29.4.10

Alguns dos meus amigos

AB

Um mandruvá letroso inoculou em meu amigo, então pititinho, um zê de ipsilone como se fosse o xis da questão. E ele, envenenado e carcomido de letra, viu-se fonêmico. Em seguida frasal. Descambou em poético. Uma lua cheia de costa pro vento sonhando com marés quadradas nas hipotenusas menores do sol sustenido. São os nostálgicos do amanhã sem ontem os únicos a entendê-lo. Embora nem sempre.


AR
Tem morada naquela cabeça o gosto de amplitude infinita. Ah, talentoso! Ah, conquistador! Ah, justo! Na linha da história, sua ciência, nossa amizade será não mais do que alguns pontos, todavia fortes, pois deles alimenta-se a linha inteira (soma enfim) na qual negros chegam ao poder do Império e marginalizados ganham voz. Meu amigo, que busca fixar justiça no que será história, semeia na militância o sorriso e a sensibilidade artística, deixando a dor, sua miserável companheira, longe disso, como se nunca houvesse existido.


HSN
O único erro que não se deve cometer é acertar sem errar. Errar uma segunda vez é como lambuzar-se de manga toda vez que se chupa uma. É inevitável caso não se disponha de garfo, faca e prato. E mesmo que se disponha, todos sabemos: uma manga chupada é melhor do que uma manga cortada e mordida com decência.
Aliás, não é no chão decente que brota saudável o fruto da criação. É no solo de lata enferrujada; no campo das dúvidas banais; nonde sobra esterco do belo. Se jardineiro é quem conhece e discorre sobre a ciência das flores e, indefectível, produz as mais vistosas e enebriantes, meu amigo não pode ser um deles. Mas ele é, eis o fato.


MJO
Não se é ator sendo-o. Talvez, sim, arqueando-se as pernas, por si só arqueadas, ao rir-se triste das dores que o lugar fora do palco impinge em cada um de nós. O buraco é mais embaixo da unha. Ele sabe, mas prefere pensar de outro modo, ou melhor, gostaria que o buraco não fosse ali tão perto dos dedos que apontam, que agarram, que coçam e caçam. O palco poderia ser o buraco.


MTC
Ele dorme acordado. E acorda dormido, momento em que afunda os meninos e as meninas que sabem só um cadinho raso da vida nos próprios sonhos. Neófito, sempre volta ao local do crime, e ali encontra a fuga adulta da infância nas digitais do que será, para todos, nostalgia impalpável. Chora e, choroso, dorme acordado para acordar dormido e redescobrir a seta do início com a cabeça no rabo. Repisa.



NV
Quem estuda seus passos de ritmo moderado apreende a utilidade da mochila — sempre às costas. Nela se acomodam o verso futuro, o desenho por se desenhar, a música em gestação e ainda o passo rápido que um dia animará seus pés, fazendo-o chegar a si mesmo.


PB
Descobriu a poesia entre os presos. Como era ele o carcereiro, ofereceu a ela a oportunidade de viver livre, desde que se encarcerasse nele. Ali ela está, e bem cuidada. Não são felizes porque poetas e poesias não o são. Nem querem sê-lo.


RT
Nada escapa de seu olhar, e este comanda a mão. E das mãos uma peça se fará visível a outros olhos. Não será peça para deleite, mesmo que bela, pois toda beleza questiona e confunde. Será panfleto de um artista deslocado, cuja compreensão alcançaremos se e somente se estivermos também pisando no deslugar.


SF
Sob o boné, a urgência. Dela, manuscrito, um trapo lavado a seco e sua mensagem dúbia, mas sem rodeios. O álcool dos mimeógrafos sempre deu algum sentido aos poemas marginais, e esses subverteram os poetas que escapavam aos revolucionários. Brotou dessa guerrilha sem armas outra geografia das ruas que se pensavam apenas como concreto e traço. Ele, capitão temente aos recrutas rasos, sugeriu a direção na qual o norte seria apontado. Com isso a bússola engasgou e, vesga e soluçante, deu-se a ler.


SS
O inominado ele chama pelo nome de guerra. Assim, Judith é, na lembrança da primeira comunhão dele, a nave da igreja vazia e o desgosto do corpo de Cristo sobre a língua. Penélope é a meia trava que o atacante, ser intuitivo, dá temendo os conhecimentos de cantos e ângulos que o goleiro possa ter. Isocléa é tudo o mais que está no cesto do inexplicável. E Isolda, aquilo que porventura escape do cesto.


XM
Todo vegetal brota em sua mão. Por isso, sua visão de mundo, em barquinho de papel, escorre esconsa pelo Aquífero Guarani. Os perdigotos de sua fala falam por si, em silêncio, deixando-se entreouvir seus sonetos brancos, de amor e de revolta.

28.3.10

Surpresas de 2010

A máxima aceita por todos diz que o ano no Brasil começa depois do carnaval. Com a Copa do Mundo, dá-se um chega pra lá nesse teórico janeiro e tudo principia na palma da mão de julho. Assim é.
Assim seria, pois neste 2010 o ano começou no meio da folia, quando foi preso o governador do Distrito Federal. O homem, que foi flagrado recebendo um dindim escuso, que pulou pra se esconder, que inventou desculpa esfarrapada, foi pro xilindró. Claro, prum xilindró bacana, de onde, provavelmente, com recursos jurídicos de toda sorte, deverá sair em breve. Não faz mal, fez-se e houve um gesto que o condena. Aos poucos o país melhora essa questão, sou otimista. Não tarda muito – pense no tempo dos países, não no ligeiro pelo qual passamos por aqui –, não tarda muito e veremos gente dessa espécie devolvendo a grana aos cofres públicos.
Sinais efetivos de que não nos devemos curvar ao poder do tempo, particularmente do tempo cultural. Comecemos o ano no dia primeiro de janeiro ou no 11 de fevereiro, pouco importa, somos uma nação jovem, ainda jovem, e temos de acertar muitas coisas tortas largadas por aí.
Cuidar da educação: parece que estamos num impasse. Fim do vestibular, cotas, escolas particulares tentando tornar-se grifes ao mesmo tempo em que há crise financeira em quase todas. Ainda não está claro como fazer a excelência voltar às escolas públicas de forma definitiva e universal.
Cuidar da saúde: discute-se a melhor forma de gerenciamento; há dicotomias absurdas (medicina de altíssimo nível para poucos e sofrível para a maioria); os governos estaduais e municipais encarregam-se de comprar os medicamentos de altos custos e, invariavelmente, estes faltam aos necessitados.
Cuidar da infraestrutura: deita-se falação sobre transporte ferroviário, mas tudo anda no ritmo das marias-fumaças; a navegação fluvial é incipiente; as estradas sofrem as mesmas anomalias observadas em tantas outras áreas (algumas ótimas, a maioria deixada à própria sorte).
São coisas tortas, sim, mas, em retrospectiva, acho que tudo melhorou um pouco. Talvez um pouquinho. Já é um passo. Repito: sou otimista. Responsáveis por essas melhoras: PSDB e PT, no plano político, com 50% de mérito para cada um, a despeito do que eles, em confronto, nos dirão em ano eleitoral. No campo que interessa, a responsabilidade é nossa, da sociedade civil, de nossas representações autônomas e de nossos gritos espontâneos aqui e ali. Se, como se diz no futebol, acertarmos o último passe, ninguém vai nos segurar. Podem vir políticos mal-intencionados, larápios assim ou assado que a gente enfia o gol de nossas necessidades na fuça deles. Sem violência, com pressão do ataque e drible de craque. Exatamente como os estudantes de Brasília fizeram desde o início da crise local. Esses meninos e essas meninas, sim, são o orgulho da mamãe, do papai e nosso.
Com um ano começando tão cedo, dá no que está dando.
A Unidos da Tijuca fatura o carnaval carioca, passando uma rasteira merecida nas escolonas.
O Botafogo, esse injustiçado, torna-se bicampeão da Taça Guanabara.
Um poste candidata-se a presidente do país para concorrer contra um carrancudo. Não devemos temer cara feia, deveremos estar atentos e prontos para as lutas. Como sempre foi e é, independentemente do calendário.
Por enquanto, com esse ano de quase doze meses, jogo preocupações maiores de lado e comemoro. Grito assim: Fogooooooooooo!


23.3.10

Programa para 27 de março, no Rio de Janeiro


Amigos, a barbada é a seguinte: dia 27, no Cinemathèque de Botafogo (RJ), Rua Voluntários da Pátria, 53 - Botafogo – RJ, a boa é ir ao lançamento de "Como se não houvesse amanhã", da Record, coletânea baseada em músicas do Legião Urbana, mais precisamente do Renato Russo.

Mais detalhes, dê um pulo aqui.

6.3.10

Lançamento de livro


No dia 27 de março, daqui a pouco, rapazes e moças talentosos lançarão no Rio uma coletânea de contos inspirados em música do Renato Russo. Entre eles, meus amigos Sérgio Fantini e Mariel Reis. Será uma festa, vale a pena esticar as pernas até lá (veja o convite) e, de quebra, comemorar os 50 anos do líder do Legião. Eu vou.

19.2.10

Receitas talvez desnecessárias



Para dias noturnos

Tome o alho e o bugalho nas mãos, esfregando-as até tornar o alho bugalho e vice-versa. Feito isso, espalhe a massa compacta derivada do movimento anterior sobre o lombo de tudo quanto é tristeza. Deixe-o descansar, aproveitando parte desse tempo para descansar você mesmo.
Ao voltar ao batente, peneire o pó das dúvidas, macere o limão para extrair-lhe o azedo das raivas e bata em neve as claras da boa vontade e da crença. Use, para as claras, garfos de gratidão e evite batedeiras, britadeiras e outras máquinas que são ágeis, mas brutas.
Deite num pirex um fio de esperança e um pouco do leite de Eva, mãe e mulher antes que pecadora. Arrume o lombo nessa mesma travessa, cobrindo-o com a química da bonomia. Leve-o ao forno morno e deixe o calor dar conta do recado.

Para dúvidas políticas

No liquidificador jogue inteiro o discurso mentiroso, que sempre vem protegido pela casca da desvergonha. Triture, triture e triture mais um tico. Se preciso, peça à vizinha o multiprocessador e triture novamente o já triplamente triturado. Virou poeira? Não assopre. Nem se espante, esse é o ponto.
Bote sob o sol do meio-dia o prato das alianças negociadas, ou melhor: das negociatas — com isso, a receita não ficará nem melhor nem pior, mas a cachola dos arquitetos dessas estruturas interesseiras deverá ficar bem quente (são merecedores).
Em fôrma untada com a manteiga salgada da verdade, derrame o líquido das intenções ditas doces, proferidas por essas pessoas que não se cansam de se dizer tementes a Deus. A manteiga vexada fatalmente irá ferver como num milagre, acomodando-se depois numa pasta oleosa. Sobre o prato das negociatas então bem aquecidas pelo sol tropical e pelas culpas ainda que passageiras, mescle a pasta ao pó do discurso, sovando a mistura até formar uma massa que se possa moldar com facilidade. Na tradição rural, aconselha-se ao cozinheiro levar tudo no deboche e na descrença, o que aguçaria o sabor dessa espécie de pastelão.
Sirva o prato frio, acompanhado de licor da pupila jabuticabosa dos olhos cegos da justiça.

Para alimentar os filhos


Escolha na feira hortaliças viçosas e frutas suculentas.
Em casa, antes de misturar isso e aquilo, deixe escapar uma palavra doce para as crianças, mesmo que o almoço não tarde, pois não será isso que lhes tirará o apetite, antes pelo contrário. Em seguida, e sempre, esteja cozinhando ou não, tome como compromisso inalienável não mentir para elas nunquinha durante essa vida tão breve. Sequer mentiras adornadas com trufas e biscoitos da vovó ou insufladas pela melhor das intenções.
Por fim, com o coração arejado, faça o que bem entender com as compras recém-feitas. Só não deixe de enfeitar o prato: a beleza atiça a fome dos inocentes.

26.1.10

A inviável harmonia da vida

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação -  Folha de São Paulo (5/12/1995)

Nada mal para um autor ter o livro de estréia prefaciado por João Gilberto Noll.

O aval de um escritor de peso, embora não signifique por si só garantia de excelência, torna a leitura da obra em questão quase obrigatória para quem se interessa pela atual produção literária no Brasil.

Em "Contos de Homem", Alexandre Brandão, 34, mineiro radicado no Rio, conseguiu a façanha _e a obra, para crédito do prefaciador e apesar da horripilante capa, não decepciona.

O livro é dividido em três partes. A primeira, "Duas Senhas Básicas", traz dez contos erguidos sobre uma estrutura, digamos, tradicional, em sua forma. O que neles mais toca o leitor _e toca forte_ é seu aspecto onírico, meio gosmento, radicalmente amargo e um tanto sanguinolento, fazendo lembrar _não por acaso_ "A Fúria do Corpo", primeiro romance de Noll.

Em "O Corpo Não Tem Memória", por exemplo, um homem se vê castrado e nos leva a mergulhar numa existência de "terceiro sexo", complicada, inaceitável até, mas mais próxima do que significaria um ser humano "ideal". Leia o seguinte trecho de "Encontro na Madrugada sem Lua", expressão do mesmo clima: "Agora sou eu. Beijo sua testa gelada. Podendo fazer mais, faço. Ponho o coração na boca e o mordo. O gosto é amargo, quase intragável. Para o que quero, a fome é maior. Engulo os braços, pêlos, olhos. Os nervos entram em meus dentes, sangrando a gengiva."

Não há meio termo: ou se gosta ou se abandona o livro de cara _o que não deixa de ser meritório para um autor que se apresenta como alguém cuja intenção é não fazer concessões.

Mas terá valido a pena ir adiante, ao menos para ler "Missa do Galo" (nova reelaboração do original machadiano), em que se afirma: "Mas antes da larva e casulo, a primeira quinta-feira, o café da manhã com mamãe. Acompanhou-me um vulto branco; longe de ser fantasma ou culpa, era o que não digo. Não por pecaminoso ou ridículo, mas para não perdê-lo".

A segunda parte, "Escurecimento do Material Poetográfico", talvez seja, como bloco, a melhor do livro de Brandão. São sete textos curtos, com destaque para a curiosa "A Quadrilha do Drummond", mistura do famoso poema do poeta mineiro com o clima da música "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola: diálogos e vozes interiores simultâneas, com inúmeras iras e segundas intenções num trânsito engarrafado.

Por fim, em "Uma Só Confissão de Outras Tantas", a terceira parte, Brandão dá um (pequeno) espaço para o lirismo urbano e juvenil, ainda que, prisioneiro de seu gosto pela felicidade ausente, espete-o sem piedade página por página.

No conjunto do livro, assim, predominam o desencontro, o amor impossível, o ódio como "mola propulsora da vida", a entidade do sexo como incontornável tormento existencial. Tudo isso, numa linguagem que busca constantemente o poético, embora manchado de plasmas e pus e sangue.

No prefácio, João Gilberto Noll afirma: "...como profundo escritor quer muito além, quer por exemplo revolver e reavivar o drama humano com uma espécie de humor irado, quase bélico _este, sim, pertencente ao veneno purificador do ato artístico, esta experiência cheia de barbárie e estranheza e que toca, destemida, a nossa mais íntima e encoberta natureza".

PS: O livro marca a estréia de uma nova editora, a Aldebarã. Que seja bem-vinda!

A OBRA
Contos de Homem, de Alexandre Brandão. 143 págs. Editora Aldebarã (Travessa
do Passo, 23, sala 507, Rio de Janeiro, CEP 20010-170, tel. 021/220-6409). R$
15,00

Os dramas e gargalos do mundo da criação


Ronaldo Cagiano é escritor

26/01/2010


Um olhar sobre a realidade cultural contemporânea, principalmente  a que sobrevive a reboque dos fenômenos de comunicação de massa, como a internet, o cinema e a literatura, são objetos do novo livro de Alexandre Brandão, que enfeixa duas novelas em A câmara e a pena (Ed. Cais Pharoux, Rio, 2009, 156 pgs).

Mineiro de Passos, com uma obra já madura e reconhecida, Brandão nesse novo livro discute o mundo da produção artística, tratando de questões ligadas aos seus impasses e entraves, como também de situações que muitas vezes exteriorizam as vaidades e carências individuais,

Na primeira história, Um pouco mais que um diretor, o Alexandre penetra o quotidiano de um set de filmagem. Aos poucos, o leitor desnuda um ambiente em que sobressaem as nuances de uma produção cinematográfica, com todo o percurso técnico, os tropeços de uma filmagem e a transposição realidade-ficção, quando o simbiótico encontro entre subjetividade e técnica acaba por expor o exaustivo trabalho de preparo e direção de um filme e denuncia as dificuldades de se fazer cinema num País que ainda não conta com o aparato tecnológico e o aporte financeiro das grandes companhias do primeiro mundo.

Já Em torno de uma xícara de café, o tema da criação literária é abordado por meio encontros semanais de um grupo de candidatos a escritores, que usam as novas ferramentas de mídia para divulgarem suas obras – como blogs e internet – lutam contra os gargalos de distribuição, a insensibilidade da crítica e os guetos editoriais. Nessa novela, que enceta uma oportuna reflexão e questionamento sobre o meio literário vigente, destaque para os conflitos, egos, interesses e anseios que permeiam a relação dos escritores contemporâneos com esse metiê. Aqui, espelha-se o que comumente acontece: circulam personagens que reverberam os sonhos e preocupações de  gente em busca não apenas de uma identidade ou um estilo literário, mas para ter voz e vez num sistema editorial cada vez mais competitivo e concentrado no mercado, cujo espaço é partilhado pelas panelinhas bafejadas nos cadernos de cultura da grande imprensa, que impõem condições cada vez mais fechadas e apaniguadoras. Entre as questões suscitadas pelo autor, ainda aparecem sutilmente os fantasmas da ditadura militar na pele de um dos protagonistas, um dos escritores do grupo, quando descobertas suas ligações com golpe que instaurou a ditadura militar (1964-198).

Com A câmara e a pena na mão, Alexandre Brandão incide o foco e a escritura, com sutileza, poesia e uma profunda e tensa percepção dos dramas e conflitos contemporâneos, tocando naquilo que é inerente à condição humana, como a vida, o tempo, as frustrações e os fracassos da vida artística e cultural. Não é um livro sobre os recalques de escritor ou de diretor de cinema, é um consciencioso mergulho nas águas da solidão e da necessidade de sobrevivência pessoal e intelectual que são parte da trajetória de quem se aventura a fazer arte numa época cada vez mais estereotipado pelos fetiches do deus mercado e as seduções da mídia, nesse tempo que, como diria o saudoso José Paulo Paes, está povoado de “vidiotas e internéscios”, relegando a existência (pessoal e literária) à banalização ou à morte.

Com essa terceira e bem sucedida incursão ficcional, recorrendo a ícones geracionais numa obra que fala sobre livros e sobre as demandas que norteiam o processo criativo nas diversas linguagens, Alexandre Brandão assegura seu lugar no afunilado cenário da literatura brasileira. E, com talento, originalidade e uma mirada peculiar sobre a nossa realidade, sem dúvida, figura entre os grandes nomes da atual prosa brasileira.


10.1.10

As particularidades de janeiro

Janeiro é o mês que nos pega com um pé em dezembro e outro em fevereiro. Não se quer dizer com isso que seja desprezível. Muitas pessoas nascem nele: lembro-me de meu sobrinho mais velho, de três amigos e da filha de um deles, além de minha sogra (calem-se: a minha não está na categoria das sogras das piadas). Para quase todo o mundo, é o período de férias. Há coisa melhor do que férias?
É verdade que alguns confundem o mês à temporada das ressacas. Nada mais errado, ainda que as ressacas de janeiro sejam como as chuvas de março: inesquecíveis. Calha então de janeiro ser mês de promessas. Não bebo mais. Nem como. Não pulo cerca. Não cerco Lourenço.
Na realidade, promessas, muitas, foram feitas em dezembro, mas as de janeiro dão as mãos ao Remorso, são promessas sobre promessas, portanto, é o momento em que o Fracasso passa a pilotar o destino. Por isso, lavam-se as escadas das igrejas de Salvador. E chove tanto. E o calor finge que não é com ele.
Não há frutas de janeiro. Tampouco flores. Em compensação, aflora-se a sexualidade juvenil. Os professores tiram o jaleco.
Em janeiro, envergonhada, a celulite ganha as praias, e as cachoeiras não escondem suas trombas d’água. O avaro rói a unha para economizar as mangas tardias. Uma penca de meninas destrói as bonecas que o Natal esqueceu sob as árvores de suas casas.
Em janeiro, o alcoólatra toma juízo. Às vezes, com vermute, na calada das noites pequenas e intensas. A lua, por seu turno, ilumina a noite porque esse é seu destino. Por ela, regurgitava o calor medonho do sol e recolhia-se à escuridão de sua vizinhança.
Não se dança bolero em janeiro. Os apaixonados perdem-se no iê-iê-iê, e os desesperados, apaixonados ou não, descrentes com certeza, jogam búzios e deixam trabalhos malfeitos em esquinas inocentes.
A desmemoriada tenta nas quatro segundas-feiras de janeiro, nas quatro terças, mas não em todos os domingos, decorar o samba enredo do Salgueiro, esquecendo-se que desfilará na Mangueira.
O mar, esse incansável, espreita os bobos e dá-lhes caldos, alguns mortais. Sem saber a situação na qual lhe foi enviado o brinde, Iemanjá agradece, soprando as costas do Brasil com seu bafo sensual. Janeiro é um deus-nos-acuda, com orgasmos ao meio-dia e quase orgasmos em horas impróprias.
Janeiro é começo, logo, nele engatinhamos sem fraldas, ainda que precisando bastante delas. Em que outro mês os cobertores poderiam ganhar o direito de tomar sol nas áreas minúsculas dos apartamentos minúsculos?



Os neuróticos entram em parafuso, pois seus analistas estarão de férias. O padre reza missas sem cuecas. Tudo no primeiro mês do ano.
Os presos se odeiam em janeiro e, por isso, abandonam seus comandos. É o mês do indivíduo. Mas é também o mês em que o prefeito, o governador e o presidente tomam posse. O povo ensaia uma esperança, mas guarda-a para depois do carnaval, pois lá fora um bloco do sujo grita por seu nome.
Os homens, achando-se felizes ou até mesmo sendo, vão ser reis momos. Tudo indica que em fevereiro, raramente em março. Paciência. Dedica-se janeiro à preparação.

Num sábado, estávamos todos lá

Ieda Magri, Folha Carioca, Setembro de 2007

Conheci Alexandre Brandão num jantar de trabalho na casa do Paulo, editor deste nosso jornal. Calado, quase não falou a noite toda. Achei-o meigo, doce até. Uma amiga comum, Lilibeth, nos apresentou e  ele me presenteou com dois de seus livros Contos de Homem (1995) e Estão todos aqui (2005). Fiquei entusiasmada com duas coisas antes de abrir os livros: o primeiro tem prefácio de João Gilberto Noll, autor que gosto muito e um dos primeiros que indiquei nesta coluna; o segundo pela semelhança do título com o de meu livro que estava no prelo: Tinha uma coisa aqui. Ele plural, eu singular. Se o jantar não estivesse tão bom e se os olhos de D. Maria Helena não me penetrassem tão fundo, eu teria me despedido de todos naquela hora e me trancado em casa para descobrir os livros.

Mas era sábado à noite e desconfiei que minha curiosidade podia esperar. Tive uma conversa longa com D. Maria Helena, mulher adorável e misteriosa; fui com ela até sua casa e me despedi com a promessa de visitá-la em breve. As histórias que me contou com o cuidado de deixar sempre algum detalhe em suspenso me levarão de volta à sua casa. Eu não sabia ainda que esse mistério pendurado em qualquer canto dos olhos de D. Maria Helena, o mesmo emprestado às histórias que me contava, estaria presente de forma inequívoca nos contos de Alexandre Brandão, e muito menos que pudesse arrancar daquele seu jeito doce, uma fúria tão louca como a que vi, principalmente em Contos de Homem.

Não dá pra falar de todos os contos desse livro riquíssimo, cada um sempre com um susto, um punhal, alguma força inesperada que avança por trás das palavras, adiando o desfecho da narrativa e surpreendendo o leitor. De dois gostei em especial: “A novidade” e “A primeira leitura.”. No primeiro um narrador conta a história de um primo suicida, Gabriel, que depois de várias tentativas frustradas consegue, com auxílio de um manual, passar para o que ele chama de segundo plano. De lá, corresponde-se com o primo dando detalhes da vida após a morte. A fina ironia desse conto, em que vislumbramos até mesmo uma conversa com Borges, é genial. É essa ironia que marca também o outro conto que me tocou profundamente. Trata-se de uma releitura, ou de uma vivência mesmo, por parte do personagem Maurício, do romance Dom Casmurro de Machado de Assis. Maurício fica perturbado na primeira leitura do livro e entrevê Capitu nos olhos de ressaca de Luma e a desfaçatez de Escobar no seu amigo Sabão. É Baco, o pivete, o menino de rua que se torna um amigo, o único que dança meio alheio à história real, mas confidente imediato do que se passa no romance. Sentimos, na leitura, que a linha tênue entre o fato e a ficção pode ser borrada a qualquer momento e, como no romance de Machado, procuramos saber logo o que  se passa entre os amigos adolescentes de 18 anos. O espaço que há entre a primeira e a segunda leitura  do romance é a medida do acontecimento e da agonia de Maurício.

De Estão todos aqui escolhi destacar o último conto, “Todas as fichas.” Nele alguns vagabundos ganham a vida em suas trapaças noturnas. Jogadores profissionais, mas também meio bandidos, já que acabam se metendo, uns ao acaso e outros de maneira muito pensada, em crimes pesados. Galhardo, sem dúvida o mais humano do grupo, é o primeiro que vislumbramos no início da narrativa: jogando cartas no que chama de “a mesa dos sonhos”, formada por profissionais gabaritados. Está às voltas com um sanduíche que contempla como se fosse uma promessa boa. O sanduíche dá o tom do que vai na mesa de jogo: “cheiro de carne viva no boi finado, acebolado e frito.” O clima de perigo que ronda a mesa e a vida desses jogadores, junto com a imensa humanidade desse homem que joga e ama, lembra a fineza da escrita de João Antônio, outro escritor que indiquei nesta coluna e que gosto demais. Meio conto policial, meio outra coisa, beira de vivência e vida pulsando, a rotina desses marginais - em todos os sentidos da palavra – merece ser lida pausadamente de modo a revelar a força da escrita contida do autor.


Embora os contos que escolhi façam referência a outros escritores (“Todas as Fichas” se abre com uma citação de Macário de  Álvares de Azevedo), não há vestígios de eruditismo nos contos de Alexandre. Penso que quando não são bem manejadas, as referências às obras e aos escritores consagrados se convertem em pedantismo ou falsa erudição, como se o autor tivesse que provar que leu, que conhece, etc. Quando me deparo com um livro desses, que insiste em marcar pesadamente certas referências, mostrando o tom falso que há por trás da teia da escrita, faço como o bibliotecário Lúcio: ao inferno! Não é o caso de Alexandre. Como os olhos de D. Maria Helena, seus contos mostram até onde a cumplicidade do leitor alcança.

A realidade é só um detalhe

Carlos Herculano Lopes, Estado de Minas, Caderno Cultura, em 4/06/2009


Mineiro de Passos, vivendo há 30 anos no Rio de Janeiro, o escritor Alexandre Brandão está com livro novo na praça. Ele lança hoje, em Belo Horizonte, no Agosto Butiquim, no Prado, A câmara e a pena (Editora Cais Pharoux, 160 páginas, R$ 30), que traz duas novelas: Um pouco mais que um diretor e Em torno de uma xícara de café.

A primeira novela, segundo Brandão, gira em torno de uma filmagem, sob a direção de um estreante. Só que essa filmagem esbarra na incapacidade da equipe em dar sequência ao projeto, devido a vários problemas. Já a segunda acompanha um grupo de escritores que, fugindo de uma oficina literária, resolve trocar seus textos e encontrar-se periodicamente para discuti-los. “As coisas vão andar, haverá discussões, quase cisões, mas depois tomarão um rumo peculiar com a chegada de um casal de velhos que, no início, ficará de longe observando o trabalho ruidoso daquele bando e, mais tarde, interagindo com eles, alterará a vida de todos”, conta o autor.

Este é o terceiro livro de Alexandre Brandão, que já publicou a antologia Contos de homem (com prefácio de João Gilberto Noll) e Estão todos aqui. Ele revela que começou a escrever ainda em Passos, onde viveu até os 15 anos. Espelhava-se em autores da terra, como José Alexandre Marino, Antônio Barreto e Marco Túlio Costa, dos quais foi se aproximando. “Depois ficamos amigos, e foi Barreto, inclusive, quem sugeriu ao pessoal do Suplemento Literário de Minas Gerais que publicasse alguns textos meus. Mais tarde, Marco Túlio me convidou para escrever uma crônica semanal num jornal que ele editava lá em Passos. Passei a dividir o espaço com o Marino, e fechamos o círculo”, lembra Brandão.

Leitor de Machado de Assis, Ernesto Sábato, Júlio Cortázar, Guimarães Rosa, Dostoievski, Luís Vilela, Graciliano Ramos e tantos outros, Alexandre Brandão confessa ainda que, ao criar suas histórias, quase nunca busca inspiração em fatos reais. Quando isso ocorre é apenas um detalhe ou outro que tira do cotidiano, para pontuar algum aspecto da narrativa. “Mas por incrível que pareça, no caso das duas novelas de A câmara e a pena, há muitas vivências minhas, ainda que nenhuma das tramas narradas tenha ocorrido realmente. Minha mulher trabalhou um bom tempo com cinema. Daí eu intuir um pouco como funciona esse mundo. Claro que é apenas intuição, mas aproveitei um pouco dela para fazer literatura.”

Além de se dedicar à ficção e à economia, como funcionário do IBGE, Alexandre Brandão criou o  www.noosso.blogspot.com, embora confesse não ser um entusiasta da internet em se tratando da escrita. “Quando comecei a fazer crônicas para o jornal de Passos e para um outro, de bairro, aqui no Rio, achei que poderiam também ficar registradas em um blog”, explica. “No meu caso, ele só é conhecido pelos amigos mais próximos. Vez ou outra é que recebo a visita de um estranho ou do amigo de um amigo. Mas vejo que existe um movimento intenso nesse espaço virtual. Autores ‘nascem’ ali e depois migram para o livro. Existem sites que são interessantes. Verdadeiras revistas literárias. O meu é caseiro.”

A câmara e a pena
Lançamento do livro de Alexandre Brandão, hoje, às 19h, no Agosto Butiquim (Rua Esmeraldas, 298, Prado). Entrada franca. Informações: (31) 3337-6825 

Narrativas que propõem ciladas e interrogações


Cristina Zarur - Prosa e Verso, O Globo, em 25/06/2005.

Em novos contos, Alexandre Brandão examina o cotidiano


Quatro contos e uma novela compõem “Estão todos aqui”, livro de Alexandre Brandão lançado pela coleção Novo Conto Novo da editora Bom Texto. Mas seria ele um novato, que só agora dá a cara e as palavras ao cenário literário? Há dez anos o escritor publicou “Contos de homens”, cuja apresentação de João Gilberto Noll alertava: “Alexandre Brandão não vem apressado para os líricos abandonos da raça; ele reluta em aderir sem mais às liturgias primordiais que a tudo consolam, pois como profundo escritor quer muito além, quer por exemplo revolver e reavivar o drama humano com uma espécie de humor irado, quase bélico... ”
Não é à toa que Brandão dedica neste novo livro suas “armadilhas e fugas” ao tempo. O hiato de dez anos entre uma publicação e outra modificam a dicção do escritor? Talvez o grisalho dos cabelos e o bater em portas de editoras sejam fatores de desalento. Mas não. Esse mineiro de Passos, economista de poética matemática, enreda uma prosa que propõe ciladas ao leitor.
“Estão todos aqui” são textos de amores e interrogações. Por meio de um gesto, de uma palavra ou do silêncio, os personagens (e narrador) indagam sobre a própria veracidade dos fatos. Será? Talvez? São questões que pontuam os textos de Brandão, nos quais se tece uma realidade palpável, não uma precária metafísica. Narrativas que interpelam o real a todo momento.


Esperanças diferenciam e irmanam os homens

Em “Outra fila brasileira”, Brandão coloca a lupa no cotidiano, fundindo interior e exterior, particular e universal. Assim, Lívia, a protagonista do conto, vivencia um drama comum a tantos: a burocracia das filas onde as mazelas socioeconômicas perfilam os excluídos. Porém, se as esperanças diferenciam os homens, também os irmanam. Em “Domingo cuidamos dos filhos”, um pai se vê em apuros diante das desconcertantes perguntas de Carla, a amiguinha do filho. O que parecia ser um prosaico domingo repleto de brincadeiras infantis, revela outras sutilezas: o abismo entre o macho e a fêmea.
Brandão não escorrega em dicotomias: encontros/desencontros, solitários/solidários, homem/mulher, pai/filho, cidade grande/interiorzão. O escritor propõe conexões e as coloca no embornal da ficção. Talvez a metáfora da totalidade se ajuste ao título do livro. “Estão todos aqui” aponta para a aglutinação e a fusão dos fragmentos da existência. Nesta ótica, a vida não é maniqueísta, e os personagens se tornam complexos.

Desponta um novo contista


Duílio Gomes (Estado de Minas, Segunda Seção, 12/11/1995)



A fonte do conto mineiro continua jorrando. A tradição desse gênero, nas Gerais, sempre fala mais alto, apesar dos modismos editoriais que insistem em formar mapas cronológicos para escolas, tendências, o escambau.

A bola da vez do conto mineiro se chama Alexandre Brandão. Mineiro de Passos, mora hoje no Rio. Para não fugir à regra literária, começa no short-story. E começa bem, como atesta o competente João Gilberto Noll na apresentação deste “Contos de Homem” (Ed. Aldebarã). Noll, que não costuma emprestar o seu aval com facilidade aos que metem o pé na estrada pela primeira vez, destaca as qualidades do contista mineiro e vê nele um talento emergente — “Alexandre Brandão não vem apressado para os líricos abandonos da raça...”

Brandão não emigrou de nenhum grupo ou geração. Não traz compromissos firmados com nomes ou tendências. Free-lancer, vem descobrindo sozinho os seus caminhos. Sua geração, a de 80, é a pós-tudo. E isso facilita a sua carpintaria. Seus relatos curtos possuem estilo próprio, não lembram fulano ou sicrano, não deixam pistas para o leitor ou crítico detectar seus filões iniciais. Esse mistério, muitas vezes, se torna virtude.


Luz Néon

Os 23 contos do volume vêm divididos em três grupos. As histórias são líricas, eróticas e, às vezes, se aventuram pelo poema em prosa. A poesia, aliás, está presente nessa prosa curta e funciona como luz néon na noite — norteia, pisca, mas não cega. A descoberta do sexo na infância, o duro aprendizado da vida, os conflitos do amor na maturidade, o êxtase, o delírio, a perplexidade: tudo forma, como tijolos, um edifício pessoal, de grife. Os títulos são originais, curiosos “Extinção dos Jacarés”, “Felicidade em Dó Menor”, “Relato das Taturanas”, “Matemática Bufa”. E o autor acaba fazendo, como pede o gênero, o lúdico essencial — reescreve Machado de Assis (“Missa do Galo”). Uma pequena amostra de que ele poderá voar mais alto brevemente no seu gênero inicial ou na novela, quem sabe no romance.

Nelson Vasconcelos, como João Gilberto Noll, também percebeu, nas entrelinhas, o talento de Alexandre Brandão (“A musicalidade deste livro não é para ser plugada em alto volume. É intimista, merece recato e falta de pressa.”)

O autor lança “Contos de Homem”, brevemente, em Passos. Depois autografa no Clube Ginástico, no Rio.

30.12.09

Versos Íntimos - Augusto dos Anjos


Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

12.12.09

Um Natal

Na minha infância, houve uma Geroma (ou seria Geromba?). Houve também Ana Germana e Sá Inês. Sá Chica; Dita. Houve um seu Frota. E meu tio e padrinho Lozo.
Houve um tombo da carroça. Manta numa troca de uma patativa por uma bicicleta. Carreira que levamos, eu e meus amigos da rua, do Dê da Dona Maria. O velório da mãe da Dona Antonina, fessora do terceiro ano. A magia da casa de minha avó Tomásia, cega que se mantinha longe da escuridão.
Aquele passe de Pelé. O gol. A Copa de 70. Houve a gaiola silenciosa na mão do tio Lupércio. Reunião de homens na varanda falando de negócios. O cavalo Bainho, o Segredo e a Lontrina. Também o Guarani. Dez pães de queijo comidos antes do almoço — o que deixou estarrecido meu tio Lozo, logo ele, que matava frango à distância, com tiro de cartucheira. E ainda a bica fria do Gordurinha, onde éramos obrigados a fazer as necessidades no fundo do pomar.
Houve um romance de mentira com a vizinha. Numa tarde, a brincadeira de carregar às costas por toda a casa uma de minhas irmãs: eu de Cristo e ela de cruz a ser levada ao calvário que nunca chegava, e nunca chegou. Tudo indica que não sou Cristo que se preze. E minha irmã nem de brincadeirinha convencia, ou convence agora, como cruz.
As balas da Kopenhagen levadas do Rio de Janeiro por minha avó materna pros netinhos caipiras do interior de Minas. O mar nas férias. A ilusão de que, tendo o mar por perto, tudo o mais seriam balas de frutas e Nhá Benta. Já então a solidão beliscava a gente, e a gente, inocente demais pra entender dessas coisas.
A conversa mole de meu pai tentando encorajar alguém a comprar ou a vender. O momento encantado de vê-lo apartar os bois. E a suspeita de que ele carregava, no corpo franzino, sabedoria e ansiedade. Houve meu pai.
Houve minha mãe. Os trovões que a deixavam paralisada. Os raios que a deixavam como que inválida. De outro modo, o sorriso que iluminava seu rosto de menina peralta, que algum dia, na infância, quebrara vidraças de vizinhos.
Sopa de macarrão temperada pela Célia. A Célia e seu carinho desinteressado. Houve uma pedrada, aliás, duas, em minha cabeça e consequentemente muito sangue. Na véspera do casamento da Rita, um choque elétrico, cuja marca trago até hoje.
Houve, entre tantas lembranças, um Natal em que corremos à varanda da casa da tia Yole atendendo ao grito de alguém avisando que Papai Noel cruzava o céu com suas renas. Não era blefe. Porém, mesmo vendo-o ali em seu trenó riscando a escuridão, não me convenci dele. Ao contrário: passei a ter certeza de sua inexistência. 



2.12.09

Novo Blog Amigo

Acabo de incluir um novo blog entre os amigos do No Osso. É o da Cristiana Guerra, uma moça de BH que não conheço, mas que mantém esse quase diário belíssimo. De sua dor, e até de seu abandono, ela fez um caminho que leva adiante, que deverá levar adiante principalmente o seu pequeno Francisco.
Vale a visita.

10.11.09

Notícias

Duas notas rápidas.

Primeira: vocês podem conferir uma entrevista minha para a Ana Cristina Melo, aqui. Ana Cristina tem cuidado bem dos novos escritores brasileiros, e ela é também um desses.

Segunda: dia 11, em BH, a partir das 18 horas, na Livraria do Pátio Savassi (Av. do Contorno, 6.061, lj 235, São Pedro), lançamento de "O Espelho de Volódja", de Eduardo Filizzola. Vale a pena conferir.


3.11.09

À espera de um carnaval temporão

Imagine que, sem mais nem menos, os tambores resolvam inaugurar do seu jeito o tempo da destemperança, inventando com histeria de taróis um carnaval temporão, novembrino.


Com algum esforço, dará para improvisar uma fantasia mexendo e remexendo no armário, incluindo o do pai, o da mãe, o do marido, quem sabe até o do filho, mas neste caso não procure o que ali não se pode ou não se quer achar. Filhos têm fantasias do arco da velha, algumas os pais se esquecem de tê-las tido também.


Irá cair-lhe bem a roupa da Borralheira adaptada aos trópicos. Não lhe faltarão sapatinhos carregados por príncipes nórdicos, nerds, selênicos ou céticos. Nem digo a de um pirata de meia tigela: a venda num olho, mas o gancho no pé direito. O pileque tornará possível que se fique fantasiado, sem ficar fantasioso, cada um dos que se lançarem à rua no exato momento em que rufar o primeiro baticum.


Não faz mal que não estejam disponíveis os banheiros químicos, nem na festa oficial estão.


Não faz mal que a cidade esteja correndo de cá pra lá e de lá pra cá na sua hiperatividade habitual e sem norte. Deixe o trânsito congestionado digerir a fumaça, que é sua digital e nossa morte. Deixe as crianças na saída da escola espantarem-se com homens de saia e mulheres tortas de dar pena. Sopre-lhes ao pé do ouvido que isso é apenas uma das faces da alegria.


O contágio desse carnaval será homeopático. Um folião descerá de seu décimo primeiro andar trajando chapéu coco e bengala, crioulando lindamente a figura de Chaplin. Os vizinhos olharão praquilo com comichão de denunciar o meliante ou internar o trânsfuga. Porém surgirá, bem embaixo do nariz desses incautos desconcertados, uma lourinha que, traindo a lua, dar-se-á ao sol em trajes de odalisca com um nada de pudor. Sem contar um padre de araque que rezará três vezes antes de verter a primeira talagada e abraçar os pecados que só mesmo a carne sabe e ousa cometer. Quedarão conformados os caretas.


Surpresos, os porteiros tenderão a ficar, como os soldados, em posição de sentido, porém não tardará muito para inventarem danças com a vassoura, os mais sortudos, com a dama roliça do 307 e os enrustidos, com o rapagão de rua que está sempre por ali, às vezes dando conta de si mesmo embaixo do cobertor escondido durante o dia sabe-se lá onde e em cima dos jornais que não se cansam de noticiar as repetidas falcatruas, os desastres esportivos e as aberrações sociais.


Até mesmo os que, na festa de momo, preferem a serra, as águas de Minas ou o frio europeu sambarão espremendo-se nas cercanias de um trio elétrico improvisado numa ambulância cujo doente estará fantasiado (é melhor acreditar nisso) de morto.


Haverá beijos dos mais íntimos. Haverá abraços dos mais honestos. Haverá brigas; como de praxe. Haverá descobertas que, à primeira vista, assustam: um desvio de sexualidade, uma tendência ao álcool, uma queda pra vagabundagem.


Quando amanhecer, a cidade estará suja, não em demasia, e o Sorriso dará conta dela em dois tempos, inumeráveis vassouradas e não sei quantos passos no ritmo de um samba que inventa e assobia pra dentro.






(Ilustração sobre foto de Daniela Clark - G1)


Por outro lado, a mesma cidade de todo o dia estará feliz por ter-se rendido ao imprevisto e desejará outros momentos como aquele em que a alegria mandou o baixo astral pro céu do inferno, longe dali.

8.10.09

Hoje, o que sei da poesia



Não me tomem por pecador, se falo fala fina e tímida, com jeito de iconoclastia. Tem dias que não estou pra Drummond, não estou pra Adélia, não estou pra Pessoa alguma. Noutros, sou eles e esqueço de mim, ou, por outra, sou o que só pra mim, de mim, dizem: podre se podre, pétreo se pétreo; líquido.
Não é sempre que me alcançam os outonais haicais, por breves. Não chego inteiro, sequer aos pedaços, pois estes esfarelam-se pelo caminho, aos épicos de cauda longa. Seduzido sou pelo ritmo, pela pegada, pelo pancadão. Olhe, por exemplo, o bumbo nocauteador do poeta Barreto (O sono provisório, pág. 11, 1978, Editora Francisco Alves):


Vivo sobrevivente de um desastre aéreo e
ferroviário
que acontece todos os dias na cozinha
onde escaldo calendários e fervo a família
jornais e margarinas
Tempero com cola substantivos abstratos
como quem tenta se vingar da própria língua

Mesmo contrita no adro da casa santa, a poesia está sempre fornicando. Às vezes, com anjos; noutras, com sono. Seu gozo não é sopa de letrinhas, não são os postergados pelas prostitutas; seu gozo é silêncio e bambeza de pernas, tracejado por um cartunista que se deixa levar pelas pontas rombudas de seus lápis.
Entendo a poesia que descomprime o tórax, permitindo assim a passagem da respiração, que fluia tranqüila e, por assustar-se, cai momentaneamente no sono. Odeio o entendimento loquaz da poesia, garganteado pelos bêbados da razão. Amo a poesia dos calafrios.
A poesia não ri de mim, não ri pra mim. Não chora de mim nem chora pra mim. A poesia caçoa do sol, conquanto o descreva em versos amarelos. A poesia nunca viu a lua, pois à noite cheira dos tatus as tocas e assiste a coito de formigas que, sob o mantô de terra, fazem o feito, o desfeito e não murmuram. As formigas não murmuram; a poesia, sim. Nisso, parece-se com as vacas e com os vasos sanguíneos do velocista que busca quebrar o recorde olímpico.
A poesia, amante, se é, não espera. Quando quer, cheira e fuma as delícias de seu vício para entrar no sonho alheio e tirar do foco as imagens que, por si só, são incompreensíveis. Desse modo faz partir pra longe a última chama memorial que o adormecido cultivava como lágrima contida. Pela manhã, ao sentar-se na cama, botar os pés no chão e começar a fazer força para erguer o corpo, o poetinha distraído e sonhador ganha no bucho de sua consciência uma gota de verso como esta:

Pago todas as contas
Mas comigo não conte
Para afundar navios
E fundear vazios
Distintos dos meus.

A poesia é a voz que se escuta quando não há voz alguma, e os poetas são os doidos da vez — de todas as vezes.

11.9.09

Brasil – il – il – il

                                        
                                 (bigode retirado de: http://justwrappedupinbooks.wordpress.com/2009/08/02/sob-o-dominio-do-bigode/)

             

 Se algum dia fizerem antologia do cronista sem assunto, verão que todas as crônicas escritas nesse dia são iguais. Falamos coisa do tipo: hoje não haverá crônica, ou: a de hoje, só amanhã.


Neste exato momento, não consigo dar um exemplo concreto, mas arrisco a dizer que, do cronista maior ao cronistinha de uma figa, todos, quando tropeçamos, tropeçamos da mesma forma.


Isso não quer dizer que o talento se iguale nesse instante de fracasso. Um tombo de um Drummond tem o estilo do poeta; o meu, por sua vez, é só a queda desse corpanzil que cresceu, apareceu e ficou feiinho, feiinho.


Porém, neste país, assunto é o que não falta. Podem jogar os parágrafos anteriores fora, não servem pra nada.


Giro minha câmera pro Senado. Não, aí é covardia, e tenho poucas linhas, espaço insuficiente pra dizer tudo que está borbulhando por lá. De todo jeito, só de relance, vi aquilo que meus olhos preferiam não ver.


Vamos pra outro lado. O pessoal da cultura tem trabalhado com nota fria? Oh, meu Deus, que novidade! Só na cultura, é? Será que somos chegados a um desvio ou o sistema é que joga todo mundo no limbo? Deixa isso pra lá, mal saiu a notícia no jornal, no outro dia já se dizia que as empresas tomaram juízo, está tudo resolvido, uma beleza. Sou a velhinha de Taubaté que, depois de ver tantas sarneiras, ficou cega — de nascença.


Meninas passam pra cá, passam pra lá. Passam pra lá, passam pra cá. São pêndulos de relógios? Marcam que espécie de tempo? Essa crônica bem poderia chafurdar no lirismo, ficar na cola da beleza, ou falar do Nadinho da Ilha, que morreu dia desses, mas... 


A gripe suína está tirando todo mundo do sério. A gente anda com tanto medo, que esconde espirro, quando não prende. Tente espirrar em público. Todos os rostos se voltam contra você. Aliás, meu conselho é que, ameaçou espirrar, ligue para esse 0800 do Estado e, primeiro, peça desculpe e, depois, aproveite para perguntar se o seu atchim está condenado.


Seria bom viver num país em que faltasse assunto pra crônica! Eu poderia fixar-me no pêndulo desenhado pela beleza das meninas, homenagear o Nadinho, com quem dividi alguma mesa de bar e de quem vi o talento em ação, ou falar da Serra da Canastra (veja a foto). Lá, o São Francisco nasce chiquito, chiquito. Ao contrário dos problemas do Brasil, que nascem grandes e ficam enormes.


Não tenho medo de cara feia, mas acho que o Pedro Simon fez bem em ter.






                                        (Foto de Alexandre Brandão)

29.8.09

A câmera e a pena está por aí

Amigos, o livrinho agora está à venda, pela internet, na Livraria Cultura, bem aqui.


No Rio, pode ser encontrado na Livraria Travessa, numa de suas lojas.


Aproveito para sugerir um site bacaninha, e não só porque já falou do meu livro, mas é legal mesmo, feito por uma moça antenada com a nova literatura. Clique aqui e chegue lá.


Lá no final do blog, tem uma ferramenta nova: um siga-me. Quem quiser botar a cara e dizer que acompanha as osseosidades aqui fique à vontade. Meu amigo, Udo, de Alemanha, vejam só, já está.


Por fim, agora resolvi botar umas frases no twitter. Roubo algumas de feras, invento algumas. Não são diálogos, falo sozinho. As frases transbordam pra cá, bem no canto superior esquerdo do blog.




Abraços,

11.8.09

Na Trave


Bem sei, leitor, você bate os olhos neste mensário, em particular nesta coluna mal vertebrada de nome “No Osso”, à procura de distração. Acho até que está preparado para encarar uma temática, digamos assim, menos solar, afinal de contas estamos no Brasil e refletimos sobre ele, sobre suas mazelas. Porém não sei se suportará minha conversinha mole de hoje.

Na realidade, escrevo para diminuir minha carência, para desabafar. Não tendo terapeuta, uso e abuso de sua boa vontade. Não me abandone, por favor. Não agora. Pode ser que daqui a pouco minha dor se mostre apenas uma indisposição, algo passageiro. Se for, pronto, oras, você terá me ouvido, e tudo terá passado. Uma boa ação sua. De meu lado, ao falar, vou me curando, é assim que funciona a coisa desde sempre, como bem sacou o velho e bom Freud.

Estou meio sem jeito. Para falar a verdade, sou caladão; não falo, tartamudeio. Já que você foi alçado ao posto de terapeuta ou confessor, uma de suas obrigações é ser paciente, embora seja eu o paciente. Esta frase, mesmo não sendo boa, me remete a Campos de Carvalho. Posso fazer uma digressão?

Sujeitinho competente o Campos de Carvalho. Quem o conhece não se surpreende com a afirmação. Quem não, não perca tempo com cronistas menores, vá a uma livraria (há tantas e boas na cidade) e adquira o livro com todos os seus romances que saiu pela José Olympio, ou compre-os um a um, pois a mesma editora os está lançando separadamente agora. Voltando à digressão, esse autor mistura de tal jeito os estados de loucura e de lucidez — qual a diferença entre um e outro mesmo? —, criando personagens que transitam entre esses mundos paralelos, que eu diria, sem medo nenhum: Campos de Carvalho descobriu não a origem da vida, mas, sim, o sentido dela. E a julgar por ele, a vida é realmente sem sentido nenhum, o que, aliás, aumenta nosso compromisso com ela, fazendo-nos aceitar seus caprichos.

Digressão? Estou fugindo. Vamos ao ponto. Leitor, o fato é que nunca fui bom de bola. Já me ocorreu de, num teste no infantil do Esportivo, jogando de ponta direita, driblar o lateral, entrar na diagonal, driblar o beque e, cara a cara com o goleiro, chutar para fora. Uma decepção. Para a torcida e para mim. Quando nos decepcionamos conosco mesmo o nome é frustração.

Segue daí... O quê? Como assim, acabou?

Tempo lógico? Era o que faltava. Você não é o Lacan, nem meu analista você é, oras!

Pena, logo agora que encontrei o elo perdido de tantas dores.

8.8.09

Resenha de "A câmera e a pena" no JB

Hoje no Jornal do Brasil, Duílio Gomes, escritor e jornalista mineiro, faz uma resenha de meu novo livro. Quem quiser conferir, clique aqui.

Se eu fosse carola. Ou seu fosse chegado em misticismo de qualquer tonalidade, eu diria que tem coisa aí. Sabe por quê?

No caderno Idéias e Livros do JB, onde está a matéria, estão também: Bernardo Ajzenberg, Ieda Magri, Didi e Armando Freitas Filho. E daí? Vamos por parte:

1) Sou botafoguense, Didi, nosso ídolo;

2) Duílio Gomes e Bernardo Ajzenberg foram as primeiras pessoas que fizeram resenhas de livros meus, no caso de Contos de homem, lançado em 1995. O Duílio no Estado de Minas, o Bernardo, na Folha de São Paulo. No JB de hoje, Duílio fala de mim, Bernardo dá entrevista sobre seu novo livro, Olhos Secos (Rocco);

3) Ieda Magri foi minha colega no jornal de bairro do Rio de Janeiro (Folha Carioca). Lá, antes de compromissos do doutorado inviabilizarem sua permanência, ela fazia resenhas de livros. Ela, numa só matéria, falou de meus dois primeiros livros, Contos de homem e Estão todos aqui; e, por fim,

4) Eu sempre gostei da poesia do Armando. No Conto de homem tem um texto que é dedicado a ele e ao Tom Jobim. O João Gilberto Noll, que escreveu o prefácio do meu livro, disse que o Armando iria gostar de ver o conto. Mandei o livro pra ele. O destino (ou Deus, ou Jesus que é o senhor, ou Buda, ou a sorte) fez com que minha filha fosse colega de sala de Carlos, filho do Armando. Passamos a nos relacionar, não com intimidade, mas com alguns bons encontros.

Para terminar... vocês acham que foi a mão de Deus?