17.11.25

Old School

Começo pedindo desculpas ao leitor e à leitora pelo inglês do título, mas não me ocorreu outro, que é certo existir, embora aos meus ouvidos a opção nacional, velha escola, não soe tão bem. Essa preguiça — afinal é preguiça — tem a ver com a apatia imposta pela perda do Lô Borges, que não era meu irmão, não era meu primo, nem mesmo distante, sequer era primo de um primo de um vizinho de um outro primo, mas assim mesmo me faz vestir luto por ele. Entre as mortes recentes, a do mineiro foi a de maior repercussão na tal da minha bolha. A tristeza foi generalizada, uma demonstração de como Lô é amado. No início dos anos 1970, o garoto então de dezoito anos apareceu embolando as referências — uma gota de bossa-nova, outra de Beatles, dois pingos de jazz e uma pitada de Dalva de Oliveira, cantora descoberta no rádio valvulado dos pais — naquele álbum icônico, o Clube da Esquina, mostrando-se desde sempre inovador. Se sua música é fácil de cantar, não nos iludamos, ela não é simples e carrega toda a sofisticação de suas influências – Wagner Tiso, no Instagram, chamou a atenção para isso. Para além do músico, Lô preservava a cara de menino, o olhar fixo, a fala um pouco enrolada, enfim, carregava um evidente desamparo capaz de atiçar o nosso – o meu pelo menos – altruísmo. 
Muita coisa aparentemente extemporânea, que parece repercutir o passado, influencia e modifica este presente confuso pelo qual passamos. "A viagem e outros contos" (editora Patuá), livro de meu amigo Luís Pimentel, vencedor do Candango de 2025, é um bom exemplo desse atrito. A coletânea reúne uma série de histórias recheadas de afeto e contadas por quem sabe muito bem manejar a escrita. Ao lado do apuro estético, aparecem nossas mazelas sociais de uma forma ausente da maioria dos livros atuais. Embora não haja qualquer evidência de ser sua intenção, Pimentel ensina que literatura não se faz apenas de boas intenções. Se a cerimônia da premiação em Brasília foi problemática, contando com um longo atraso das autoridades, inclusive daquelas com direito a um troféu sem que tenham escrito uma quadrinha sequer (coitada dessa plateia, gente!), a escolha do júri foi acertada. 
Numa sexta-feira, estava em casa quando pintou um zap do George Patiño, assessor de imprensa atuante e, como já se disse num tempo remoto, amigo ponta firme. Ele me oferecia um convite para assistir ao Victor Biglione. O instrumentista — argentino que, ao mudar-se para o Rio de Janeiro, transformou-se num brasileiro nato — está lançando “Tributo a Luiz Bonfá – Nos tempos do Jacarandá” (Mills Records). A homenagem não passa pela execução das músicas do “Jacarandá”, mas pelo uso da craviola de doze cordas, instrumento usado por Bonfá naquele disco incrível. Ouvi arranjos lindos, econômicos (violão e uma bateria discretíssima), que aqui e ali contavam com a participação da cantora Julie Wein. Tendo tocado com quase toda a MPB — “com o Wando, não!” — e mais uma pá de gringos, as mil e uma histórias do violonista são divertidas e instrutivas (para quem gosta da música brasileira). Aquela figura meio Rick Wakeman, ao longo da apresentação, bebericava o líquido de uma garrafinha. Alguém gritou: uísque? Água benta, foi a resposta. Quando pôde, Biglione não deixou de falar de como rechaça a intervenção dos EUA na América do Sul, nesse momento tendo a Venezuela como alvo. O filho de comunistas obrigados a se exilar da Argentina é fiel a seus velhos. 
Falei de três homens, todos com direito a passagem gratuita no transporte público. Meus leitores e minhas leitoras, não me queiram mal. Primeiro, essa coisa de old school não tem a ver com o fato de serem idosos. Tem a ver com o fato de manterem-se sempre meio à margem, sem se importarem com as novas ondas, com a moda. Nem é uma escolha machista, os exemplos vieram por acontecimentos recentes, mas, sim, eu poderia incluir nessa escola Angela Ro Ro, Sueli Costa, Zezé Motta ou, para não deixar de citar uma escritora, Elvira Vigna. 
No documentário “Toda essa água”, dirigido por Rodrigo de Oliveira e Vânia Catani, Lô diz que nos vinte primeiros anos deste século compôs cerca de oitenta músicas, colocando-se assim em movimento, não se acomodando ao que já produzira, aquela obra majestosa dos anos de 1970. Como o compositor não ocupou a mídia de forma ostensiva, essa fertilidade esteve ligada à necessidade artística dele, um compromisso ético afinal de contas. Essa posição vai ao encontro do que fazem Pimentel e Biglione: produzir sem se curvar à imposição seja lá do que for – mercado, tendência –, mantendo-se atuais. Triste de quem não os acompanha.

3.11.25

Uma festa de bolso

Era tempo de pandemia, e eu estava sentado na mesa do escritório — um puxadinho do quarto — quando a ideia explodiu na cabeça: Felifitá — Festa Literária de Fim de Tarde. Veio assim pronta, como quase prontos vêm alguns poemas. A ideia de uma reunião que pudesse acontecer em qualquer lugar, desde que à tarde, me foi soprada por uma musa. Não deveria dizer isso, já que foge ao assunto e é polêmico, mas muitos poemas meus nascem exatamente desse modo e, com isso, ferem de jeito a história de que literatura se faz com suor.

A Felifitá é uma festa de bolso — pode acontecer numa mesa de bar, num encontro de esquina, ao telefone, ou, tomando as palavras de Hyldon, autor de “Casinha de sapé”, “na chuva, na rua ou na fazenda”. Brinco que a inventei por estar cansado de não ser convidado para nenhuma das inúmeras espalhadas pelo país. Na minha, vou sempre, o que é e não é totalmente verdade, pois às vezes organizo o encontro, escolhendo os convidados, e depois me junto aos ouvintes.

Até hoje, fiz três ou quatro no Rio, uma em Belo Horizonte e a mais recente em Passos. As do Rio nunca foram um sarau, embora tenha havido leitura de poesias ou contos, já as mineiras foram. A de Passos, no início da segunda quinzena de outubro, aconteceu seis anos depois de minha última ida lá. A festinha, cujo nome, em processo de registro no INPI, recebi diretamente das mãos de uma das meninas de Mnemósine e Zeus, facilitou — a partir da literatura, meu esteio nesta vida — minha reaproximação com a cidade natal.

Vejam só: estar à toa, com as ideias soltas, me deu um nome. Passei a usá-lo em eventos amadores – depois que Nilma Lacerda, em resenha de “Aí onde não cabe” (editora Patuá) no site do jornal Rascunho, me chamou de amador, apoiada em Barthes, tornei-me fiel à ideia —, e eles não só têm me dado a chance de juntar amigos como também têm me ajudado a refazer afetos. Não é pouca coisa. Aliás, é um excesso. Nesse momento de puro regozijo egoico (que marcará toda a crônica, me desculpem), confesso: isso me tem feito um bem danado.

 

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No campo da criação, mas agora uma pensada e executada ao longo de muitos anos, ou seja, suada, estou com um novo livro na praça, “Os verbos estão cansados” (editora Patuá). Em dezessete contos, lido com personagens femininas (em oito), masculinas (em outros oito) e, em “A descoberta”, conto posicionado no centro do livro, com uma criança que tanto pode ser uma menina quanto um menino. Juliana Garbayo, escritora da qual muito ouviremos falar, escreveu o seguinte no prefácio:

“Ler ‘Os verbos estão cansados’ é se deixar levar por esse jogo onde cada resposta é, na verdade, o início de uma nova pergunta. E talvez seja essa a sua maior sacada: a intuição de que, enquanto houver perguntas, a narrativa continua viva”.

O trecho ilustra bem o que se passa em meus contos, gênero ao qual volto depois de oito anos (“Uns e outros mais dois ou três”, o anterior, compõe a coleção Estilingues 30, também da Patuá, e é de 2017). O livro, para quem quer conhecer o meu lado contista, está à venda no site da editora.

Aviso aos cariocas e aos que estiverem na “cidade maravilhosa, purgatório da beleza e do caos” (Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer) que no dia 11 de novembro haverá lançamento (no Ernesto Bar, localizado na Lapa, ao lado da sala Cecília Meirelles), um evento no qual meu amigo João Paulo Vaz também apresentará seus novos contos, reunidos em “Os meninos” (7 Letras).

 

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A crônica toda montada no ego escorrega no final. Na última terça-feira, dia 28, em uma operação desarrazoada, as polícias do Rio de Janeiro, sob o comando do governador Cláudio Castro, deixaram um rastro de mais de cem mortos, a maior matança da história policial brasileira — superou a intervenção no Carandiru e a mais recente, também no Rio desse governador, no Jacarezinho. Não acredito de modo algum que matanças desse tipo resolvam o problema da violência — mesmo que matem só os bandidos, o que nunca acontece, pois inocentes morrem aos montes, É só um teatro com vistas a receber os aplausos daqueles que não acreditam na possibilidade da vida comum em harmonia, uns porque lucram com o caos, outros porque a violência está tão próxima deles que a confundem com a própria vida. 




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