6.10.25

As ruas tomadas

 

Candelária em 1984: comício das Diretas Já


Em 26 de janeiro de 1984, eu botava os pés de volta ao Brasil, entrando pelo Mato Grosso, depois de umas férias na Bolívia. No jornal, a manchete dava conta do comício gigantesco em São Paulo, marco inicial da campanha das Diretas Já – enfim sepultada, o que não impediu o campo democrático de ganhar as eleições indiretas. Seja como for, em abril daquele ano, eu estava na Candelária acompanhado de mais ou menos um milhão de pessoas. Se cada um de nós não passava de uma gotinha, juntos desaguamos num dilúvio capaz de afundar a barca de Noé.

Era criança quando houve o golpe de 1964, portanto estudei em escola sob as diretrizes dos militares, aliás, aquela em que eu fiz o ginásio – hoje ensino fundamental – foi criada por eles, o Polivalente. No interior de Minas, eu e meus colegas não éramos politizados, ou éramos para as questões locais. Sempre gostei de apoiar algum vereador, mesmo não tendo idade para votar. Apesar de um pouco alienados, à noite gostávamos de cantar, na surdina, “Para não dizer que não falei das flores”, a música do Vandré. Decerto sabíamos que alguma coisa não andava bem. De qualquer jeito, a maioria dos meus amigos daquela época hoje transita pela direita ou pela extrema-direita, talvez tenham se esquecido – ou queiram se esquecer – daquela nossa insurgência musical e o seu significado.

Ao me mudar para o Rio, em 1980, comecei a participar das assembleias e passeatas que questionavam a ditadura. Algumas vezes, mirávamos uma determinada política, como o redutor nos salários imposto por Delfim Neto com o intuito de conter a demanda. Ele assinava o decreto, e lá íamos para a rua bradar contra o arrocho (o nome dado àquela política). Noutras vezes, a luta era mais ampla e direta pelo fim da ditadura pura e simplesmente. O Rio de Janeiro sempre foi dado a protestos, cada um mais bonito que o outro. Ou foi até 2013, início da onda estranha. Lembro-me de naquele ano ter ido a um comício na Cinelândia e ser surpreendido pela ausência de partidos políticos. Ali começou a dissociação entre o povo e a política formal, o que alimentou uma figura como a do agora condenado e ex-presidente do país. Fora da política ronda o fascismo – uma velha lição que não deveria ser esquecida.

Com a morte da Marielle, a indignação nos animou de novo. Se a militância havia envelhecido, naquele momento os jovens – fundamentais para a derrubada do Collor – voltaram à cena. De qualquer forma, um pouco depois e contra o pior governo da história, não se conseguiu animar as ruas. Claro, houve a pandemia, mas essa não foi a única razão do esfriamento. O mundo estava (e está) confuso, essa é a verdade. Muita gente que questionara o PT, por conta da Lava-jato, não conseguia se posicionar. Uma parte não chegou a se juntar à extrema-direita – os bons votos em Marina Silva e Ciro Gomes e mesmo o voto nulo falam por si –, outra foi e custou a voltar (talvez ainda se sinta sem chão). Muitos continuam lá, não raro rezam para pneus e idolatram santos do pau oco tomados pelo cupim. Os mais exacerbados quebraram Brasília, uns tantos amargam uma cadeia justíssima.

Agora demos um show. A multidão no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Curitiba e em muitos outros lugares fez e aconteceu. Em Copacabana, acompanhados por artistas imensos – Caetano, Chico, Gil, Paulinho da Viola, Ivan Lins, Lenine, Maria Cadu e mais alguns –, cantamos as músicas que sempre questionaram o pobre poder. Num sopro derrubamos o algoritmo e tiramos o protagonismo do mundo virtual – embora nele tenha se organizado a manifestação. Com o barulho, os políticos recuaram um pouco – a tal PEC da Blindagem, mais conhecida como da Bandidagem, foi recusada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, não indo sequer à votação no plenário. Como a questão da anistia aos golpistas de janeiro de 2023 ainda pipoca pela casa legislativa, acho que teremos de tomar as ruas de novo. Estou prontinho, com roupa de ir.