteis

E o coração, apenas uma má palavra.

 

Eles esqueceram que há uma criança na rua,

Que há milhões de crianças que vivem na rua

E uma multidão de crianças que cresce nas ruas.

A esta hora, exatamente, há uma criança crescendo.

 

Eu a vejo apertando seu coração pequeno,

Olhando para todos com seus olhos de fantasia,

Percorrem e olham para o homem rico,

Um relâmpago forte cruza seu olhar,

Porque ninguém protege essa vida que cresce

 

E o amor se perdeu como uma criança na rua.



Se o garoto de dezoito anos que eu era nunca foi insensível à dor humana e não se preocupava apenas com o próprio futuro, ao ouvir esse disco se convenceu de que não se poderiam ignorar as questões sociais, mais ainda, era preciso olhar para além de Passos, Rio de Janeiro, Brasília. Havia um mundo maravilhoso, mas também sofrido, ao nosso lado. Alguns anos mais tarde, eu dividiria um apartamento com meu irmão Gonzalo, boliviano, e, a partir de nossa amizade, conheci muitos argentinos e chilenos principalmente. Meu mundo se abria, e nele entravam outros grupos musicais – o Inti-Illimani, por exemplo – e Borges, Cortázar, Benedetti, essa turma da pesada. 

O “Raíces de América”, em particular o poema na voz de Isabel Ribeiro, voltou à minha memória porque, quarenta e cinco anos depois de minha chegada a esta grande e complexa cidade, constato que a infância continua desprotegida, e não só aqui. Crianças são alvejadas nas favelas de nossos países e exterminadas, por bala ou fome, na Palestina, nessa guerra em que o que parecia uma resposta a uma agressão se transformou em um massacre sem fim por parte dos que comandam Israel e seus aliados. 

Em uma publicação em rede social, a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho compartilhou um post de Sami Abu Salem, um “pai de filhos pequenos” sobrevivendo aos horrores da guerra. O texto dele, em tradução chinfrim, começa assim: “a arma mais feroz que Israel usa contra Gaza é a fome”. Depois, em itens, registra tudo que um faminto é capaz de fazer (dois exemplos: “a fome transforma as pessoas em monstros”, “a fome destruiu muitas paredes da vida, da piedade, da fraternidade, da generosidade, do tempo e dos laços sanguíneos”), terminando assim: “a fome é mais perigosa que foguetes”. 

Sebastião Salgado, que nos deixou no dia 23 de maio, disse numa entrevista que uma fotografia começava bem antes dela e terminava bem depois. Que na apreciação de suas fotos enxergaríamos, para além das pessoas ou animais, das paisagens ou construções nelas registradas, o próprio Salgado, sua vida, a família, a escola, tudo que o cercava. Acho a imagem de uma beleza sem fim, e a trago para cá na esperança de que tamanha consciência artística e humana supere, se possível brevemente, a maldade cultivada por esses homens orgulhosos da guerra.