8.9.16

Resenha de crônica - um texto de Eustáquio Grilo (1)

Nunca escrevi uma resenha. Vou tentar agora, mas nem pensar em um livro inteiro. Tentarei a resenha de uma crônica.
-- Ficou doido? --- perguntou-me um amigo, o Tõe.
Uai, por que não? Digo para mim mesmo, dispensando o travessão.
Tõe não responde. Apenas me desqualifica: incapaz.
Nem tanto: tenho noção do que é uma resenha de livro. E nunca li uma resenha de crônica. Parece-me evidente que resenha de livro seja bem pequena em relação ao tamanho do livro. A manter a proporção, resenha de crônica mal teria direito a dois parágrafos.
Mas ... Antes de começar a escrever, já sei que provavelmente será mais longa. A razão é simples: uma resenha de livro é necessariamente sintética. Mas quando a gente a lê, é quase sempre uma descrição. E também uma análise breve.
Assim ... jeito é tentar e ver no que dá. E depois ser humilde para aceitar a crítica. Incapaz ou não, vamos lá.

Meu amigo Alexandre Brandão escreveu uma crônica sob o título “Um minuto de fúria”.
Ele começa por gabar-se de ser bastante ignorante. Fiquei contente: eu me considero muito ignorante, muito mais que bastante.
Ri à beça do primeiro parágrafo. No qual ele assume-se cria da ditadura e culpa a educação formal. É claro que discordo: o problema da educação formal não é ser educação nem ser formal. É ser ruim. No nosso caso, sou um pouco mais velho que ele, estudei Latim no ginasial. Por fora estudei Grego. Acho que seria divertido comparar as bondades e ruindades. Feita essa ressalva, entendo que ele diga “minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça”, embora eu duvide um pouco da preguiça, pois ele trabalha e sempre trabalhou muito. Mas, se acha que podia ter trabalhado mais ... Bem, não me cabe discutir. Ou cabe, mas pessoalmente, com pelo menos uma cerveja, que ninguém é de ferro.
Ele conclui o segundo parágrafo com a sentença “Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara que tem a omoplata deslocada.
Meu idílio e meu exílio. Mon dieu. Ainda bem que não somos concorrentes em concurso algum. No concurso da vida eu teria de baixar a cabeça e render-me. Ou em qualquer outro. O bom é que agora tenho uma expressão para me definir: O violão é meu idílio, a música meu exílio. E com uma grande vantagem: não tenho a omoplata deslocada. Além de derrotado eu fiquei com uma dívida de gratidão.
Eis que, no terceiro parágrafo, ele declara que não é intelectual. Ora vejam. Como pode dizer que não é intelectual um cara que escreve: “Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio”? Vejam só: supondo factualmente verdadeira a frase, fico morrendo de inveja pois, por mais que tivesse um silêncio a nocautear eu, pobre de mim, jamais teria percebido que nocautear era “o” verbo. E, pior, gravíssimo, que o silêncio era o nocauteando. E ainda, ora vejam, que a literatura era o golpe capaz.
Por outro prisma: supondo não factualmente verdadeira a frase, eu receio que jamais chegaria a perceber uma tão linda metáfora, sem a ajuda dele.
Ou seja: em matéria de nocaute, o Alexandre foi quase sádico: nocauteou-me depois de nocauteado.
E foi assim, já renocauteado, que completei a leitura do terceiro parágrafo. Uma surpresa atrás da outra. Sinto-me tentado a acusá-lo de excesso de humildade. Mas deixo este juízo para outros leitores. Registro aqui só uma dúvida: se ele fosse muito bom de conversa será que não teria menos tempo para escrever?
O quarto parágrafo consegue comover com zero pieguice.
O quinto humilha com zero empáfia.
Acho que se euzinho tivesse furado o ar com uma faca-de-ponta, teria visto um deusilusão cair, desmilingüindo-se como um balão.

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(1) Eustáquio Grilo, passense feito eu, matemático formado pela UFMG, é catedrático de violão, tendo criado os cursos de bacharelado em violão da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade de Brasília. É, além de instrumentista e professor, compositor, arranjador e pesquisador. Há um concurso de violão que leva seu nome: Concurso Eustáquio Grilo. Para que não fique apenas na minha conversa, escute aqui, aqui e aqui um pouco desse cara por ele mesmo, no programa Talentos.

5.9.16

Um minuto de fúria

Não é por querer me gabar não, mas sou bastante ignorante. Quando busco alguma boia para me salvar não só do orgulho de ser ignorante, mas também do fato em si de sê-lo, culpo a educação formal. Sou cria da ditadura. Não é pouca coisa, mas, no duro da cebola, das continências e incontinências da vida, não dá para ficar nessa. A educação não ajudou, mas, ora, o esforço próprio é tudo. Portanto, crítico dos meus ais, afirmo que minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça.

Dito isso, vamos ao corolário de tamanho teorema nudes. Não posso ser considerado intelectual, apesar de brotar por aí um monte de intelectuais apedeutas, alguns mais que isso, burros. Controvérsias bricabraques à parte, passo longe de ser intelectual porque, apesar de minhas leituras e de algum conhecimento aqui e ali, não manejo bem as ferramentas do embate de ideias. Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara pacato que tem a omoplata deslocada.

Escritor não é intelectual? Eu não sou, bebé. Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio. Não sei conversar, eis a verdade. Se fosse bom de conversa, não seria um mau prosador. Cheguei aí também para fugir de outra característica, a covardia. Sou covarde até. Um sujeito assim, ruim de conversa, nem feio nem bonito, covarde e bem desmemoriado não pode ir longe. E eu sempre quis ir longe. Não que almejasse grandes viagens, mas bastava perder-me em mim.

Escrevo para ir longe, para, sem deixar ao relento, desvelar um nada dos meus segredos dos quais não tomo consciência. Fiz pouca terapia, em momentos de sofrimento tópico, como foi o caso de quando tive de parar de beber. Foram vinte anos sem uma gotinha de nada. Não foi fácil, pois a bebida concorria fortemente com a escrita. (Dois desterros: um tinto, outro seco.) A escrita ganhou pela desistência forçada da outra. Acontece, a gente vê até nos esportes, um ganha porque o outro não entrou em campo. É uma vitória esculhambada, mas uma vitória.

Cobro muito de mim, estejam certos. Toda manhã, dou-me uma estocada, quero ouvir minha opinião sensata sobre a beleza do texto de Julian Barnes que leio agora, “Altos voos e quedas livres” (Rocco). Quero saber qual diálogo posso propor aos contos simples e marcantes do Luiz Roberto Guedes em “Miss Tattoo, uma quase novela” (Jovens Escribas). Mas nada salta à luz da razão. E eu, esse ignorante, tomo a faca e furo o ar na ilusão de ver deus cair morto aos meus pés.

22.8.16

As migalhas e as dúvidas


Depois dos jogos, a orla Conde será tomada pelos cracudos? Pelos tarados? Pelos fantasmas dos inocentes (negros jovens na maioria) que têm morrido na guerra promovida pelo Estado contra o tráfico?

Não sei.

A cidade olímpica irá se transformar num grande parque para urubus, macacos, capivaras e outros animais famintos desalojados da floresta e dos mangues? Ficará ao relento, depreciando-se a olhos nus e incapazes de tomar qualquer providência contra isso?

Não sei.


A grana embolsada por esse e aquele sangrará os estoques de remédios dos ambulatórios? Sujará mais ainda a baía que deveria ter despoluído?

Não sei.

Não sei se não sei, mas gostaria muito de não saber. Saber, nesse caso, é pior do que não saber.

Na confusão na qual estou metido ecoa a frase do Luiz Antonio Simas (historiador carioca) que minha amiga Shirley Vilela compartilhou no Facebook. Ele diz: “Meus avós tiveram a sabedoria de me ensinar o seguinte: a gente não faz festa porque a vida é fácil. A gente faz festa exatamente pela razão contrária. A cultura do samba veio desse aparente paradoxo. Não se samba porque a vida é mole. Se samba porque a vida é dura.”

Orla Conde, Rio de Janeiro. Foto do site de O Globo.

A caminho de um lançamento de livro na Prainha, cruzei, na orla Conde, com a bateria de uma escola de samba. Atrás e ao lado dela, as pessoas, mais brasileiros que gringos, dançavam. Dançavam porque a vida é dura. Dura porque muitos perdem seus empregos; porque a lista de futuros prefeitos é pouco animadora; porque as cicatrizes da esgrima política — os que trocaram suas convicções pela política suja contra os que sempre praticaram a política suja e, por um tempo, aliaram-se aos ex-convictos para lhes dar, em seguida, uma rasteira — ainda vão doer por muito tempo; porque, silenciada a festa, os tiros que continuam ceifando vidas no Alemão, na Maré, nesse céu de favela que temos por aí vão zoar fortes como nunca.

Vou de frase feita: não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Desacorçoado, me abraço ao pessimismo e concluo cheio de clichês: a rapadura, apesar de doce, é dura. Eu não sei sambar.

8.8.16

A dor de entremeio

Para Alexandre e Antonio

Penso em dois amigos, poetas e conterrâneos, a quem devo a chance de ter passado por experiências poéticas não muito usuais. Um deles, num dia, e, muitos anos depois, o outro, ao lerem um de seus poemas em uma pequena roda na qual conversávamos, deram uma travada, tropeçaram na leitura e sucumbiram à lágrima. Qualquer leitor percebe que, na criação daqueles versos, ambos foram aonde poucos vão — ao inferno, ao céu, sei lá em que extremo está localizado o sítio pelo qual transitam os verdadeiros poetas. Vi quando ambos reviveram o gesto inaugural de seus poemas, momento inevitavelmente de caos, de aparição sem disfarce das muitas camadas da emoção, empilhadas sem ordem sobre um móvel esquecido entre o cérebro e o coração.

 Alexandre Antonio explorando outra poética.


O que o poeta faz ninguém faz. Possuído pela dor — para ser coerente com as leituras que ecoam nesta crônica, tenho de falar em dor —, ele a espalha no papel, depois, com algum distanciamento — quando fica a serviço da razão —, ordena tudo em versos, que deixam de ser dor somente e se transformam em beleza doída, em arte. O leitor tem contato com a dor transformada e reconhece a dor bruta sem nunca alcançar sua intensidade. O poeta, ao voltar algum tempo depois ao poema, revê na beleza com que ornou sua dor a dor autêntica — e seu corpo acusa o golpe.

O que há de extraordinário nisso? O poeta mergulha no que lhe é mais íntimo e exterioriza sua intimidade para torná-la atraente a quem nada tem a ver com ela. Ele doura a pílula, trapaceia, mas, no fundo, no fundo, não ordena o caos. (E ele, mais que ninguém ou mais ninguém, sabe disso.) Se, ao escrever, o poeta corta, longe da vista de todos, os pulsos, ao ler, repete o gesto, a vista de poucos, e sangra de novo.

Escrevo com ostentação, certo de que estive entre uns poucos escolhidos, num instante com vocação de raro. Em público, o poeta evita a leitura autofágica, reservando aos mais chegados, em um sarau improvisado, o próprio desamparo. É um momento mais de confissão que de outra coisa — nele, a tal vaidade do artista não entra, talvez fique fumando lá fora, no sereno frio.

24.7.16

Nossa eterna velhice


Não vi nem ouvi, mas fio no ocorrido: uma criança de quatro anos disse a outra, de dois: “No meu tempo era melhor”. Com a velocidade de nossos dias, a velhice começa cedo, a despeito de, em média, vivermos mais do que nossos pais e de nossos filhos terem expectativa de viver mais do que nós. Como a criancinha que desde sempre se sente velha pode chegar fácil aos cem anos, nossa terceira idade se dá aos quatro anos, e, aos cinquenta, entramos na quingentésima.




Sem ruga ou preocupação, somos velhos desde o início — velhice tornou-se sinônimo de vida —, ou seja, a luta pela eterna juventude está produzindo o efeito oposto. Meu amigo Marcus José sempre me alertou para o fato de que o Diabo é o Diabo por ser velho, não por outro motivo. Se nascemos velhos, é sinal de que o Diabo passou uma rasteira em Deus. 


Faço um parêntese. Por acaso, assisti a um episódio de “Bipolar show”, programa televisivo do Michel Melamed. Ele e seu convidado, Matheus Nachtergaele, fizeram diante da câmera uma espécie de entrevista misturada com performance, atuação, sarau, um treco de fato bipolar, senão esquizofrênico, e bom. Lá pelas tantas, o Nachtergaele disse que acredita em Deus, mas que, desde a invenção do avião, por Dumont, Deus está muito ocupado em segurar esse punhado de bisnagas (a imagem é dele) no céu. Portanto não é que o Diabo venceu Deus, mas, valendo-me de Guimarães Rosa, o Diabo tornou-se feliz numa horinha de descuido de Deus. 


Não nos movemos na direção daquela história de que o ideal é nascer velho e morrer jovem, utopia construída sobre a ilusão de que viveríamos melhor se nascêssemos experientes (situação associada à velhice) e fôssemos, ao longo dos anos e sem perder a experiência jamais, ganhando a força física da juventude. A velhice que alcançamos não tem experiência alguma, tem, sim, a dor de carregar o sobrepeso da passagem instantânea do tempo — contado em segundos, não em anos. É possível que a criança nostálgica, no diálogo com a outra mais nova, tenha ido além: “Ah, quando você tiver os meus 126.144.000 segundos de vida vai entender o que estou dizendo”.

Com isso, o choro do bebê não é mais sinal de vitalidade, é grito de revolta. Não tem nada a ver com tomada de consciência da finitude, já que a ciência está empenhada em nos tornar imortais — vejam, por exemplo, o recente documentário brasileiro “Quanto tempo o tempo tem”, de Adriana L. Dutra e Walter Carvalho. Por que os bebês choram então? Porque não terão juventude. Não poderão dizer que na juventude fizeram e aconteceram, não poderão se lembrar das paixões radicais —  sempre a exigirem provas heroicas de amor. Caro senhor Vinícius de Moraes, hoje, a gente mal nasce e, em vez de começar a morrer (em breve, não morreremos), já é velho. Só nos tornamos jovens ao morrer, essa é a contradição desse imbróglio todo.





Li, na revista Piauí (novembro de 2015), a história de Kim Suozzi, americana de vinte e três anos que morreu vitimada por um câncer no cérebro. Ela e o namorado, quando souberam da doença incurável, recorrendo a uma vaquinha virtual, trataram de se organizar para congelar aquele cérebro, seu córtex. Apostavam que, no futuro, a ciência poderá ressuscitar a mente de Kim e, com isso, quando ela se materializar em um computador ou em um robô, em um programa que seja, eles se reencontrarão. A técnica de preservação do córtex é um mundo a ser explorado, portanto, nada garante que Kim de fato ressuscitará, nem mesmo se sabe ainda se, ao escanear o cérebro congelado, todas as sinapses feitas diariamente por ele serão reconhecidas e reproduzidas em uma máquina. Nada disso desanima os cientistas — abastecidos por uma fonte inesgotável de dinheiro —, que, posicionados no centro do embate entre Deus e o Diabo, almejam destruir os dois. 

29.6.16

A bela esquecida


Tertúlia é uma palavra bonita. Poderia mesmo ser nome de alguém, no mínimo um segundo nome: Clara Tertúlia, Rosa Tertúlia. Não, não faria feio. Minha avó chamava-se Thomazia, outro nome bonito que ninguém mais coloca nos filhos, quer dizer, segundo um site popular do IBGE, Censo 2010/nomes, no ano de 2010 eram oitenta e três no Brasil, a maioria vivendo em São Paulo (uma é minha prima). Se há Thomazia, por que não Tertúlia? Pelo menos o site do IBGE não registra ninguém com esse nome, portanto, se existem Tertúlias, são menos de dez, faixa na qual o instituto oculta a informação para proteger o sigilo pessoal.

Mas como estava dizendo, tertúlia é uma palavra bonita e, como ainda não disse, pouco falada entre nós. No Houaiss, ela é definida como um agrupamento, reunião de parentes ou amigos; uma palestra literária; por fim, uma pequena agremiação literária, menor do que as academias e arcádias. Ao promovem uma social em suas casas, os jovens bem que poderiam promover uma tertúlia. Em Madri, assim o fazem. Quando estive lá em 1999, um amigo me convidou para uma, na quinta-feira, não muito tarde. Conversaram sobre tudo, literatura inclusive, beberam, uma social típica, nomeada com mais formosura. Ainda segundo o dicionário, a palavra tertúlia veio do espanhol, razão pela qual na terra de Cervantes sobreviva com pujança.


José Gutiérrez Solana, artista espanhol, retratando uma tertúlia.


Tertúlia, a bela. Poemas cantam o amor, a dor, a saudade, o sol, a procela, algum a tertúlia? Recorro ao velho (sim, já é velho) e bom Google para encontrar o pequeno poema “De tertulia poetarum”, de Leminski — “de tortura militum / libera nos domine / de nocte infinita / libera nos domine / de morte nocturna / libera nos domine.” O falecido poeta,  influente ainda hoje, recorreu ao latim para, um pouco na moita — onde muitos tinham de viver na época daquela ditadura escancarada (anos 1970) — e simulando uma oração, invocar o Senhor para nos livrar da tortura militar, da noite infinita e da morte noturna (em tradução sugerida por Elizabeth Rocha Leite em sua tese de doutoramento pela USP). No caso desse poema, a mesma doutora propõe que o título seja lido como “Sobre o encontro de poetas”, esfaqueando sem pena a própria tertúlia.

Se houvesse seres tertúricos, sua compleição agradaria aos olhos, e, por dentro, sua personalidade como seria? O tertúrico apreciaria a dúvida, a discussão, o durante, a trajetória. Travaria embates com os determinados, metódicos, cumpridores de metas. Deve ser por isso que, pouco usual, tertúlia, quando dita, alude ao mundo da poesia, seus encontros e saraus. O mundo estaria melhor se trocasse a racionalidade da força pelos valores tertúricos — em cuja base estão, de mãos dadas, a dúvida e a humildade. Tertúlias na câmara ou no senado, casas que têm servido de ringue para nocautes de vilões de muitos matizes por outros vilões de matizes ainda mais diversos, exigiriam que nossas augustas excelências se reinventassem, e isso far-lhes-ia muito bem (eu, ansioso pelo tempo da delicadeza, adapto-me na marra ao tempo da mesóclise).

Tertúlia é uma palavra bonita, e toda palavra bonita carrega a beleza para além de sua sonoridade. É bonita, aliás, porque, em seu significado, repousa uma esperança. O que seria “um agrupamento, reunião de parentes ou amigos” senão a esperança viva de que, por meio do diálogo, se possa dar um passo? Um passo não necessariamente para a frente, pois as tertúlias não miram sempre nesse sentido. Poderia ser para trás, para rever e cheirar uma flor. Poderia ser para o lado, para dar início a uma dança. Poderia ser até para o abismo, se ao abismo formos na companhia daqueles com quem, entre concordâncias e discordâncias, dividimos o desejo de minorar o sofrimento do mundo.

13.6.16

Crachá e sapato feio: um papo reto com um sobrinho

Certa vez eu disse a meu sobrinho Cristiano — e ele não se esquece disso — que um sujeito sem crachá é incompleto. Pilhéria, uma de tantas da minha lavra.

Seja um homem completo colando sua foto e seu nome aqui.


O crachá, na brincadeira, completaria o homem por associar-se ao trabalho. Estou empregado num escritório, tenho um crachá, e isso me torna pleno. Além da questionável ligação entre trabalho e plenitude, tal evidência não sobrevive a uma análise superficial. Ainda que temporariamente, o desempregado precisa de um crachá para subir ao quinto andar para entregar seu currículo ou pedir uma grana ao amigo bem estabelecido.

O crachá é uma chave que abre as portas de prédios protegidos, parece um antídoto contra a violência, mas, de verdade, ele escancara o fato de que não resolvemos a violência. Somos mestres em criar áreas VIPs — nos blocos de carnaval, na arquitetura dos condomínios fechados, resquícios feudais num mundo que se aproxima do pós-capitalismo —, e é isso que o crachá faz, cria uma área VIP, um espaço que deveria estar isolado das agruras de um mundo contaminado. Lembro-me de “Extra II, o rock do segurança”, música do Gil, da safra dos anos 1980. Ela diz: “O segurança me pediu o crachá / Eu disse nada de crachá, meu chapa / Sou um escrachado, um extra achado / Num galpão abandonado, nada de crachá”. O Gil já conjecturava, numa lonjura do tempo, que o crachá é um símbolo da divisão nossa de cada dia, divisão que mantém os de dentro protegidos. Deus-crachá resguarde seus escolhidos. Amém!

No meu prédio, malandro não se engraça, exclama o crachá. É e não é assim, pois circula pelos corredores dos escritórios uma gama enorme de vendedores, gente que conseguiu entrar ali sabe-se lá como. Se um vendedor furou a barreira e pendurou a identificação no pescoço, qualquer um pode fazer o mesmo. Nas repartições, é comum o sumiço da marmita na geladeira ou do porta-retratos na mesa de trabalho. Rouba-se inclusive o computador da empresa. Ninguém está seguro, em lugar algum, com ou sem crachá. O crachá é um símbolo da falibilidade da segurança. É uma ilusão modelada em plástico.

Não é de hoje que nos deixamos enganar pelo cinema de sombras, confundindo as imagens distorcidas que passam na parede da caverna com a própria realidade. Sair do mundo escuro e chegar ao da luz (onde desenrola a tal realidade) custa um instante — às vezes mais, às vezes menos longo — de cegueira. O mesmo custo haverá ao fazer o caminho de volta, ainda que a cegueira do retorno não seja igual à da partida. O crachá é a ferramenta que manufaturamos durante a primeira cegueira. Cegueira não ligada ao fato de não ver — o cego, por ter aptidões extravisuais, pode muito bem produzir instrumentos úteis ao trabalho ou a qualquer outra atividade humana —, mas ao de desconhecer. O crachá é nossa ignorância convertida em objeto, em chave que não abre nem fecha, que desprotege dando pinta de proteger.

Apostamos no crachá como solução, quando ele deveria ser apenas um objeto para facilitar a identificação da pessoa com quem falamos ou o controle do fluxo de visitantes de uma repartição. Aposta errada. O que fazer para virar o jogo?

Mais educação, menos pobreza. Mais conversa, menos tiros. Mais negros, menos brancos. Mais mulheres, menos homens. Mais política, menos conchavo. Mais divergência, menos inimizades. Respeito no lugar de preconceitos.

Damos logo um passo nessa direção ou nos faltará — porque sobrarão motivos — matéria-prima para fabricar crachás demandados por inúmeras necessidades. Destruiremos o que resta da natureza e ficaremos ainda mais inseguros. O homem, Cristiano, só é completo quando é livre e vive, com suas contradições, entre iguais. No momento em que alcançarmos um naco de liberdade, bastará ao homem a meio caminho da completude, por pura conveniência social, vestir uma blusa e um sapato bonitos — nada de crachá. No seu caso, meu amado sobrinho, se já estivéssemos vivendo esses dias ainda longínquos, iria lhe faltar o sapato bonito. Corra à loja mais próxima e, pelo menos dessa vez, não pense apenas no preço — qualidade é tudo, e beleza é um braço da qualidade.
.

Modelo a ser evitado no ato da compra.

9.6.16

Consulta

— Qual foi o sintoma?
— Ela fechou os olhos.





(Miniconto encontrado durante o café da tarde de 08/06/2016.)

7.6.16

Distâncias

— Estamos longe — ela disse.
— Ora, ora — reagi um pouco incrédulo.

E nós dois rimos.




(Miniconto pensado em um ônibus e escrito numa manhã chuvosa.)

30.5.16

Leitura incendiária

“...haviam sentido um cheiro de animal tão forte que pensaram que, a qualquer momento, se defrontariam com uma pantera, mas o que surgiu do meio das árvores, com incrível velocidade, foi uma mulher, uma mulher selvagem inteiramente nua” (Anaïs Nin, O modelo)



Luís Giffoni, escritor mineiro de boníssima cepa, defende em uma crônica recente — Leitura e saúde[1] — que a leitura, entre as formas que utilizamos para nos aproximarmos das várias manifestações da arte, é a que mais beneficia o cérebro, haja vista que “a leitura atua em duas nobres regiões do cérebro, situadas no meio e na parte de trás da cabeça, ligadas à imaginação e à visão, enquanto os filmes e a televisão agem apenas na parte posterior, vinculada ao córtex visual”. Giffoni é um cara curioso e, graças a isso, culto. Suas crônicas mostram como ele se empenha em, mais do que se entregar ao zunzum das ruas, escarafunchar o que ouve, questioná-lo, entendê-lo. Assim, se é ele quem está falando aquilo que eu sempre intuí, minha intuição vira certeza e, então, reforço: ler é uma medida profilática, um escudo contra as doenças.

Na mesma crônica, Giffoni comenta que, ao ler, todos nós rodamos um filme na cabeça. É o ápice inventivo motivado pela leitura. Esse filme próprio, muito particular, deve ser responsável pelo fato de geralmente as adaptações cinematográficas soarem frustrantes, aquém dos livros. Claro, um diretor leva para a tela a fantasia dele, e ela se choca contra a minha. Além do mais, escolhe uma atriz, um ator e um ambiente para ocuparem o lugar daquilo que eu havia imaginado de uma maneira não muito clara, ainda que por mim reconhecível em qualquer circunstância. Logo, aquele esboço de um homem misterioso, ambíguo, de repente se converte, nas mãos de Hector Babenco, em William Hurt. Falo da adaptação de “O beijo da mulher-aranha”, romance de Manuel Puig. A despeito do resultado —  no caso desse livro, positivo, com uma atuação impactante do ator americano —, o embate entre o meu filme e o que está na tela é grande, travamos uma verdadeira luta movida a golpes baixos. Nocauteado, reconheço o filme do outro, até mesmo passo a desfrutar dele. Com ressalvas, sempre.

Uma leitura erótica eleva à enésima potência essa experiência. O filme desce ladeira e vai encontrar nos recônditos do corpo o palco onde é exibido. Ardo quando leio, ou ardo de ler. Se não tenho com quem festejar tamanho ardor, se não sou mais um menino para me bastar a mim mesmo, torno-me uma verdadeira labareda do inferno e posso queimar o mundo todo, pois não há, além de mim, quem, por pecador, não mereça ser queimado. Um chamado para o almoço, um convite para o chope, uma fuga para a internet aplacarão esse calor, e deixarei ali, próximo da cama, o livro, não mais o livro, mas um corpo que precisa do meu.

Escrevo sob o impacto de “Pequenos pássaros – histórias
Anaïs Nin.
eróticas” (LpM pocket), contos de Anaïs Nis. Nascida no início do século XX e morta na segunda metade da década de 1970, a escritora não viu esses contos publicados, o que não se deveu a nenhum recato, pois ela publicou vários livros de alta carga erótica. Se me lembro que Anaïs foi amante de Henry Miller, 
outro mestre do erotismo, autor da trilogia “A crucificação rosada” (ou Sexus, Plexus e Nexus), consequentemente suponho que em seus encontros celebraram acima de tudo o corpo. Se me lembro também que Anaïs circulou nos grupos de vanguarda artística e científica, concluo que era uma mulher avançada e que sua visão erótica deve-se, pelo menos em parte, ao fato de ela ter-se distanciado da figura feminina de seu tempo. Esse distanciamento fez com que soubesse dar voz ao que é quase indizível, o prazer.

Com que imprecisa precisão Anaïs conta suas histórias! Se me afastasse, seria possível falar que as carícias se repetem, que os papéis (masculino-feminino ou feminino-feminino) não fogem de um determinado padrão, porém não consigo manter-me longe. Caio preso às pernas umedecidas de sua escrita. Nessas circunstâncias, deixo-me levar, não há alternativa. Saio de uma história para entrar em outra no gozo de um desejo excessivo. Conte-me mais, Anaïs, mais. E também menos para que eu possa andar de bonde com o que não é razoável. Leio Anaïs como acho que ela escreveu, potente.

Não conheço o texto na língua original, mas arrisco a dizer que o tradutor, Haroldo Netto, fez um trabalho brilhante. A leitura flui, melodiosa, o que, em se tratando de erotismo, é fundamental, caso contrário seria o equivalente a um coito interrompido por uma urgência externa, que esmurra a porta. E quem quer uma coisa dessas durante o carnaval tão pouco que reservamos a nossas carcaças?

Ler é (também) uma orgia!




[1] Leia aqui.

23.5.16

Perguntas à toa

Fazendo perguntas ao modo de Neruda

Você poderia me dar um silêncio de seu tempo?
Por que os cegos fecham os olhos ao recordar?
De vinte em vinte a gente ultrabraça o intocável?
Com quantas palavras é possível navegar um minuto?
Por que o riso fuma maconha?
Vovó contraiu o diabetes num beijo mal dado?
O que não estou vendo é uma chuva que brota do chão?
Quando me distraio eu roubo a alegria dos beduínos?
O dia brigou com a morte?
Aquele relógio estava desesperado?
A cor da ilusão esgana?
No céu, a terra é um esquecimento?
Os urubus salgam os próprios voos?
Se uma palavra for elevada ao quadrado nós nos entenderemos menos ainda?
Posso morrer depois de passar o café?
Você está rindo pra onde?
É possível acender cigarro em ovo?
As gotas invejam a enxurrada?
Alguma mulher pelada tentou entrar numa revista esquecida no banheiro?
O que pensa o escocês que só me viu em sonhos?
Dois e dois reconhecem algo além da matemática?
Do lado de lá dói?
O que o cansaço diria ao tempo?
Você poderia me dar um minuto do seu temperamento?
A função social do homem é prender o choro?
Qual o melhor remédio para não se curar de nada?
A histeria conhece os canais de Veneza?
Por que o mar não nos conta tudo?
Todas as palavras são inconstantes?
A sujeira tem saudades do esfregão?
O que meu pai fez com o não de minha mãe?
O sol também sabe?
O buraco da fechadura mede o poder que transfere aos olhos do curioso?
Se essa rua fosse minha eu seria menos órfão?
Chegaremos a tempo de adiar a noite?
De onde vieram as incertezas das perguntas?


Pablo Neruda, aparentemente num momento de indagação.

16.5.16

Vendendo desprodutos

Nossa lama de chocolate meio samarco vale como xarope bhp-billitônico e é indicada para devastar vidas inocentes. Efeitos colaterais? Quem pobre estava mais pobre fica se e quando sobrevive. Nada de muito grave.

Aritmética do marido da mulher prendada: soma e subtraia ministérios até acalmar as águas dos rios do interesse — e não se importe se dois menos um for um falso três. A matemática pura e insofismável é coisa pros outros, os que pedalam. Sob nosso auspício e noves fora isso e aquilo, monte um ministério masculino, o que não se vê desde a ditadura, e seja invejado por todos.  

Plantamos na imprensa falada, escrita e televisionada a tese de que agora é parlamentarismo ou a crise não chega ao fim. Visamos a outros clientes que não os tucanos, oferecendo-lhes preços e condições de pagamento ímpares.

Nosso plano médico permite aos clientes adoecer aqui e ir se curar em hospitais na Síria. Papa fina, mas, como não somos os únicos no mercado, a mensalidade — nosso diferencial — é do outro mundo.

Entregamos quentinhas no Brasil inteiro. Prato do dia: cuscunha temerado ao aceite de impeachment. Acompanha dessa água não beberei, com gotas de limão calheiro.

Assaltante age às escuras. Um deles deu um bote na filha do governador do Rio de Janeiro, mas, se tivesse encontrado no carro o pai da moça em vez dela, coitado do assaltante, o chefe do executivo está sem dinheiro, raspando o bolso de qualquer um que se aproxime dele. Fica o alerta: Assaltante consciente, não conte com a sorte, temos app identificador de vítimas para pronta-entrega!

Vende-se bicicleta voadora para ciclovias interditadas. Ligue para 1717171 e diga a senha “E.T. phone home”.

Traficantes, tenham um mínimo de responsabilidade social: Não vendam seus baseados na porta das escolas de São Paulo. Lá, os meninos estão sem merenda e, na larica, podem tornar-se violentos. Sigam esta máxima: Vender menos hoje para vender mais amanhã. Isso é empreendedorismo. Podemos lhes ensinar muito mais.

Comercializamos frases para uso em momentos de júbilo republicano. Uma amostra para dias de impeachment e que tais: Voto sim — ou não, fica a gosto do freguês — pensando nas colombinas edulcoradas da minha infância. Temos frases sintéticas para políticos apoéticos. Antes da consulta, 50% na mão. Ao fim e ao cabo, não podemos esquecer dos 10% da propina usual.

Apagamos palavras de dicionários. Temos apreço pelas começadas com G.

Campanha cívica: não confunda boi sonado com o deputado fascista.

Contra cuspes e escarradas, caras de pau a menos de um tostão.

Temos bicicletas sem pedal, muito apropriadas para quem é irresponsável ou é tratado como tal. Estoque baixo.

Troque seis por meia dúzia. Oferecemos os disfarces.

Aprenda a falar impeachment sem sotaque com o método Celso de Mello, certificado pela própria rainha. Manteremos uma promoção espetacular até que a Inglaterra se decida se fica ou se sai da União Europeia.

Temos lulas congeladas desde quando os mares não eram poluídos. Vitaminas e sabores preservados. Na compra de duas, ganhe um livro de receitas escrito por um amigo.

Reciclam-se discursos. Damos sabor democrático àquele desenxabido dos tempos da Arena e do Manda-Brasa esquecido numa gaveta. O cliente escolhe ou uma garantia de sucesso, pagando um adicional, ou um escudo contra chuva de ovo choco.

Oferecemos pacotes de ministros da fazenda. Com uma assinatura bianual, pode-se usar, no primeiro ano, um neoliberal com formação em Chicago e, em seguida, um keynesiano ortodoxo. No segundo, um homem de mercado, mestre no arroz com feijão com viés de favorecimento ao ex-patrão, e um marxista lunático. No Brasil ou fora, entregamos à domicílio ou em domicílio, o que for de acordo com a gramática do freguês.

Pintamos de branco defuntos de jovens negros de modo a inverter as estatísticas que cismam em apontá-los como as maiores vítimas da violência policial. Podemos também desenhar rugas para simular uma idade maior. Dois serviços, duas tarifas.

Levamos cópias de índios para eventos de falsa demarcação de terras. Não falam o tupi, mas arranham o kiriri.

Vendemos poesias boas, parnasianas ou não, para presidentes sem votos. Podemos — se o cliente se dispuser a fazer módicos depósitos em contas nas Ilhas Cayman — montar um business plan para o seu aceite na Academia. O fardão é negociado à parte, num segundo momento.

Não fazemos marketing político, mas gostamos de dinheiro.





2.5.16

Balanço em dias de crise


Nunca molhei a mão de um policial. Não economizo água. Bebi uns gorós antes dos 18 anos. Lá em casa, somos severos em matéria de não estimular os filhos a beber antes do permitido. Não furo sinal de trânsito, mas já furei alguma vez e sei que, em alguns cruzamentos com assaltos recorrentes, o sinal deve ser furado. Costumo atravessar a rua fora da faixa de pedestre. Nem cuspo nem jogo papel ou outra coisa na calçada. Desobedeço a velocidade máxima permitida com alguma frequência. Já me esqueci de declarar seiscentos reais no imposto de renda, o que me custou apresentar-me à Receita e retificar a declaração. Tenho função doméstica bem definida — lavo louças, principalmente — e, se não sou belo, pelo menos recatado eu sou. Hoje não dirijo caso tenha tomado um gole de cerveja, mas já dirigi completamente bêbado. Na infância, roubei fruta no pé. Certa vez, num restaurante, enquanto pagava a conta no caixa, fui assaltado com uma arma apontada para minha cabeça, e, passado o susto, o dono do restaurante me disse que os assaltos aconteciam quando ele não pingava a propina dos policiais. Fui o único a levantar a mão quando a professora perguntou se alguém já... E respondi afirmativamente à mesma pergunta quando feita por meu pai. Fumei, traguei, mas nunca vendi ou revendi. Nunca roubei livros, nem de amigos, mas, confesso: há uns vinte anos mantenho sob empréstimo um do Calvino cujo dono é um irmão, um brother mesmo, como vocês hão de convir de um sujeito que nunca cobrou o livro. Já menti por amor (canalhice). Menti também por covardia. Contei verdades que, se não contadas, não fariam diferença alguma na vida dos envolvidos. Amei mulher do próximo sem ser correspondido, minto, uma vez fui. Tenho orgulho de alguns votos nas muitas eleições da qual tenho participado, mas de outros tenho nojo (o famoso “menos pior”, escolhido numa conjuntura desfavorável). Para não pagar a passagem, pulei de um ônibus em movimento e me machuquei sem gravidade. Não dou esmolas. Trato as mulheres com respeito, mas às vezes quebro o pescoço para acompanhar alguma que tenha achado bonita. Nesses casos, em hipótese alguma, assobio ou falo impropérios. Ouço piadas de anão, negro, mulher, bicha, sapatão, presidiário, burguês, papagaio e português. Rio de quase todas, nunca das de negro. Não sei contar piadas, apesar de ser um pouco engraçado. Alguma vez joguei no bicho, mas nunca fui a desfiles de escola de samba, nem sambando na avenida nem sentado na arquibancada. O Zé Porteiro, que cuidava da portaria do prestigiado Passos Clube, por conhecer a todos, não permitia que eu entrasse nos bailes antes de completar a idade exigida. Nunca falsifiquei carteira de estudante ou outro documento. Não costumo comprar de camelôs, sinto falta da garantia e de outras formalidades no ato de compra e venda. Compro de lojas, mas não sei até que ponto suas mercadorias estão de fato formalizadas. Uso o Uber. Já paguei menos a médico em troca de não receber seu recibo. Nunca pedi um recibo a um médico sem ter usado seus serviços. Vivo há 30 anos uma união consensual desprovida de papéis lavrados em cartório. Guardo segredos. Tenho segredos que não confio a ninguém. Nunca matei passarinho, embora tenha tentado. Nunca me ofereceram propina. Não sou sócio de clubes nem militante de partidos políticos porque desconfio deles e provavelmente porque não confie muito em mim. Apesar disso, sou botafoguense. Jamais roubarei picolé de uma criança.

18.4.16

Mexendo na língua

“Um orador de boca cheia é um virtuose de refugos: na cesta de entulhos da literatura vai recolhendo imagens esfiapadas, carretéis perifrásticos, antíteses ruborizadas, prosopopeias trovejantes, metonímias desparafusadas, clips enferrujados, anáforas babadas, tmeses tortas, anacolutos malignos, sinédoques descartáveis e demais tropos e trapos de hiperbólica aceitação no mercado paralelo.” (Paulo Mendes Campos, Congelamento.)


Ao longo de sua existência, nosso português de todo dia tem sofrido muitas alterações em suas regras ortográficas. Na primeira metade do século passado, trocaram-se “pharmacia” por “farmácia”, “caza” por “casa”, “sciencia” por “ciência”. Recentemente, tiraram o trema de “linguiça” e, cortando na própria pele, de "linguística". Mataram o trema, eis a verdade. Se a grafia antiga soa, depois de um tempo, estranha, deixar uma determinada grafia de lado não é nada fácil, porque os que a usavam acostumaram-se com um jeito de escrever e, da noite pro dia ou num intervalo de tempo acordado longe de todos, em gabinetes, veem-se obrigados a abandoná-lo e adotar outro. A última reforma, presente em nossa memória e bastante contestada em Portugal, prova isso.

Tenho comigo que, ao mudar uma grafia, não só a relação das pessoas com a palavra é modificada, como também a coisa nomeada por ela ganha um novo destino. “Pharmacia”, durante muito tempo, foi o local onde os medicamentos eram preparados e vendidos — o que atualmente chamamos de farmácia de manipulação. Ao trocar “ph” por “f”, abriu-se caminho para a proliferação das farmácias, que passaram a vender remédios (e não só) produzidos em laboratórios. Quando se escrevia a palavra à moda antiga, na minha cidade natal, não devia haver mais que duas. Hoje, no quarteirão da minha casa, no Rio de Janeiro, são três, e, ao longo da rua com seus dois quilômetros, quinze ou mais. Estamos mais doentes? Temos mais possibilidades de nos curar? A doença e sua cura sustentam uma indústria rentável? Tudo isso é verdade, mas a mudança ortográfica impingida à palavra reinventou o negócio e garantiu o sucesso comercial do estabelecimento farmacêutico.

Quando fui alfabetizado, escrevia-se “êle”, “almôço”, “govêrno”. Concordo que ficou mais fácil escrever essas palavras sem o acento, entretanto, assim como o homem sem chapéu perde um pouco de sua necessária formalidade, ao perder o acento circunflexo, a palavra que designa a terceira pessoa do masculino jogou essa terceira pessoa na vala da vulgaridade. Pense nas refeições feitas atualmente: cada membro da família num canto da sala, com o prato no colo e a cabeça nas nuvens do celular. Isso seria possível no tempo do “almôço”? Nunca! Nem falo em governo (que, cauteloso, não volto a escrever na grafia cerimoniosa de antanho). Tenho de fazer uma pequena reflexão sobre a palavra “ela”, sempre escrita sem o adorno do circunflexo. Quer dizer que as mulheres foram e são vulgares? Muito pelo contrário, um chapéu a mais ou a menos não as diferenciaria em nada, razão pela qual não se acentuava a palavra antes e não se passou a acentuá-la depois da reforma levada a cabo durante a ditadura militar. Vulgar são os homens. (Ufa, acho que me saí bem.)

Reformas ortográficas têm sido feitas aos borbotões, só que ninguém mexe naquilo que facilitaria nossas vidas. Acompanhem meu raciocínio.

Você sabe o que são as perífrases? Não? Puxe pela memória. Perífrase é, segundo o Aurélio, a “designação de alguém ou de algo por construção que dê relevo a uma de suas qualidades, e não por seu nome”. O exemplo do dicionário é “a luz de minha vida em lugar de meu amor”. Talvez, feito eu, você conhecesse a “coisa”, mas nunca soube seu nome — ou, se soube, não o reteve.

Sem querer abusar de sua paciência, vou ao fundo do fundo buscar a palavra “tmese”, sinônimo de mesóclise, quer dizer, a “intercalação de pronome átono em um verbo”. Um exemplo da minha cachola: “Dir-te-iam, em áureos tempos, que andamos às cegas rumo ao fim do mundo.” Uma frase meio pessimista, mas esqueça sua mensagem, a frase tem a única intenção de ilustrar o que vem a ser uma tmese.

As palavras anteriores e outras tantas, mal-encaradas em sua essência, fazem parte do que poderia ser visto como o suprassumo da gramática. Todos passaríamos bem sem elas caso não enfrentássemos tantas provas ao longo da vida de estudante. Provas que, nesse caso específico, foram apenas uma cobrança da nossa capacidade de memorização.





Meu texto quis apenas isto: chamar a atenção para os efeitos das mudanças no terreno da língua. (Acabo de escrever uma catáfora, “unidade linguística que se refere a outra, enunciada mais adiante”). Como os exemplos que citei provam por a mais b, as mudanças ortográficas repercutem na vida real, que vibra muito além da palavra escrita (o que podemos esperar do mundo lusófono sem o trema?). Sendo assim, um conselho, a essa altura óbvio, aos sabichões que porventura resolvam dedicar seu precioso tempo à exigida simplificação: muito cuidado com as consequências que podem advir daí. Pensem, ponderem. Repensem e ponderem mais uma vez. De qualquer modo, pelo amor ao deus das coisas triviais, corram o risco. Antevejo, de cara, um efeito colateral positivo na mudança: facilitará a decoreba, melhorando, com isso, a nota da moçada.

4.4.16

A Bahia em dias nublados

Ao João, que me proporcionou a viagem.

Segunda praia, o point de Morro de São Paulo. Foto do autor.


O poeta Carlito Azevedo postou no Facebook a história de uma bailarina russa de noventa anos que afirmou, em entrevista, que os melhores anos de sua vida haviam sido os vividos entre 1936 e 1942. Justo quando ocorreram os expurgos de Stálin e grande parte da Segunda Guerra?, reagiu o entrevistador. Para a bailarina, não havia mal nenhum nisso já que, naquela época, ela era jovem e bela, o que bastava. O intuito de Carlito era dizer que, apesar da espessa nuvem que cobre os dias de 2016, nada impede que, nele, cada um de nós possa ser feliz. Seu otimismo tinha a ver com a beleza do outono, que chegava. Otimismo relativo, Carlito alertava, agarrado a Drummond, haja vista que a felicidade coletiva estava transferida para o próximo século.

O país de fato está capengando, mas eu estive na Bahia. Eu e meu filho mais velho, o bom João. Lá, reencontrei meu primo Fernando e também o amigo Ricardo. Lá, fui conhecer a Praia do Forte e o projeto Tamar. Lá, depois de mais de trinta anos, voltei a Morro de São Paulo, agora uma ilha toda incrementada, cheia de vida e luz, tão diferente daquela da qual saí justo no dia em que a eletricidade chegava para os ilhéus. Dela, minhas lembranças eram um misto de pôres do sol, pratos feitos de siri catado, praias vazias e morcegos. O pôr do sol está lá intocado, ninguém brinca com ele. Come-se bem — só que não me ofereceram PF de siri —, ainda é possível encontrar um naco de praia vazia (distante), mas os morcegos retiraram-se, sobrou-lhes menos espaço. Assim é, quando o homem, munido de luz, toma conta de tudo.

Fim de tarde visto não do Farol, ponto de observação do pôr do sol, mas de um barco. Foto do autor.


Eu e meu filho somos pessoas caladas, o que nos torna contempladores da natureza, caminhantes incansáveis. Na Bahia, quando foi preciso, tomamos decisões (regadas a cerveja e falando baixo) que garantissem exclusivamente o descanso, o desfrute do nada. É certo que olhamos as mulheres, mas, sendo homens que não gostam de esbravejar, de falar a linguagem de macho conquistador, lá pelas tantas, não na hora H — no momento do desfrute visual, um ou outro comentava que não era pequeno o número de meninas bonitas, argentinas, na maioria. Morro de São Paulo parecia um território argentino (um pouco uruguaio, quem sabe). Jovens e outros nem tão jovens circulavam pela vila, e o espanhol ecoava livre pelos becos. Ouvi alguns baianos indo além do portunhol, gente preparada para receber turistas. Em certas lojas e restaurantes, vi placas escritas no que me pareceu árabe e que depois soube era hebraico. Contam que os israelenses visitam muito o lugar. Bobo de quem não o visita. Há muita gente para pouco espaço, é verdade, mas a beleza compensa a muvuca.

Falei dos gringos, mas os baianos estão lá, negros e bonitos. Jovens fortes — mulheres altas, de pernas rijas (resultado de tantos morros no caminho diário). Muitos rapazes vivem de carregar malas e mercadorias em carrinhos de mão, um dos meios de transporte mais importantes da ilha. (Há, ainda, um trator para recolher o lixo e transportar alguma mercadoria mais pesada, poucas motos e algumas bicicletas, todos alocados nos serviços de utilidade pública). Tudo bem organizado, com trabalhadores credenciados. Isso me fez pensar se essa não é uma tarefa pesada demais para alguns jovens e para outros que estão numa idade “muito” adulta. Por outro lado, o que seria deles sem isso? As agruras da realidade sempre vêm cobrar meu posicionamento. Sem resposta, volto, não como fuga, ao belo.

Boipeba, ilha vizinha a de Tinharé. Foto do autor.


E como é belo aquele pedaço de terra que recebeu cedo os portugueses. Aprendi em um fôlder que Martin Afonso de Souza aportou por lá em 1531 e batizou a ilha de Tynharéa, hoje Tinharé. Por sua localização (na chamada barra falsa da Baia de Todos os Santos), a ilha esteve envolvida em muitos conflitos, ora com franceses, ora com holandeses que procuravam atacar a colônia portuguesa. Na internet, por sua vez, afirma-se que ali Hitler teria afundado submarinos brasileiros, forçando nossa entrada na Segunda Guerra. Nada disso, porém, destruiu o lugar; não sei se o turismo, as construções de pousadas e casas conseguirão fazê-lo, ao poluir as águas com esgoto não tratado, por exemplo.

Venho fazendo tudo para falar do belo e, nos últimos parágrafos, esbarrei em senões. Não tem nada a ver com os tropeços do país, é coisa minha, um pessimismo miúdo que gosta de furar os olhos da minha fé na vida. Tenho muito a aprender com a bailarina russa, mas ela não está entre nós, imagino. Se estiver, saberá ensinar? É matéria que se ensine? Que se aprenda?

Eu e João, ao sairmos do hotel, levávamos em uma bolsa térmica meia dúzia de cervejas. Quero dizer com isso que, mesmo diante da crise, há meios de fazer uma viagem não tão dispendiosa e, assim, garantir uma dose de alegria e encantamento. Quando a realidade não me deixa esquecer, sei muito bem disso.