2.4.17

Instituto Estação das Letras: espaço de resistência


No último dia 23, a Estação das Letras (1), espaço esplendoroso que Suzana Vargas e um time pequeno e aguerrido mantêm no Rio de Janeiro, completou 21 anos. Com a maioridade, veio a transformação. A Estação virou um instituto. É uma mudança jurídica, mas também um desafio, haja vista que agora, além das oficinas —entre outras atividades —, a Estação terá flexibilidade para lançar projetos que usufruam das leis de incentivo fiscal e poderá, também, contar com contribuições diretas de pessoas físicas e jurídicas e, com isso, oferecer bolsas de estudos aos que não têm condições financeiras. Enfim, a turma que gravita em torno da Estação está cheia de planos para tocar adiante essa casa de resistência. No dia da festa, um dos colaboradores mais antigos, o Jair Ferreira dos Santos, no discurso feito em nome do corpo docente, chamou a atenção para o fato de que, no mundo atual, encantado pelo virtual e pelo visual, promover a escrita e a leitura, o que a Estação faz, é uma ação política e de resistência. Assino embaixo.

Suzana Vargas e o bolo dos 21 anos da Estação das Letras. Foto do Instituto Estação das Letras.

Numa tarde comovente, na qual encontrei, por exemplo, Flávio Moreira da Costa e Maria Amélia Mello, pessoas importantes na minha aventura literária, Suzana quebrou todos os poucos protocolos planejados e, nas mãos da mais justificada emoção, comandou a festa, que terminou com bolo e espumante. A comemoração teve início com a fala do Cristóvão Tezza, escritor que se mostrou um palestrante seguro, desses que levam seu papo erudito na maior simplicidade. Ele comentou, lá pelas tantas, que não se lembrava de ter falado para um auditório tão lotado quanto aquele. De fato, o público era grande, logo não somos tão poucos os que estamos prontos para resistir — e, de fato, já resistimos.

O instituto está promovendo o cadastramento de escritores residentes no Brasil, podendo, assim, tornar-se referência na organização de um encontro de escritores com leitores, de uma festa literária, enfim, de eventos dessa natureza. Ideia mais que bem-vinda, um jeito de aumentar o leque dos convidados, pois, se é muito bom ouvir um Veríssimo, um Ruffato, presenças quase certas em tudo que gira em torno da literatura, lá no interior de Minas, está um cara, meu chapa, que todos deveriam ouvir (e ler), o Marco Túlio Costa, um prêmio Jabuti que ainda não vi na Flip ou noutras festas. Também lá no interior de Minas, está outro escritor — que conheço exclusivamente por ter lido seu espetacular “as visitas que hoje estamos” (Editora Iluminuras) —, o Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, que eu gostaria muito de ver transitando por aí. Esse cadastro poderá tornar visível, onde alcance a internet, gente assim. Já está no ar (http://www.institutoestacaodasletras.org). Cadastrem-se!

Interessados em fazer leitura voluntária encontram um espaço no instituto, já que se pretende levar esses leitores a hospitais, casas de repouso e outras instituições nas quais muitas pessoas, por uma série de motivos, não têm autonomia para a leitura. Para terminar, cito a “curadoria” que o instituto fará, selecionando mensalmente em seu site livros recém-lançados, de vários gêneros e com destaque para novos autores. Isso, ao final do ano, levará a que determinados livros recebam um selo IEL.

Finda a comemoração, tomado o vinho e comido o bolo, eu e alguns amigos, inclusive o agora importante consultor de gestão do instituto, nos enfiamos num bar e fomos rir da vida, de nós mesmos, essas coisas que não são monopólio de escritores e leitores, mas que sabemos fazer com capricho.

______________________________________
1) O endereço do Instituto Estação das Letras é: 

Estação das Letras Rua Marquês de Abrantes, 177 LJs 107 e 108 – Flamengo

Rio de Janeiro – RJ, 22230-060


(0xx)21 3237-3947

29.3.17

Tangos de cera







Este poema foi apresentado em uma oficina ministrada por João Gilberto Noll, e ele gostou. Então, mesmo que eu mantenha sérias dúvidas sobre ele, o poema, publico-o como uma homenagem ao Noll, que hoje, dia 28 de março de 2017, faleceu aos 70 anos.

19.3.17

Trouxa não sou e tolo ele não é

Em 1982, Blade Runner estreou nos cinemas brasileiros. Eu tinha vinte e um anos, era um garoto articulado, assistia a filmes incompreensíveis e os entendia muito bem, o que não aconteceu com esse de Ridley Scott. Uns anos depois, fui revê-lo e, aí sim, a ficha caiu. Aquela ficção acerca do futuro — agora muito próximo, pois a história se passa em 2019, na cidade de Los Angeles —, na realidade e de forma muito sintética, falava do atrito entre nossas forças humanas e desumanas. Não vou comentar o filme, minha intenção é falar de um fato não entendido em certo momento, mas que, num futuro próximo ou distante, torna-se claro, transparente, até óbvio.

Eu gostava de uma menina, vivia me insinuando para ela. Na piscina da casa do Zeca, ela me chamou de pateta. Engoli seco, dei umas braçadas na água e achei que, apesar da ferida enorme, seria capaz de levar a vida adiante. (Ah, a intensidade da juventude!) Ainda na mesma tarde, na roda de amigos, a garota comentou que seu personagem de gibi preferido era o Pateta. Tão evidente, não é? Pois eu, amargando o golpe do desprezo, não me dei conta de que ela, se não dizia me amar, pelo menos deixava no ar uma chance, uma maldita chance desperdiçada.

Se cobro um pouco mais da memória, encontro outros momentos feito esses, nos quais precisei de uma segunda chance para me livrar da ignorância (o filme) ou, pior ainda, nem notei a segunda chance (a paquera).

Mais uma história. Encontrei um ambiente hostil numa nova área em que fui trabalhar. Um amigo, antevendo o problema, encorajava-me e apostava na minha personalidade gelatinosa, capaz de fazer com que eu ignorasse as ameaças e as bolas nas costas que receberia. Ele estava errado. Num período de uísque e arrastados serões, vi brotar meus mais perenes e doloridos calos.

Como se diz, o tempo é uma escola e nela aprendemos a cantar fagueiros aquela música do Arnaldo Baptista: “Sou malandro velho, não tenho nada com isso”. Um parêntese. Arnaldo Baptista fez essa canção — “Cê tá pensando que eu sou loki?” — bem jovem. Um tempo depois, se jogou por uma janela e quase não experimentou a velhice. Hoje, por sorte, pela medicina, por um amor que foi cuidar dele no hospital e nunca mais o abandonou, o talentoso mutante beira seus setenta anos. Posso estar enganado, mas a aventura aérea enfiou Arnaldo numa espécie de juventude eterna, bom lugar para quem, com menos de trinta, era malandro velho e não se responsabilizava por nada daquilo.




Saio do parêntese. Sintetizo o que disse até agora: sou bobo, mas trouxa deixei de ser. Alguns mais, outros (como eu) menos, todo mundo passa por essa evolução, como provam as muitas associações feitas entre a velhice e a sabedoria. Mas, cuidado! Há, de um lado, o que não aprende de modo algum (o tolo) e, de outro, o que aprende tudo, mas, por maldade, se faz de incapaz (o tinhoso). Um exemplo? O senhor que, no Dia Internacional da Mulher, bradou valores do século XIX ao saudar a importância da mulher caseira, que, fora do lar, no máximo, ajuda o país economizando na compra do supermercado. Então, tolo ele não é.

2.3.17

Efemérides (quase familiares) de março



Rosa de Luxemburgo nasceu num 5 de março, assim como, citando um dos nossos, Heitor Villa-Lobos (que viria a morrer num 17 de novembro, dois anos antes de eu nascer e no mesmo dia do nascimento de meu amigo Átila). Ambos no século XIX. No século XX, a data trouxe ao mundo Patativa do Assaré, em 1909; e Pasolini, no ano em que o modernismo brasileiro havia mostrado, durante o mês de fevereiro, na Semana de Arte Moderna, a que veio. Listei nomes conhecidos da cultura, mas, nesse mesmo dia, em 1961, nascia, na minha cidade, meu primo Jânio, cujo nome, claro, era uma homenagem ao presidente que, em agosto daquele ano, pediria o boné e deixaria o Brasil naquele fuzuê que descambaria, logo depois, no Golpe de 1964. Cumpre dizer que também num 5 de março morreram Josef Stalin e, como contraponto, nosso invejável Jorginho Guinle.
Datas são datas e, do ponto de vista estatístico, nenhuma é melhor que outra, ou seja, nascem e morrem grandes e pequenas figuras todos os dias. Mesmo assim, dia importante ou não, continuo com este 5 de março. Foi num deles, depois de sair da festa dos 19 anos do Janinho, que embarquei no ônibus das 23 horas com destino a São Paulo. Dentro do veículo estavam três amigos. Juntos fomos o inferno dos outros: cantamos (eu levava o violão), fumamos e bebemos. Coisa de jovem. No meu caso, de um que enfrentaria uma nova cidade em sua vida, o Rio de Janeiro, onde, depois de tomar o Cometão São Paulo-Rio, estou há 37 anos, tendo vivido, nesse período, dois anos na capital paulista. Ergo taça e comemoro.
(Leitor, por favor, pense assim: “Bem, o Xandão está por aí, não sei se venceu, mas está por aí, tem sua mulher, tem seus filhos, enfim, e de novo, está por aí.” Depois, faça uma oração ao pessoal daquele ônibus (não se esqueça do motorista), gente incapaz de reclamar da falta de noção de quatro jovens com a corda toda e prontos a abraçar o mundo.)
Quem nasce em março é marciano? Não sei, mas muitos são do signo de Peixes, tido como de pessoas aéreas, desligadas. Dos nove netos de meus pais, quatro nasceram no terceiro mês do ano gregoriano — um deles, às vésperas do carnaval de 2000, no dia 3, meu filho mais novo —, e a única mulher entre os quatro se casou com um bom rapaz de Lyon do mesmo mês. Um dos netinhos de Joaquim e Haydée veio à luz num 8 de março, Dia das Mulheres, essa data política tão cobiçada pelo comércio. Apenas meu afilhado, na lista anterior, não é de Peixes, é de Áries, signo do qual sei menos que pouco. Deste sobrinho, o que chama a atenção é o fato de ele morar na Austrália, sei lá se tem a ver com a data do nascimento. Para ver como minha família tem compromisso com o mês, dos seis bisnetos, um também é de março.
Avançando sobre os nascidos em março, destaco a bisavó dos meus filhos, a serena Vó Olga, a dona Yedda — que, no alto de seus mais de noventa anos, me disse que fazia questão de comer pepino porque temia que, chegada a velhice, algum médico a proibisse — e três amigas da adolescência. Todas são arianas, mas nenhuma viveu ou vive em nada parecido com Austrália, o que me parece bem razoável, pois ô, país distante. Quase me esqueço de outros marcianos: a Jéssica e o Guilherme da Nilza, jovens bons de uma mãe maravilhosa; a parceira de escrita e leitura Nilma Lacerda; e o terrível Paxá, meu xará e aliado em algumas estripulias nesse mundo meio bossa nova meio rock’n’roll. Tem mais um monte: o Téo; a Andrea Canto; meus primos, os irmãos André e Tiago; a Stella Maris (por seus livros, colecionadora de Jabutis); a Ana Cristina Melo (escritora e editora de sete fôlegos); a Lilibeth; a Maia; o Broa; o Danilo (a quem devo um pandeiro, anotem aí, por favor). A lista é grande.
A última memória do mês de março é daquele maldito “evento” ocorrido em março de 1964. Não deveria figurar em crônica alegre e familiar, ainda que já tenha feito referência a ele ao explicar a razão de meu primo chamar-se Jânio. Assim, não repito, aponto apenas que para alguns o dia D daquele absurdo político brasileiro foi o primeiro de abril, data que, associada à mentira, não seria levada a sério, por isso empurraram o acontecimento para o último dia de março. A seriedade bárbara dos senhores de coturno e seus apoiadores, todavia, não deve ser colocada na conta de março ou de qualquer outro mês. Era coisa dos homens. Sempre é coisa dos homens, “a raiva e a fome é coisa dos home”, como Aldir Blanc, um setembrino, escreveu e João Bosco, um julino, musicou.

19.2.17

A crise

Sempre há os que são capazes de compreender o movimento geral dentro de um contexto histórico. A crise econômica, por exemplo, com a fuga do emprego fabril das economias centrais, explicaria o fortalecimento da direita populista, evidente no caso Trump, mas também visível na Europa. Na Áustria, por pouco esse grupo não assume o poder. Na França, eles andam cercando o poder não é de hoje. A Grã-Bretanha deixou a União Europeia, num processo comandado também pela direita. Em tudo isso, percebe-se como os trabalhadores vão pouco a pouco associando suas perdas à presença do estrangeiro e, passo seguinte, aliando-se aos xenófobos. Somente os insensíveis não percebem que estamos vivendo o pior dos mundos.
O Brasil não está no centro do capitalismo, apesar de ser uma das dez maiores economias do mundo. Por isso, o emprego que não está mais nos Estados Unidos ou na Europa bem pode ter sido em parte transferido para estes trópicos. Portanto, a crise brasileira difere da que se vê nos países ricos e é típica de uma patologia de classe. Nossa elite — oligarquia, a bem da verdade — busca de todas as formas recuperar o espaço do poder, para usufruir de suas benesses de forma exclusiva (por pensar tratar-se de um direito historicamente estabelecido). Se a volta dos que não foram se vestiu de legalidade, apontando-se o dedo para os tropeços do governo Dilma, o passo seguinte foi mostrar que, mais importante que esses deslizes, era a crise provocada por um mau gerenciamento (que levava à inflação, ao desemprego etc.). Nosso desemprego, nessa leitura, se explicava por uma questão de política econômica, nada parecido com aquele que se via e se vê nos Estados Unidos (menos) e na Europa. Lançada a base de uma nova política — que promove ainda mais desemprego por retrair a demanda do Estado —, o governo começou a tropeçar nas suas contradições, haja vista que está quase todo ele imbricado nos mesmos escândalos do governo anterior, nada mais natural porque este pariu o novo, que não tem nada de novo.
Neste processo pelo qual estamos passando, acabamos presos a uma separação radical — nós e eles, nós contra eles. Essa ruptura não dá sinais de arrefecimento, e começo a crer que a saída para tudo isso não virá lustrada pelo verniz de uma capenga democracia. O PMDB governa mais interessado em acomodar seus pares, tirando-os da linha de frente da caçada aos corruptos; o PSDB não faz diferente e aposta que os fatos poderão repetir aqueles da época de Itamar Franco, com o que voltarão, pelo voto, à presidência. Por sua vez, o PT está mais perdido que tudo, suas aparições ocorrem apenas para dizer que Lula e Dilma são pessoas de bem. Uma oposição clara, programática, nem passa pela cabeça do partido. Por fim, a justiça está de certa forma desconfortável por desempenhar o papel que lhe caiu no colo e que, por sua vez, poderá fazer com que ela tenha de tomar decisões que, de fato, ferem o espírito da democracia, como destituir toda a linha sucessória e, de uma hora para outra, pousar no executivo. Tudo isso é uma pena e um retrocesso.
Peço-lhes desculpas por este texto tão sisudo e provavelmente equivocado, mas não haveria outro modo de chegar aonde quero chegar. Eu tenho uma solução (não sou o único, já ouvi outras vozes clamando por isso) menos traumática para essa crise toda: devolver o Brasil a Portugal. Claro, antes de tudo, teremos de demonstrar por a + b que o Cabral que temos agora não é o mesmo que nos descobriu — não são nem parentes distantes —, portanto não estamos tratando mal um herói português ao manter o Cabral contemporâneo e brasileiro preso em Bangu. Feito isso, eu acho, nossos patrícios nos acolherão de braços abertos — talvez vejam como uma oportunidade para reaver o prejuízo recente que sofreram ao se meterem em negócios de telefonia celular por aqui. Ficaremos bem com Portugal ao devolvermos a eles o amor próprio das grandes potências, abrindo-lhes as portas para, quem sabe, tentarem refazer nossa história, dessa vez sem escravos, sem os ciclos da cana, do ouro, sem entradas e bandeiras, sem invasão holandesa ou francesa e sem que a gente coma o bispo Sardinha.
Detalhe do quadro Batalha do Avaí, óleo de Pedro Américo sobre um dos últimos episódios da guerra do Paraguai, ocorrido em 11 de dezembro de 1868 (Foto: Museu de Belas Artes/Reprodução)
É bom que nos apressemos com essa solução uterina antes que nos ocorra algo tão terrível quanto o que está sendo urdido na calada pelo atual governo: um poder absoluto, à custa, quem sabe, de qualquer migalha de liberdade. O que seria igualmente ruim? Vendo-nos tão estarrecidos, o Paraguai resolver vir aqui vingar o que lhe fizemos no longínquo século XIX, o mesmo no qual inventamos, em cima do conflito, um herói moderno, Caxias, e Machado de Assis começou a nos decifrar.

6.2.17

De olho na tela

Gosto das salas de cinema, onde, ao contrário da televisão — mesmo daquelas de tela grande, modernas, de imagem perfeita —, assisto aos filmes com prazer. Em casa, não há o escuro que nos mantém suspensos antes, durante e depois do filme, particularmente do filme bom, e, além disso, os filhos passam conversando na frente da TV, a gente corre à cozinha sem motivo e ao banheiro por coisa pouca.

Nas salas, o filme começa na compra do ingresso, na escolha do assento, no café tomado um pouco antes da sessão. Feito o atleta no aquecimento para entrar na quadra, o espectador se concentra, faz flexões, alongamentos, tira o lixo da cabeça para que ela fique livre para o que vem a seguir, que não é uma disputa pela bola, mas é um embate entre ele e uma história que lhe será contada. O diretor ou a diretora tem de manusear muito bem suas armas, cabe a ele ou a ela e a seu elenco derrotarem o sujeito que pagou o ingresso e entrou naquela espécie de caverna. (Eu sou um dos que jogam duro, entro pra brigar.)



Fazem parte desse longo começo um trailer exibido com ganas de fisgar seu público futuro e uma propaganda de banco que tenta, por meio de facilidades mentirosas, atrair o cara cheio da grana ou o duro, principalmente este, meu igual. O filme já começou quando começa, esse é o ponto. Por isso, fico incomodado, já na preliminar, com os celulares cheios de luzes e sons — e as pipocas. Depois que enfim a história passa a ser contada, se não me seguro (ai, minha úlcera!), me transformo no chato do cinema, o tipo que faz “psiu” o tempo todo. Como não sou um milionário que pode ter uma sala exclusiva, respiro fundo (ai, minha úlcera!), me distraio desse monte de gente que não sai de si e começo a luta com o que me levou até ali. O ringue, naquele espaço de tempo, é a sala, e a glória é sair vencido, por nocaute ou ponto, tanto faz. Estou ali de sparring para o diretor e sua história, desde que não vacilem.

Nas últimas semanas, essa magia aconteceu duas vezes. Ao ver “Eu, Daniel Blake”, do britânico Ken Loach, e “Manchester à beira-mar”, dirigido pelo americano Kenneth Lonergan, de quem eu nunca ouvira falar. As duas histórias têm lá seus pontos comuns (além de ter cenas similares, quando os personagens buscam emprego pelas ruas da cidade), mas suas perspectivas são bem distintas.

O britânico, veterano diretor reconhecido por tratar dos perrengues sociais, não foge da sua temática e mostra como nos dias de hoje Kafka é a realidade. Os governos, apoiados em tecnologias que desumanizam e ao mesmo tempo não estão acessíveis para muita gente, tornam a vida daqueles que precisam de assistência social um inferno, como se já não bastasse o fato de precisarem de assistência social. No filme de Loach — assim como na literatura de Maria Valéria Rezende (a autora acaba de ganhar o prêmio Casa das Américas por seu “Outros cantos”, editado pela Alfaguara) —, o que salta aos olhos é a solidariedade entre pessoas que estão jogadas à margem. É isso que as faz resistir, mesmo que algumas não resistam. Melhor seria dizer: é isso que as faz resistir enquanto resistem. Ou ainda: é isso que as faz resistir um pouco mais.

Já o americano conduz seu filme na linha da trajetória do herói, a caminho da derrota, é bem verdade. Seu grande personagem está aos frangalhos (a gente descobre aos poucos a razão disso, já que o filme alterna o tempo todo o presente com o passado), mas é, de fato, um herói, sua força e sua ruína vêm de dentro dele, da forma como elabora ou deixa de elaborar os reveses da vida. Ele se desfaz, mas, no meu modo de ver as coisas, a cena final deixa no ar que ele terá no afeto um jeito de resistir (ele também resiste ou precisa resistir).

Se no filme inglês a opressão vem do “sistema”, no americano vem da vida íntima e familiar — também do acaso, do azar para ser mais preciso. Como já disse, duas perspectivas distintas, tratadas, em ambos os casos, de forma sofisticada e emocionante. 

Para desfrutar dos filmes, corra a uma sala de cinema, acomode-se na cadeira e deixe-se levar, dando a cara a tapa. Esqueça o celular e as pipocas. Na saída, uma cerveja ajuda a elaborar melhor as coisas, mesmo que se chegue à conclusão de que o mundo não vai nada bem, de que todos nós estamos nele, somos parte dele e temos um pingo que seja de responsabilidade pelo estado das coisas.

22.1.17

Zorro

Lembrei-me do cachorro que tive quando morava em Passos depois de ter postado no Facebook uma montagem com duas fotos nas quais estou de barba — em uma eu tinha uns 20 anos; na outra, a idade atual — e de ter escrito a seguinte legenda: “Volver a los 17 é um chiste.” Um chiste e tanto, convenhamos. Na juventude, se os cabelos eram pretos, a barba não poderia ser de outra cor. Hoje, quase tudo é branco, embora, por conta do quase, o que não é borra o que é. Esse é o lado visível do chiste, dos demais nem falo. Dito isso, resta esclarecer como saltei da piada ao meu vira-lata com um quê nobre de pastor alemão.
Meu amigo e vizinho lá no Beco dos Aflitos, o Paulo Régis Bacil Abreu — conhecido também como Paulo da Yolanda do Jezo da Infantil —, perguntou, em um comentário à publicação, se o cachorro da minha casa se chamava Lobo. Não Paulo, era Zorro. (Que raio de associação é essa entre minhas fotos e o cachorro? Mistérios do mundo.)
A pergunta, motivada seja lá pelo que for, jogou o velho Zorro no meu colo. O nome deve-se ao herói de capa e espada, a cujas aventuras assistíamos nas matinês de domingo e, mais tarde, em forma de seriado de TV. O nome já veio com o cachorro, mas eu o teria escolhido do mesmo modo.
Ao deixar o pensamento solto, comecei a olhar enviesado para minha memória, pois as coisas não teriam sido como eu as registrei. Não tudo. Imaginava, por exemplo, que coubera ao Zorro a tarefa de vigiar o quintal durante uma década e meia. Impossível. Saí de Passos com 15 anos, e ele já estava morto. Acho que confundi o tempo que ele ficou na casa com a idade que teria no final da vida.
Deixo essas incertezas de lado para falar daquilo sobre o qual não resta dúvida. Se não queríamos o Zorro por perto, bastava dizer “água”. Ele zunia. Está certo quem conclui que meu cachorro nunca tomou banho na vida, mas, espante-se se for o caso, nem por isso tinha cheiro forte ou pelo duro. Um milagre — ou, quem sabe, efeito da chuva, já que, por viver no quintal, não conseguia fugir completamente dela.
A falta de banho dava-lhe um ar de maltrapilho, e isso piorava quando sumia por três dias, às vezes por uma semana. Aposto que se enturmava com os colegas da rua e com eles disputava o cio de uma cadela. Não é fácil conquistar uma fêmea nesse mundo cão, por isso, como regra, retornava abatido, até mesmo ferido. Certa vez, os estragos foram assustadoramente grandes, porém, para meu espanto, ele entrou pela porta da frente, cruzou a sala, a copa, a cozinha e foi se deitar em seu quintal, ali onde, na tigela amassada, o angu com carne e osso o esperava. Com essa entrada triunfal, o Zorro nos mostrou sua capacidade de ir à luta e voltar, ainda que capengando, orgulhoso de suas feridas, que, especulo, poderiam ser uma espécie de troféu de sua futura paternidade.
No fim da vida, o velho cão ficou esclerosado — pelo menos assim qualificávamos seu estado. Se dizíamos saia, ele vinha; se venha, saía. Nessa época andou avançando em pessoas próximas, uma investida inconsequente, já que, naquela altura, era banguela ou praticamente banguela.
Lembro-me do dia em que gastava meu tempo no quintal, e meu pai e dois amigos voltaram da rua. Acabavam de sacrificar o Zorro. A tiros. O sacrifício era necessário, a forma... Bem, eram outros tempos. Não guardo mágoas — de meu pai, jamais. Porém, aqui e agora, cheguei à pior parte de toda essa lembrança desencadeada por uma associação estranha feita por um amigo que há muito não vejo.
Numa péssima foto, o querido Zorro, nalgum dia qualquer dos anos de 1970.

29.12.16

Sete sonhos na estante

I

É uma bola, vê-se de longe, e cai em minha direção. Há uma tensão clara no olhar dos que estão por perto. Meus pais entre eles. Meus irmãos também. A menina que eu amo larga a minha mão e foge do que está prestes a acontecer. Por que o pânico? Tenho a responsabilidade de fazer como os jogadores: matar a bola no peito e deixar que escorra pelas pernas até alcançar meu pé direito, o bom. Não sou nenhum Pelé, mas posso cumprir essa missão inesperada. Quando a bola chega perto, muito perto, vejo que se trata de uma bomba. Não posso correr, todos confiam em mim, depositaram suas vidas em minhas mãos (no peito, no pé). A bola atinge meu peito, e o impacto é tão grande que o chão se abre e me engole. Quando a bomba quica no buraco e volta ao ar, passo a fazer balõezinhos com ela. O movimento leve que se segue parece o de um balão de gás subindo e descendo. Mas, de repente, a bomba explode.
(O despertador das seis e meia toca.)

II

Os pássaros voam de costas, os cavalos trotam ainda que lhes faltem as patas.
(Um grito, sem origem, perturba a madrugada.)

III

Aquela menina que nunca sequer me notou fixa o olhar no meu. Ficamos uma eternidade assim estáticos, olho no olho. De repente, de suas órbitas oculares começam a sair imensos papiros. O que sai do olho esquerdo é vazio, um papel antigo, grosso e fosco. No da direita, há uma frase que aos poucos vai se revelando. “Agora é tarde”, é o que está escrito. Antes que eu lhe diga alguma coisa, a menina dos meus sonhos se vira e sai correndo. Vou atrás dela, e os dois ficamos presos a uma corrida que não nos tira do lugar. Tenho então uma ideia aparentemente brilhante: estendo os braços para agarrar a garota. No entanto meus braços vão se tornando grandes, elásticos e saem do meu controle. A menina se vira para mim, e vejo que ela não é aquela que nunca sequer me notou.
(Da mesa do almoço, sob censura frouxa da mãe, ouvem-se as piadas picantes do irmão.)

Foto tirada em evento do "Coletivo Entre-Tempos" e trabalhada por mim.


IV

Stela e eu entramos em um abatedouro. Antes que eu estranhe a situação, chifres crescem na minha cabeça. Stela muge. Os homens encarregados de nosso sacrifício se apiedam de nós e começam a rir. Feito Ferdinando, o Touro, esfrego a pata no chão. Cai uma chuva quente. Stela berra que é ácida.
(Sem cobertas, a noite é fria.)

V

Tenho a pele azul, e as pessoas, no Beco dos Aflitos, me comparam a um pelicano.
(Um cutucão para interromper o ronco.)

VI

 Quando vou entrar no palco, as luzes se apagam. Roberto Carlos passa por mim e diz daquele jeito dele: “que coisa, bicho”, depois mete o dedo no interruptor, entra no palco e o mundo acaba.
(Às quatro da tarde, dorme-se a sesta ou a noite sem fim.)

VII

Eu e Deus jogamos porrinha. Ganho. Deus chora.
(O sono dobra o cabo dos dias.)

26.12.16

Natal com Machado

Comecei a escrever crônicas na passagem do século XX para o XXI, convidado pelo amigo e escritor Marco Túlio Costa, que, naquela época, ajudava a reerguer um antigo jornal de Passos. (Portanto, se há um culpado, é ele.) Apesar desses dezessete anos, este é meu primeiro texto que sai justamente no dia do Natal. É verdade que escrevi uma crônica natalina, e nela contei de uma ceia, na casa da tia Yole, quando vi as renas e o Papai Noel cruzarem os céus. Essa visão, ao contrário do que se pudesse esperar, me fez descrer de vez da figura do velhinho de barba branca. Vi para descrer, o que São Tomé diria disso?


Natal singelo numa rua de Botafogo, Rio de Janeiro

Nada dessas coisas importa mais, hoje escrevo para ser lido na mais celebrada festa cristã. Quero fugir das platitudes, do senso comum, o que não é, adianto, fácil. Eventos repetitivos nos levam a buscar repetidas formas de lidar com ele. Feliz Natal! Que Cristo nasça e renasça em seus corações. Que o bom velhinho não se esqueça de você. O meu amigo oculto é vesgo, mas enxerga longe. Tudo isso embalado pela Simone, que, ao cantar a versão traduzida de “Happy Xmas (War is over)” do John Lennon, viu-a transformada em canção para estimular o comércio, destituída da mensagem pacifista. 

Não pretendo seguir o caminho oposto, aquele no qual muita gente procura macular o espírito da festa, trazendo à tona tudo de desumano que brota no meio de nós. 2016 é um ano propício a isso, haja vista o número de pessoas que têm fugido de seus lugares de nascimento para tentar, sem estrutura alguma, a vida em outro país — são sírios, são moçambicanos, a lista é grande. Sem contar nossas tragédias caseiras, muitas evitáveis, como essa que acomete o jovem negro, vítima preferida da guerra contra o tráfico. 

Não quis escrever platitudes, e eis que estão escritas. Não quis escrever sequer duas linhas que borrassem a festa, e eis que estão escritas. Preciso buscar uma compensação a meu deslize e a minha incapacidade de trazer algo novo para sua leitura. Já sei, um poema, um pequeno poema, e pronto. Escolho este de Machado de Assis por identificação, pois me parece que ele também penou para escrever qualquer coisa sobre o Natal. 

Aonde chegamos? A Machado. Ótima companhia.

(Ah, antes que eu me esqueça, feliz 2017. (Se for possível.))





Soneto de Natal
            Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”


Ilustração retirada do site de Antonio Miranda.

12.12.16

Os porcos

Apesar de o calendário chinês dizer que 2016 é o ano do macaco, no Brasil estamos quiçá na era do porco. O campeão da primeira divisão do futebol é o Palmeiras, cujo mascote é o porco. Um dos fiéis amigos do homem que ocupa o Palácio do Planalto, o ex-ministro que tentou impor-se a outro ex-ministro e com isso garantir o sucesso de um negócio privado, era chamado pelo Renato Russo, quando ambos eram adolescentes, de porco. E porco também foi como Fidel Castro se referiu a Carlos Lacerda, na época do golpe de 1964, conforme texto compartilhado numa rede social pelo historiador Carlos Fico.

O porco virou mascote do Palmeiras depois de ter sido, durante anos, a forma jocosa com que os adversários destratavam o time. Ou seja, o Palmeiras construiu um castelo com as pedras atiradas contra ele e fez do porco seu símbolo, desenhando-o não como um bicho bonachão e lento, fácil de ser vencido, mas sim como um verdadeiro super-herói, de semblante atlético e guerreiro. Jogada de marketing ou não, o fato é que deu certo, a torcida se reconhece no porco, e o Palmeiras, que andou pela segunda divisão, tornou-se o campeão de 2016, maldito ano estranho, inclusive para o futebol, que termina a temporada chorando a tragédia sofrida pela Chapecoense.

Em torno de Carlos Lacerda, o porco de Fidel, há polêmica de sobra. Governador obreiro (dele são o Aterro e a adutora do Guandu), político golpista (além de protagonista em 1964, havia tentado, anos antes, impedir a posse de Juscelino), administrador autoritário (removeu, na força bruta, várias favelas da zona Sul), foi ainda figura marcante no suicídio de Vargas. Enfim, um sujeito, feito o próprio Fidel Castro, complexo. Perto dele, o não amigo de Renato Russo, agarrado a escândalos desde a época dos anões do congresso, não passa de um porquinho-da-índia, o roedor que não é nem porco nem da Índia e que, mesmo sendo fofo a ponto de Manuel Bandeira declarar que sua primeira namorada havia sido um deles, rói até os alicerces da casa, caso fique solto e sozinho.

Quando penso no porco, porco, lembro-me dos Natais da minha infância. Neles, a leitoa era a peça de resistência, o mais esperado dos pratos. Pois bem, os fornos residenciais não davam conta de assá-la, então recorria-se às padarias, por sua vez com capacidade limitada para atender a demanda. O plano B consistia em levar a leitoa ao Bidu, no restaurante que ficava na zona, lugar que, de repente, deixava de ser não franqueado a senhores casados e pais de família para se transformar na salvação da festa cristã. Quanta senhora de respeito, em alto e bom som, ordenava ao marido que fosse até a zona e pedisse ao Bidu que caprichasse. E os pais, cumpridores de sua tarefa, aumentavam um ponto ao recado: "Bidu, capricha... Mas não tenha pressa”. Os Natais eram festas alegres graças aos porcos, ao Bidu e às putas, que muitos pais só apreciavam com os olhos e outros, com o corpo todo.

Wagner Tiso, Pink Floyd, Hermeto Pascoal fizeram músicas pensando nos porcos. Tiso, em “A morte do porco”, fez uma melodia triste, como é a própria morte desse animal que não se cala diante do abate. “Pigs”, do conjunto inglês, levanta-se contra os homens-porcos, ricos e poderosos, que, ao contrário das aves de Gonçalves Dias, aqui grunhem como grunhem lá. Já Pascoal sapeca uma “Porco na festa” e nela estribilha: “o mocotó tá duro pra danar/vou pedir de novo pra cozinhar”. Os porcos estão na literatura (“Os três porquinhos” e “Porcos com asas”), no cinema (“Montenegro ou porcos e pérolas” e “Babe, o porquinho atrapalhado”). O cofre da poupança miúda tem formato de porquinho. O artista belga, Win Delvoye, tem causado escândalo ao expor porcos tatuados cujas peles são vendidas a preços exorbitantes para grifes famosas. Não estranharia se certos amantes chamassem uns aos outros de porcos.

Porco é um bicho só para muitas coisas.

28.11.16

Na segunda lâmina do espelho

Eu tenho medo de tigres — medo que não me protege de nada, não ando onde andam os tigres. Nem entre elefantes — e destes não tenho medo. Amo elefantes e tigres sem precisar andar no meio deles. Medo, de verdade, cotidiano, eu tenho é de lagartixa, vai entender isso. Mas igualmente amo as lagartixas, tão importantes no controle dos insetos. Não uso repelente, preciso das lagartixas, mas, por temê-las e sem deixar de amá-las, delas não gosto.

Eu enfrento a escuridão, desde criança eu a enfrento. Quando transito por uma escuridão de verdade, não por uma metáfora das trevas, posso manter os olhos fechados ou abertos, é indiferente. No dia em que morre alguém do meu afeto, caminho de olhos abertos pela escuridão, certo de que, assim, só verei o que estiver vivo. Não quero encontrar os mortos, embora deseje muito reencontrar os meus mortos. Nalgum dia.

O jogo que gosto é o pingue-pongue, cuja bolinha nunca está ali nem está lá, embora às vezes ela caia à minha esquerda, às vezes do lado oposto. Quem sabe da vitória e da derrota são os jogadores, a torcida sabe da bolinha, que não está ali, mas ali já esteve, e não está mais lá, ainda que lá já tenha estado. Eu sou a bolinha. A raquetada é a vida.

Quando assobio, salvo ao menos um gomo de cana. Quando chupo cana, os pássaros pialham de alegria. Nas horas em que nem assobio nem chupo cana, o que faço ou deixo de fazer é feito um vento no canavial, e um vento no canavial, cante ou não cante um pássaro, é um vento no canavial, nada além disso, como diria Caeiro.

Nunca andei num relógio, mas um amigo sim. Ele rejuvenesceu uma hora, por caminhar em sentido anti-horário, e, pelo mesmo motivo, envelheceu uma vida. De minha parte e por destino, só envelheci uma vida. Ele morrerá uma hora mais moço que eu.

A única certeza que tenho é que não me chamo Raimundo. Com isso, atravesso as ruas e peço um pingado no botequim. Não é pouca coisa, mesmo que o pingado seja servido frio ou que eu quase tropece num descuido da rua.

13.11.16

Nas paredes da cidade

Encontro em algumas paredes da cidade a frase “eu dei pra ele”, que circulou num primeiro momento de forma anônima e, soube-se depois, é de autoria de Anitta Boa Vida, artista visual. Leio a frase como reflexo do empoderamento feminino, o que me leva a concluir que “dar” não é mais nem motivo de vergonha nem expressão da subordinação da mulher ao homem. “Dar” e “comer” vêm ganhando um novo significado, sendo revalorizadas, e não seria exagero dizer que são atualmente palavras da mesma magnitude. Mal faço a afirmação, recuo um pouco, pois a violência ainda incide sobre as mulheres, a igualdade está longe de ser realidade. Apesar disso, e em alguns espaços, mulheres e homens se veem e se tratam com mais equidade, “eu dei pra ele” é a prova disso.

Não faz muito tempo, li um artigo no qual a autora chamava a atenção para o fato de que o xingamento expressa, no mais das vezes, uma voz masculina, heterossexual e preconceituosa. Alguém, ao ser chamado de “filho da puta”, recebe um selo de má origem (do qual não se livra), o de ter sido alimentado pelo leite sujo das profissionais do sexo. Porém, não é de hoje que usamos o “filho da puta” de forma positiva. “Esse filho da puta aqui é meu melhor amigo.” O mesmo ocorre com a palavra “puta”. “Eu tenho um puta amor por ela.” Não nos iludamos: a puta e o filho da puta continuam malvistos e marginalizados, ainda que, também é verdade, eles tenham, aqui e ali, gritado (sem grande sucesso) por seus direitos.

Quando a mulher diz, pelas paredes ou não, que “deu pra ele”, em vez de reforçar o estigma da sujeição, ela retira do armário sua voz, expõe sua força. Ela é mulher no sentido mais atual possível, apesar de as palavras escolhidas já terem servido a outro dono. Todos, ao transformarmos o xingamento em elogio, e as mulheres, ao tomarem as frases que as diminuíam para passar a expressar a própria potência, estamos dando novos significados às palavras.

Já vi, em pelo menos duas paredes do meu bairro, um pedido para que se libere a necrofilia. Haverá de fato um grupo que queira uma coisa dessas? Ou serão apenas pessoas dispostas a afrontar nossos valores, a testar nossos limites? Quem sabe não passa de uma turma empenhada em promover o escândalo? Será um grupo ou um solitário? Como saber?

Vira e mexe me deparo com intervenções urbanas cujo autor não se revela. Numa época de eleição, vi uns jovens carregando no peito cartazes do tipo “compro/vendo ouro”, só que, no caso, as palavras eram “compro/vendo voto”. Mais ainda, num dos galhardetes, reproduzia-se de “A Igreja do Diabo”, conto de Machado de Assis, o trecho no qual o Diabo pondera o seguinte: se é possível e até louvável vender o que é nosso, a casa, o chapéu, os sapatos —— tudo que está fora da gente, por que não se pode vender o que nos é inerente, a opinião, a fé e, logo, o voto?

Não sei quem patrocinava aquela intervenção, não sei como os cartazes foram parar no peito dos rapazes, mas sei muito bem que estava diante de um questionamento sobre a nossa democracia, a lisura das eleições, a eficácia de nosso acordo social e até mesmo, de modo mais abrangente, a hipocrisia, haja vista que não é segredo para ninguém o fato de muitos negociarem (comprando e vendendo) o voto. Não consigo enxergar um segundo propósito, o recado está dado de forma inequívoca e provocativa. A estranheza é não ser uma obra com assinatura, mas ela não é necessária ou é mesmo desnecessária.

Embolo muitos assuntos: autoria, linguagem, política, conquistas femininas. Tento dar um desfecho nisso tudo.

Conhecer quem escreve “eu dei pra ele” nas paredes é fundamental para saber se estamos no mundo que avança ou no que retrocede (o que seria o caso se a frase tivesse as digitais de um homem heterossexual). Como a frase foi assinada por uma mulher, concluo que a língua, ao usar velhas palavras, retirando-as da escuridão secular em que repousavam, também avança. A autoria, repito, não faz falta à provocação a respeito de nossa democracia, pois o que importa não é com quem dialogo, mas qual é o assunto proposto. No galhardete machadiano, eram jogadas na cara de todos as ervas daninhas que vicejavam, e continuam vicejando, no campo (agora mais do que nunca) minado de nossa democracia. Quanto à necrofilia, francamente, é triste ver tamanha estupidez turvar as paredes da cidade. Pior que isso, ter certeza de que seu autor jamais se revelará, pois, ao contrário do que questiona nosso processo eleitoral, que, ao se ocultar, se expressa claramente, o defensor da necrofilia será sempre um covarde, escuso e violento.

30.10.16

Dois dias de outubro


No dia 17 de outubro, acordei e fui ao Aterro correr um pouco. Ao contrário de outras vezes, a corrida foi sofrida, talvez porque o calor já ocupasse seu espaço, do qual não arredará pé por longos quatro, cinco meses. Certa vez, ouvi um sujeito dizer que seria preciso que houvesse guerra para que houvesse paz. A paz seria, nesse pensamento, apenas uma ideia abstrata e absurda, haja vista que, se terminasse a guerra, a paz não poderia começar, pois ela só existe em oposição à guerra — não existindo esta, não haveria aquela. Somos muito bons em dar nó nas ideias, embora, no caso, a culpa talvez seja de uma leitura apressada dos dicionários, que definem paz como ausência de guerra. Tento defender o indefensável, vamos adiante. Contei sobre esse contorcionismo intelectual apenas para pegar o mote e dizer: o inverno, no Rio, é o não verão, logo, não existe. O calor que reteve minhas passadas habitualmente vagarosas no Aterro sempre esteve por aqui, às vezes brando, o que não acontecerá de agora até março, abril.

Dia 16 foi aniversário de meu amigo Marco Ajeje (1), um artesão mágico que a histórica Tiradentes soube receber de braços abertos. Trabalhando sobretudo com madeira de demolição, Marquinho, ciente das lições de antigos mestres, ouve o que a madeira tem a dizer e dá forma ao que ela pede. Meu amigo tem pendores para a escrita, mas não sei se escreve, contudo na madeira ele entalha poemas, não há outro nome a dar a seus trabalhos.

Nasceram num 17 de outubro a Mariana Ianelli e o Tacilinho, outros dois artistas. Mariana, poeta e cronista, uma das que escrevem — e como escreve! — na revista Rubem (2). Tacilinho, músico. Dela sei quase nada além do que conta em suas crônicas, ou seja, por sorte, conheço — e esse conhecimento é aberto a todos — a Mariana em estado de poesia. Já ele é um velho camarada, com mais de cinquenta anos de música nas costas — tecladista do Edinho Santa Cruz, banda de baile que ficou conhecida por fazer cover dos Bee Gees, na época do “Embalos de sábado à noite”, e por ter tocado ao longo de quatro anos no programa do Faustão (3). Na véspera de seu aniversário (não pensem num velhinho, pois a vida profissional dele começou antes dos dez anos), depois de um show no qual deu uma canja, Tacilinho me disse que pela primeira vez na vida estava estudando música. De supetão, aprendi que não são anos de estrada que fazem um músico — ou um poeta, ou um artesão, o que seja. Tacilinho, com esse gesto que a mim parece de humildade, mostrou-se também uma pessoa em estado de poesia.

Dois dias de outubro férteis esses dos quais falo, mas não de todo poéticos. A guerra do Iraque continua lá e, não sei se no dia 16 ou no dia 17, tropas iraquianas, auxiliadas pelos americanos, avançaram sobre Mossul com o objetivo de resgatar o território das mãos do Estado Islâmico. Por aqui, uma briga entre facções em presídios de Roraima e Rondônia vitimou umas vinte pessoas. A despeito dos inventores de filosofias rastaqueras e dos leitores apressados dos dicionários (ainda que, pensando bem, seria mais sensato definir a guerra como a ausência de paz e a paz como um momento no qual os homens se respeitam uns aos outros, buscam a igualdade entre si e, entre mil outras coisas que poderiam ser listadas, não se atacam), a guerra está lá no Iraque, na Síria, mas também aqui, num campo de batalha espalhado ao longo das calçadas de nossas cidades nem tão grandes, dos emaranhados dos morros e das ruas nas quais ônibus disputam espaço com bicicletas.

No dia 16, havia ido com meu filho mais velho ao jogo do Botafogo contra o Galo. Partida difícil, com erros do juiz favoráveis ao time carioca, que terminou vitorioso. Na volta para casa, ao longo de uma Linha Vermelha sem vestígios de nossos conflitos diários, o trânsito, sem motivo aparente, praticamente parou, com o que pude me distrair da direção, virar a cabeça para a esquerda e ver soberana a lua, a super lua. Aquela bola enorme e brilhante me fez pensar nos homens e nas mulheres que viveram antes de Copérnico. Decerto eles, ao contemplarem uma lua como a que eu via, se entregassem ao encantamento e sob esse efeito ficassem por dois, três dias, talvez mais. É possível, então, que comemorassem os nascimentos e não fizessem guerras, sequer pensassem nelas. Enfim, vivessem dias de paz em estado absoluto e poético e musical e artesanal. Além do mais, imagino, aqueles dias, sob a perspectiva das ciências, obscuros, não eram tão quentes quanto os atuais.









*****************************************
1) Aqui você pode ter contato com a Divinas Gerais, loja e ateliê do Marco Ajeje.

2) A coluna da Mariana Ianelli, na Rubem, pode ser acessada a partir daqui.

3) Um trabalho do Edinho Santa Cruz, diferente dos que citei, pode ser ouvido aqui no Youtube. É o concerto que a banda fez com o melhor do rock'n'roll (de Pink Floyd pra cima).


22.10.16

O convidado

Depois de escutar algumas músicas do Leonard Cohen e sem que seja um diálogo poético e sim uma resposta à musicalidade, escrevi o pequeno texto a seguir.


16.10.16

Boris Fausto e as memórias intrusas


“O brilho do bronze — Um diário”, do historiador Boris Fausto (Cosac Naify), presente de minha amiga Nilma Lacerda, foi escrito a partir da morte da esposa do octogenário professor da USP e contempla os anos entre 2010 e 2014. Há muito a dizer depois de ler esse livro, desde especular como são os valores de um intelectual uspiano das antigas até louvar a forma como um senhor encara com bravura o luto e a solidão. Esse senhor, diga-se de passagem, além de comentar as visitas ao cemitério, o enfrentamento do cotidiano sem a parceira de anos, analisa, entre outras coisas, a política, em especial as manifestações de 2013. Tudo num tom, digamos, alto, de um intelectual de boa formação, cuja vida foi marcada pela perda precoce da mãe.


Foto de Renato Parada, tirada na época do lançamento do livro


Sinto-me atraído pelos momentos comezinhos narrados ao longo do livro, como quando Fausto fala de suas lembranças sem importância. Conta, por exemplo, de um diálogo — por ter a ver com Lins, cidade dos Pratas, me fez pensar no Leonel Prata — que certa vez ele escutou entre dois italianos. Estavam todos na entrada do cinema, na São Paulo dos anos de 1950 (talvez tenha sido um pouco antes, a julgar por uma breve pesquisa que fiz), e os italianos discutiam futebol, mais precisamente a partida que haveria entre dois times do interior, a Linense e o XV de Piracicaba, cujo resultado daria ao vencedor um lugar na primeira divisão do futebol paulista[1]. Um disse, tropeçando na língua, que torcia pelo “Lincense”, no que o outro, um pouco espantado, quis saber a razão. O diálogo entre eles, no registro do autor do diário, foi o seguinte:

"— Perché? — indagou o que fizera a pergunta.
 — Perché a me non mi piace Piracicaba."

Até onde eu saiba, Fausto não tem ligação nem com Lins nem com Piracicaba, portanto essa história foi fixada em sua memória por puro capricho de seus neurônios. Apostando que cada um de nós cultiva pelo menos uma dessas memórias intrusas, que o professor prefere chamar de insignificantes, mal terminada a leitura, saí à caça da(s) minha(s).

Encontrei de cara algumas bem miúdas, mas, ao contrário da narrada por Fausto, guardadas ou mal guardadas no espaço do afeto, ou seja, lembranças que acusavam o meu envolvimento direto com os fatos. Uma vez, em Passos, no Bar do Vicente, que ficava ao lado do Grande Hotel, ao perguntar se eu aceitava uma bebida e eu dizer que queria uma sodinha (o nome que se dava à Soda Limonada da Antártica), meu padrinho indagou se eu havia parado de beber — insinuando que me oferecera uma bebida alcóolica. Eu tinha menos de dez anos, registre-se. Nos meus primeiros meses de Rio de Janeiro, o atendente de uma loja quis saber qual era minha graça — meu nome, esclareceu, diante de minha hesitação. Enfim, histórias irrelevantes, embora marcadas pela presença amorosa de meu padrinho e por minha chegada à cidade na qual acabaria fazendo minha vida. Não servem como paralelo à narrada no livro. Busco outra.

Era algum ano anterior a 1977, eu vivia em Passos. Eram dias de eleição, talvez fosse mesmo o dia da eleição, e eu não votava ainda. Na Praça da Matriz, um pouco fora de seu centro, vi um monte de gente aglomerada. Por achar o movimento estranho, fixei meu olhar no grupo. Um senhor — logo o reconheci, era o empresário mais bem-sucedido da cidade naquela época — atirava dinheiro pro ar. Os que estavam um pouco afastados dele, feito corvos atacando a carcaça de um boi, se jogaram sobre as notas, disputando-as à tapa, puxões de cabelo e unhadas, coisas que os corvos não costumam fazer.

À medida que escrevia o parágrafo anterior, fui percebendo que minha história não se compara à de Fausto. A dele não o atinge de frente, a minha, ao contrário, por ter desnudado aos olhos de um adolescente como são alguns políticos ou a política, ainda reverbera na minha visão de mundo. Naquele episódio entendi a forma como a elite tratava — e continua tratando, basta ver, na imprensa carioca, as várias notícias de compra de votos, agora, em 2016 — os menos esclarecidos e/ou os mais necessitados.

Não desisto de encontrar uma história leve que eu tenha presenciado e guardado sem outro motivo que não o de usá-la como uma anedota a ser dividida entre amigos. Opa, uma salta na tela da minha memória. Ainda em Passos, num começo de noite, eu atravessava a rua para entrar no clube e vi, encostado ao lado da porta pela qual eu passaria, Z., meu professor no ginásio. Entre nós passou alguém, não me recordo quem, e perguntou ao mestre: “Cumé que cê tá?” Um jovem de 25 anos, se tanto, Z. respondeu: “Doido”. Ambos riram, e eu entrei no clube sem atinar para o significado daquele papo. Não demorou muito, destrinchei o código e comecei a achar a história engraçada. Continuo achando, e não passa disso.



[1] Em 1948, segundo o site do Linense, o time de Lins não subiu para a primeira divisão ao perder por cinco a um do XV de Piracicaba.