1.4.18

Está tudo nas prateleiras

Digamos que a loja se encontre numa rua no coração de um centro comercial, como é o Saara, no Rio de Janeiro; a Vinte e Cinco de Março, em São Paulo; o Beco da Poeira, em Fortaleza; o Ver o Peso, em Belém, enfim, um lugar movimentado a qualquer hora do dia.

Bem na entrada, soa de uma caixa de som o anúncio das mercadorias, todas com preços camaradas. Ofertas de cair o queixo. Alguns reclames saem de uma voz empostada, que dita um texto sóbrio: a lista do que há de melhor, os preços, as promoções do tipo “leve três, pague dois”. Outros, não, são excessivos, farsescos. O tom resvala para uma ironia agressiva, sexista. Sempre é assim, pouco importa.

A loja está lá. Seus anúncios reverberam pela rua ou pelos corredores do mercado.

Ouve-se de uma locutora comedida: “Senhoras e senhores, hoje aqui a oferta é ímpar. Em nossas estantes, você pode escolher uma execução impecável contra aquela vereadora negra, bissexual e favelada. Não se esqueça e inclua, sem taxa adicional, o assassinato do motorista que estará prestando serviços a ela.” E continua: “À senhora, que passa agora, aviso que podemos embrulhar tudo isso em papel de vilipêndio, a última moda no mundo civilizado.”

Mais adiante, encontra-se um bufão cheio de gestos teatrais, não se sabe se é gay ou se apenas finge. Um exagero só. “Gostosão, meu bofe, entra aí, por qualquer dois contos você garante um extermínio de índios, aquele povo sem pelos, pelo amor do santo Deus, pra que serve aquilo? Ou mesmo dá fim de vez a esses negrinhos que, se ficam por aí, acabarão por fazer aquelas malditas músicas pornográficas que ninguém gosta.” Ele sussurra a um interessado: “Eu gosto, mas sou empregado, obedeço.” Insinua, por fim, que o cliente — macho, faz questão de falar — que adquirir aquela verdadeira ajuda celestial ainda vai ganhar um presente dele, o “anunciante serelepe”, como se autodenomina. Faz gestos com o microfone, e logo fica evidente do que está falando.

Não, não acabou, o mercado está precisando fazer dinheiro, por isso ficará aberto até as dez ou onze horas da noite. Na esquina, quem comanda o microfone já tem certa idade, a voz está cansada, mas ainda é forte e grave. Na lojinha dele, sumiço de religiosos metidos a comunistas, morte de estudantes por bala perdida, ditadura exercida por milicianos ou traficantes na periferia. Tudo coisa fina, o homem fala sem ênfase alguma (contam que uma de suas netas foi vítima de bala perdida comprada bem ali, no seu nariz). “Lá no fundo da loja, tem a mercadoria mais vendida de todas: acobertamento de crime, álibis lindos, verdadeiras joias feitas por ourives renomados.” Ao anunciar esse atraente produto, parece sobrar energia ao velho (novamente contam que, no final do ano, ele pretende comprar um para vingar a neta).

Em outras lojas, a opção é usar cartazes coloridos, gigantes. “Temos feminicídios de vários tamanhos e cores”. “Se podemos ter um mundo com dois policiais corruptos, por que manter um, um só, honesto?” “Por que levar dez por cento se você poder levar cinco de algo com um valor oito vezes maior?”

Essas lojas ficam no Shopping dos Horrores. Onde? Ora, ao seu lado. Ao meu lado. Tão ao lado que qualquer movimento que a gente faça — leste, oeste, norte, sul, direita, esquerda — nos leva a ele.

As promoções estão irresistíveis. Mas, claro, você pode dizer não.

19.3.18

Quatro crônicas musicais (originalmente publicadas na revista InComunidade, de Portugal)


O que restou daquela compra antiga

Em 1990, logo depois do nascimento de meu filho mais velho, o João, Ollie Johnson trouxe dos Estados Unidos meu primeiro aparelho de reprodução de CD. Um dia antes da chegada de meu amigo americano, ao passar por uma loja em Copacabana, uma pequena, sem fama alguma, comprei dois “disquinhos” para estrear o som.

Um deles foi “Ballads”[1], do John Coltrane, gravado em 1962, ano em que eu, lá no interior de Minas Gerais, aprendia a dar os primeiros passos. Não foi logo nas primeiras audições, mas muito depois, recentemente até, que, ao ouvir a interpretação vertiginosa e sensual do saxofonista, me dei conta de que ele me soprava uma história. No dia dessa descoberta, com Coltrane no fone de ouvido, eu corria pelo Aterro e, ao voltar a minha casa, fiz o primeiro esboço de “A trilha sonora de Bebel”, conto do meu livro “Qual é, solidão?” (Editora Oito e Meio, 2014). No enredo, Bebel fantasia que é amante de Coltrane e o vê, de longe, sentado à sala, injetar-se uma dose de heroína para, em seguida, tocar “Say it (over and over again)”.

O outro foi “Olívia Byington e João Carlos Assis Brasil”[2], disco no qual o piano dele e a voz dela passam, entre compositores estrangeiros, por Gershwin, Cole Porter, Debussy, Piaf e Kurt Weill e, entre nacionais, por Villa-Lobos e Dora Vasconcelos, Tom Jobim (com Chico, com Vinícius), Egberto Gismonti e Geraldo Carneiro, Vítor Assis Brasil, Cartola, Catulo da Paixão Cearense e Assis Valente. É um repertório e tanto, particularmente para um sujeito que, tropeçando na paternidade incipiente (e também insipiente), experimentava uma solidão diferente de tantas anteriores. Quem se torna pai talvez entenda o que estou tentando dizer e reconheça o lugar no qual eu entrava.

Esses dois discos rodaram no aparelho portátil até cansarem. E cansaram, ô, se cansaram, os CD eram caros, e a disputa com os mimos e necessidades do bebê colocavam a música em desvantagem. Eu ainda tinha vinis e os escutava bastante, mas o charme da nova tecnologia roubava-me para, hoje, Coltrane, amanhã, Assis Brasil e Byigton, depois de amanhã, novamente estes e, logo depois, aquele. A repetição dava-me segurança naquele momento em que meu mundo caía e minhas preocupações enfim voltavam-se para o futuro.

Paro, respiro e tento, contra a lógica que nos empurra a favor do tempo, voltar àqueles dias, não em busca da minha juventude, que já não era grande coisa, nem de outra materialidade. Gostaria apenas de encontrar-me com quem eu havia sido e que, embarcado na “Caravela”[3], de Gismonti e Carneiro, ia se dando conta de que não seria nenhum Cabral a desbravar mares à procura de novas terras, nem Ulisses pronto a enfrentar monstros e deuses para, vitorioso, voltar à espera de Penélope. Nada disso. Naqueles dias, o pai de primeira viagem descobria o “exílio no coração”. Às vezes, bem, obrigado, noutras, nem tanto, continuo habitando esse exílio, ainda que eu já não seja mais o mesmo.



O violão da mamãe

Minha mãe contava que nosso violão de muito tempo fora não uma compra, mas uma conquista. Quando meu avô estava na loja, a ponto de fechar o negócio, ninguém mais, ninguém menos que Silvio Caldas entrou, pediu para experimentar o instrumento, mostrou-se bastante interessado nele e disposto a recompensar financeiramente o seu quase dono. Meu avô aproveitou-se do inesperado atestado de qualidade dado à mercadoria, desculpou-se com Silvio Caldas e caiu fora feliz com a aquisição.

Não sei se por piedade ou por gosto, Silvio Caldas — o Caboclinho Querido — era o cantor preferido de minha mãe. Na verdade, o sucesso dele, num mundo em que havia um Orlando Silva e um Francisco Alves, não estava baseado apenas no fato de cantar músicas românticas. O cara era bom. Não por acaso, como afirma Cravo Albin, Custódio Mesquita e Ary Barroso faziam questão de que seus lançamentos ganhassem a voz do sujeito que vovô venceu numa contenda comercial.

Além do mais, o que seria suficiente para torná-lo um dos grandes, Silvio Caldas é coautor de “Chão de estrelas”[4], música que, na avaliação de Manuel Bandeira, teria o verso mais bonito da música brasileira: “tu pisavas nos astros, distraída”.

Com todo respeito ao grande músico, tomo uma expressão atual e informal e digo: perdeu, Silvio Caldas! O violão foi parar no Leme, à beira-mar, e, depois, mudou-se para o interior de Minas Gerais, onde foi intensa a vida social ao seu redor, com destaque para a época dos amigos de meus irmãos. A turma era formada por adolescentes que cantavam, a pleno pulmão, aquelas músicas italianas chorosas dos anos de 1960, mas também, na linha de João Gilberto — de forma contida —, a bossa-nova de Tom e os compositores que mudariam de vez a música brasileira: Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Jorge Bem e mais alguns. A segunda maior glória (houve o Silvio Caldas, não se pode nem se consegue esquecer isso) daquele violão foi ter sido tocado pelo Eustáquio Grilo. Não me lembro em que ano estávamos, mas Eustáquio já era um grande músico, embora ainda não fosse, creio, catedrático e estivesse longe de ser reconhecido a tal ponto de ter um concurso de violão com seu nome. Bem, pouco importa, o fato é que eu, um moleque, sentei-me no chão da sala da casa de meus pais e ouvi o Grilo fazer soar lindamente — e apesar das cordas velhas — o instrumento que não passava de mero coadjuvante da rapaziada que queria mesmo soltar a voz.

Um dia o violão saiu de casa para fazer uma serenata. Todos sabem, violão não anda sozinho, logo alguém o levou na base do empréstimo, mas quem? Não esteve na casa de fulano, não passou pelas mãos de sicrano, enfim, como certa vez veio a cantar Paulinho da Viola, o violão (mítico) foi pro fundo do baú. De qual baú é que o busílis. Não escrevo uma crônica policial, portanto, fiquemos apenas com o fato de que um dia o seis cordas tão disputado sumiu na noite de Minas. Tampouco escrevo uma crônica de futrica ou de especulação, o que não me impede de ver, sentado num camarim, à espera do show que está por começar, o velho Silvio Caldas receber a notícia do destino do instrumento que certo dia um gerentezinho de banco recusou-se a ceder-lhe. Ele ergue os olhos, pega o violão — detalhe: o acaricia —, e então entoa uma de suas composições, “Voltaste”[5] , sucesso esquecido dos anos de 1950. O cantor que valoriza as palavras, como era chamado, faz valer este apelido, particularmente quando chega aos versos: “Voltaste, / teu passado pouco importa / vens bater a minha porta / que a ti nunca se fechou. Voltaste, / vens viver vida decente / vais mostrar a toda gente / nossa briga terminou.”



Que música é essa?

A primeira vez que ouvi Itamar Assumpção, eu estava chapado, bem chapado por sinal. Da segunda, não, mas, ao ouvir sua música, ao olhar para o palco e deparar-me com um negro esquálido, potente, chapei de novo. Nada a ver com o Milton Nascimento. Nada a ver com o Cartola, com o Simonal. Itamar entrou na sala, não pela cozinha, com consentimento branco. Ele meteu os pés na porta da frente, sentou-se no meio de todos e apresentou-se como “Benedito, nego dito, cascavel”[6]. E ai de quem lhe tenha virado o rosto.

Eu dirigia o Corcel do Gora, havia saído da avenida Getúlio Vargas, entrado na Contorno e parado no sinal do cruzamento com a rua da Bahia. O rádio começou a tocar “Por enquanto (Mudaram as estações)”, música do Legião Urbana, banda que nunca foi das minhas preferidas. Contudo a voz da cantora era de outra natureza, cheguei a pensar que fosse a Nana Caymmi, mas logo vi que não, era só meu ouvido buscando alguma familiaridade com o que soava tão novo. No final, a rádio anunciou o nome da Cássia Eller[7]. A música fez sucesso, tocou a torto e a direito, acho mesmo que a cantora nunca conseguiu se livrar dela. A mim, foi isso: um dia sem importância, no qual eu dirigia pelas ruas de Belo Horizonte, tornou-se inesquecível.

Nina Simone. A história começa antes de ouvi-la. Na noite anterior, eu e um amigo havíamos entrado numa confusão terrível em Copacabana. Acabamos na delegacia. Meu amigo, militar, ficou indignado. No outro dia, ainda bêbados, fomos aonde ele trabalhava registrar uma reclamação, algo assim, e um colega de farda do meu amigo nos aconselhou severamente a cair fora dali, não seria bom sermos vistos por um superior naquele estado. Fomos então a Niterói, na casa de uma família mineira que vivia lá, casa com muitas moças. Chegamos, tomamos cerveja (como foi possível?) e, de repente, Nina Simone saiu pela caixa de som à beira da piscina, provavelmente cantando “Feeling good”[8]. Na hora providenciei uma fita cassete com a clara intenção de presentear minha mãe. Nina Simone me fez lembrar-me dela, embora não saiba explicar o porquê. Perdi a fita na balsa que me levou de volta ao Rio de Janeiro, senão antes.

O Alejandro foi lá para casa naquela vez que seu apartamento foi inundado por uma dessas chuvas tropicais, que caem na cidade eternamente despreparada para elas. Eu não o conhecia nem o vi chegar. Com ele estavam sua companheira e outro casal, todos moradores do apartamento submerso. Na outra manhã, vi-os espalhados pela sala, mas apenas quando voltei da escola fomos apresentados uns aos outros. O Alejandro então, bom relações públicas, puxou uma fita cassete e botou para tocar. Era o disco “80/81”, do Pat Metheny. Pode ser que o primeiro impacto tenha passado despercebido, mas, ao longo dos meses que se seguiram, eu e Gonzalo, o amigo com quem eu dividia o apartamento e que abrira a porta aos desabrigados, ficamos praticamente reféns do disco, em particular da primeira música, “Two folk songs”[9]. Havia no apartamento um pequeno quarto, nem meu nem do Gonzalo, onde ouvíamos música, recebíamos os amigos. Na janela do quarto, uma grade. Não falo em vão as palavras refém e grade. Eu e Gonzy, ao som do Pat Metheny, vivíamos numa espécie de prisão, até que, enfim, recebi o sorriso de uma moça, e o Gonzy de outra. Veio então uma nova fase, mas, nem assim, “Two folk songs” deixou de embalar aqueles dias de estudantes.



Outras lições

Não vamos à escola para aprender a beijar, mas, quase sempre, é na escola que aprendemos. Não na sala de aula, pelo menos não durante a aula, mas, na hora do recreio, na saída do colégio, nos momentos de descuido das autoridades ou do próprio juízo, o primeiro beijo estala —  de imediato, torna-se um vício.

A marchinha de carnaval induz as pessoas ao beijo, outra lição sem livro ou professor. Não sem motivo, Zé Keti e Pereira Matos escreveram “Máscara negra”[10] , que diz: “Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval.” Quem já esteve num salão sabe que, quando a música toca, os casais deixam a dança de lado e cuidam da boca, e não só dela, o beijo exige muito das mãos. O importante é que a pista de dança sacode menos e suspira mais com a bandinha mandando o recado aos namorados. Pais ciosos da própria imagem chutam a aparência para longe e agarram a esposa com furor meio esquecido. Mães que não acham nada bonito ficar trocando bicotas em público mandam o pudor para as cucuias e se entregam.

O samba, primo meio erudito da marchinha, enquanto passa na avenida ou toca no rádio, na vitrola ou nas nuvens, joga copos de cerveja nas mãos de quem está por perto. Em seguida, tira homens e mulheres da cadeira e, do mais talentoso ao totalmente sem ritmo, põe todos para dançar. Efeito colateral, o racismo encoberto do Brasil cai por terra e, aí sim, nos tornamos por um lapso de tempo a maior democracia racial do mundo. Mal acaba o samba, em vez de refletir sobre o que se viveu, damos as costas à lição e saímos por aí bisando a nossa falsa igualdade. Ou seja, não se pode fiar apenas no que se aprende sem livros, mas cadê as escolas? Cadê as famílias? Ah, estão todas pensando nos limites do abc e na moral e nos bons costumes (que não praticam).

Apesar de o samba e a marchinha estarem associados a alegria, a tristeza tem seu lugar. Vinícius de Moraes, em “Samba da bênção”[11] , parceria com Baden Powell, canta: “pra fazer um samba com beleza / é preciso um bocado de tristeza”. A esse respeito, veio de Caetano Veloso, em “Desde que o samba é samba”[12] , o veredito definitivo: “a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim”, que ele completa: “o samba é o pai do prazer / o samba é o filho da dor”. Não podemos perder de vista que o samba é, mas também não é, folia e contentamento.

Em “Feitio de oração”[13], Noel Rosa assegurou que “batuque é um privilégio / ninguém aprende samba no colégio”. Mas vá lá que, durante o recreio, na saída da escola, no descuido das autoridades, alguém puxe um cavaquinho e um pandeiro. Pronto, portas abertas para aprender samba no colégio.





[1] Para ouvir o disco, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=8rOMV0A5jd0
[3] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=vIsEwkADio4
[4] Para ouvir a música, clique aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=SON4_aiKGSk
[5] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=yojRDz-r-ek
[6] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=16QbOrvJJEU
[7] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=IflD32ahaqs
[8] Para ouvir a música, clique aqui: https://www.youtube.com/watch?v=D5Y11hwjMNs
[9] Não consegui link para esta música.

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Para ler a fantástica InComunidade, clique aqui.
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Comer água

Ao Andrezinho

Meu amigo me conta. Depois da consulta ao oftalmologista, tomou o elevador, já ocupado por duas mulheres. Uma delas reclamava de certa tonteira, reação a um medicamento tomado durante um exame, ele especulou em silêncio. Era chato ficar ouvindo aquilo, mas iam os três do décimo andar ao térreo e não havia alternativa. No oitavo andar, ganharam a companhia de uma senhora, uma senhora mais velha que todos juntos. A recém-examinada, mal o elevador se pôs em movimento, voltou a recitar sua ladainha de mal-estar. A velhinha não titubeou e disse: “Minha filha, você tá é gorda, obesa, precisa fazer exercícios, caminhar todos os dias e comer menos. Quando estiver com fome, distraia a fome com água.” As outras mulheres, por sorte, pelo menos foi assim que meu amigo nomeou o silêncio delas, não reagiram. Sem saber o que fazer, ele enfiou a cara no chão e torceu como nunca pela chegada ao térreo.

Essa coisa de beber água para tapear a fome me remete ao livro de um primo, o Dirceu Moreira Brandão. Claro, o Dirceu é pouco conhecido, alguns talvez tenham ouvido falar do pai dele, o poeta, escritor e deputado federal constituinte (estou falando da Constituição de 1946, aquela que tem, entre seus signatários, além de meu tio, Jorge Amado) Wellington Brandão. Mas o Dirceu também escrevia (sim, já não está entre nós) e escrevia bem — chegou a ganhar concurso literário, a escrever em jornais de Minas. Livros, no entanto, teve um, o saborosíssimo “Coisas de mascates” (edição própria). Suas histórias são as de boiadeiros, de gente que lida com a terra, que vive de fazer negócios, barganhas. Aliás, um dos melhores contos do livro, “Uma estranha vocação”, fala de um sujeito que troca — troca não, trama, um sinônimo muito particular usado nas Minas Gerais, beirada de São Paulo, cenário das histórias — tudo que cai em suas mãos. Um tipo assim não era raro na minha infância. Meu pai era um deles. Certa vez, no final da década de 1960, ele saiu para vender seu gado em Belém do Pará, longe, e bota longe nisso. Levou, salvo engano, uma semana na boleia de um caminhão, contando as paradas para descer o gado numa fazenda qualquer, onde batia e pedia pouso e pasto. Num mundo com precária telefonia, o velho sumiu, dois ou três meses sem dar notícias. Quando voltou, numa narrativa que realçava as mangueiras da cidade, a chuva diária, a rede para dormir, contou que trocou o gado por um carro. Mas onde estava o carro? Ah, em Goiás, no caminho de volta, já tinha se desfeito dele. Acho que trocou por gado, completando um ciclo que já dava a mão ao próximo. Ganhamos duas coisas de presente: uma vitrola portátil e guaraná em pó. Adoramos o primeiro e odiamos o segundo: um insulto às famosas caçulinhas (a garrafa pequena do refrigerante industrializado).

Voltas e voltas e não falo do conto do meu primo, razão pela qual puxei esse rosário. Em “Conversa de vaqueiros”, dois amigos conversam antes de dormir. Lembram-se, assim do nada, de algumas fomes por que passaram. Manuel Cabrito conta de uma vez em que ele e um amigo foram levar uma vaquinha a uma fazenda, mas a bicha era tão danada que eles, numa distância pequena, gastaram o dia todo. Quando chegaram lá, fome era significado miúdo para o que sentiam. Manuel comentou com seu parceiro de lida, e este, muito educadamente, perguntou ao dono da fazenda se não tinha jeito de comerem um requentado. O senhor, que já jantara, desculpou-se e encarregou a mulher de fazer a comida. Manuel tinha fome urgente, que promessa de comida não matava e o cheirinho do refogado só faria piorar. Para não perder a cabeça quando o alho queimasse no óleo, resolveu dar uma caminhada. Comeu uns matinhos, mas “não adiantou nada, porque insultou o estômago e ele pensou que eu estava jantando e aí ficou pior”. Manuel foi então para o riachinho e começou a comer água. “Comi água até encher. Mastiguei mesmo a água, que era para o estômago pensar que eu estava jantando uma sopa e dar tempo para esperar a janta do Zeca de Melo.”

Se a velhinha intrometida tivesse lido “Coisas de mascates”, poderia ter trocado a tagarelice pelo silêncio ou, pelo menos, por uma conversa sem importância, dessas necessárias quando o elevador desce e, se não parar, pode muito bem atracar no inferno. Inferno lembra morte, e é bom lembrar-se dela, pois o homem que trocava tudo por tudo, um dia, “entre uma conversa meio alterada e dois goles de pinga”, “barganhou dois tiros. E levou manta.” “Morreu tramando. Como nasceu e viveu.” Mas, prestem bem atenção, houve uma conversa meio alterada.

5.3.18

Uma ida à loteria

Às vezes faço uma fezinha. Os jogos de loteria são, a meu ver, o jeito difícil mais fácil de ganhar dinheiro. Sem derramar uma gota de suor, marca-se um número aqui e outro ali e, depois, entrega-se a sorte a Deus ou, acreditando-se na lisura dos homens, à máquina. Quem vai botar dificuldade nessa mecânica? Ninguém. Daí a ganhar, já é outra história.

Mas não era sobre o jogo que eu gostaria de falar, é sobre a experiência de hoje; que, esclareço, tampouco é sobre a experiência de jogar. O que tenho para contar tem a ver com o ambiente da loteria em que entrei. Primeiro, havia uma senhora que, revirando sua bolsa grande, descobriu-se sem a bolsa pequena, uma que ela havia mexido um pouco antes e onde guardava o dinheiro miúdo. Alardeou aos quatro ventos a perda, olhou para cada um de nós de cima a baixo, com desconfiança. Os menos vulneráveis a olhares acusatórios deram conselhos à senhora, que ligou para um lugar em que esteve, saiu e voltou para a fila até levantar a hipótese de ter sofrido um furto antes, talvez na rua. Mesmo assim, incontrolável e inocente, não escondeu de ninguém que ainda carregava na bolsa grande quatrocentos reais em notas de cem.

Isso não foi nada diante do sujeito que furou a fila e abordou a atendente de um modo que, segundo ele, quando passou a se defender, era leve, brincalhão. Não foi interpretado assim por ninguém, muito menos pela moça do caixa. O filho desse homem havia estado ali um pouco antes para pagar uma conta. Correu tudo bem no que diz respeito ao pagamento, mas o reclamante viu que, por erro próprio, a conta paga era outra, uma que não pretendia quitar. Cheio de empáfia, exigia um estorno. As moças da loteria, reagindo à antipatia com dose similar de antipatia, negaram que pudessem fazer alguma coisa, o sistema não permitia. Ele saiu de lá cuspindo ameaças.


Depois do dentista, fui comprar tinta para impressora e, na sequência, tomar um café. A loteria era bem em frente, não resisti. Fui jogar, tão somente isso, e saí impregnado daquela tremenda confusão. Só pensei numa maneira de me livrar do baixo astral: me meter no metrô e voltar para casa.

Entre o metrô e o prédio onde moro, um muro está pichado com a seguinte frase: “Por onde anda a empatia?”. Há um complemento, um gracejo que remete a favores sexuais, mas, no que pensei depois, não me importei com ele. Pelo caminho, fui martelando sobre a empatia em estado puro e concluí que ela foi sequestrada dos nossos dias. Restou-nos a repulsa, ou algo mais radical. Nada que fuja do que professamos ou gostamos nos atrai. Somos o avestruz da vez, com a cara enterrada no espelho.

Tenho uma vizinha de mais de 100 anos de idade. Não é raro encontrá-la sentada no pequeno jardim ou embaixo da marquise da portaria. Calada, olha tudo. Um dos seus gestos habituais é, certeira, pegar a mão de quem passa por perto e dar um, dois ou três beijos nela. Ganhei esses beijos ao chegar a minha casa e imediatamente desenhei uma utopia: as pessoas passariam a pegar as outras pela mão e, em seguida, depositariam ali um beijo. Não aquele de quem toma, por obrigação, a bênção dos pais, dos tios, dos avós, e sim aquele de quem agradece ao outro por ser justamente o outro.

19.2.18

Estive de férias

Alguém me disse que foi Carnaval. Não precisava, eu vi, quer dizer, ao sair de casa e ir ao cinema, tropecei naquele monte de gente fantasiada circulando pela rua. Nessa época, se um desavisado aportar no Rio de Janeiro, mas não só nele, sem saber disso de Carnaval, achará tudo muito estranho. De fato, é, mas também não é. Dane-se o desavisado, a festa serve para pequenos ultrajes, e andar de índio, pirata, noiva ou sei lá mais o que faz parte da magia.

Não brinco mais, os senões (além dos meus quilos a mais, muita gente, muito calor, muita bebida) gritam mais alto. Então, leio. Vou ao cinema. Bebo minha cerveja em casa. Aqui e ali assistoTV. Me inteiro dos assaltos — as redes de televisão parecem ter um certo prazer em mostrar o pior. Passo os olhos nos desfiles das escolas de samba. Dessa vez, acompanhei a Portela e digo: não fosse a pobreza da comissão de frente, poderia ter terminado mais bem classificada do que o quarto lugar. Digo isso sem entender bulhufas. Mas quem é que entende de Carnaval? E para que entender?

No Rio, a crítica foi a grande vencedora. Beija-flor e Tuiuti jogaram pedra na nossa dura realidade. A primeira atirando nos escândalos que salpicam dia sim, dia não. A segunda, mais profunda, mirando o sistema. É o povão dizendo que está atento. Será que é mesmo o povão? Tenho minhas dúvidas. O fato é que o Brasil não é mesmo trivial. Veja o caso da Beija-flor: comandada por um notório contraventor, a escola veio cantando um samba certeiro contra a corrupção. É hipocrisia? É, mas tem sua beleza. Esse é o país que temos, e os bicheiros, tornados bandidos pela tolice de uma ex-primeira dama, estão sempre em evidência. Ora bancam times de futebol ou escolas de samba, ora estão presos; isso quando não estão matando uns aos outros.

Esqueço a grandiosidade da festa e falo do meu mundinho. No Carnaval, li “Pedaços de amor”, de Ronaldo Guimarães, lançado pela Miguilim. Eu e o também mineiro — ele morador do Prado, em Belo Horizonte, onde viveu Belmiro, o amanuense de Cyro dos Anjos, um escritor machadiano dos melhores e meio esquecido — nos conhecemos de um jeito interessante. Ronaldo ouvia do meu primo Lucas, dono do Agosto (um senhor bar de BH), que nossa literatura tinha algo em comum. Trocamos livros, ele leu alguma coisa minha, e eu mastiguei esse “Pedaços de amor”. Chegamos à conclusão de que o Lucas está completamente equivocado, mas daremos a ele, em breve, o direito de defesa. O fato é que o livro do Ronaldo é muito bom e, entre tantas coisas que possa dizer a respeito dele, chama a atenção a musicalidade de suas frases. É, assim, uma leitura agradável, mesmo que as histórias não sejam lá muito felizes.

Foram muitas sessões de cinema de filmes que, eu acho, são candidatos ao Oscar. Quem diria! Houve época em que eu fugia daqueles que estavam na lista do prêmio, era trauma de um tempo no qual, entrava ano, saía ano, as tragédias eram o tema de Hollywood. E tome câncer! E tome criança em sofrimento desmedido! Isso parece ter sido deixado para trás, mas pouco importa esse papo todo, fui ao cinema, ponto. Os candidatos ao Oscar são bons, pelo menos os que vi. “The Post” é um filme que suscita muitas questões, que vão desde os limites de um segredo de estado até a tão discutida liberdade de imprensa. Os americanos são zelosos de sua democracia, mas o caso tratado no filme vai além de uma autopromoção. Todavia, lindo, mas lindo no sentido mais puro que possa existir, é “Visages, Villages”, dirigido por Agnès Varda e JR. Uma velha senhora do cinema e um jovem artista plástico andam pela França, fazem uns projetos com fotos enormes, que são sobrepostas em ruínas. Tudo muito simples, mas, quem já o assistiu talvez concorde comigo, não é apenas um filme ou um documentário, é, isso sim, um filme-poema.

Antes do carnaval, houve Arraial d’Ajuda. Houve o loft de minha amiga Rosaly Senra e sua hospitalidade. Houve o mar, uma lua cheia de tirar o fôlego, mas também a chuva. Houve um cachorro de rua que se sentou ao meu lado. Houve o amor de mais de trinta anos, que continua havendo. Mas nada disso eu digo, guardo para mim, é o saldo de minhas férias e, afinal de contas, não estou no primário, portanto não tenho de escrever aquela redação manjada sobre como foram meus dias longe da escola.


Em Arraial d'Ajuda, Bahia.


7.2.18

Mais uma curva fechada

Minha amiga me disse que, sentada no metrô, enquanto se deslocava do trabalho para a livraria, onde afinal nos encontramos, observou que as pessoas estavam tristes. Reforçou: “As pessoas estão tristes até a raiz.” Mesmo o Chico Buarque, a quem assistira uns dias antes, lhe pareceu abatido, sem energia.
Sei que estamos sob pressão e a um passo de jogar a toalha e dizer: não dá mais. O sinal está fechado para nós, que não somos nem tão jovens assim, quiçá para os jovens. Ah, Belchior, você não teve tempo de presenciar nossa deblace. Só nós assistimos a sua derrota de homem triturado pela máquina, isso que se vê todos os dias e nos leva a dar de ombros e seguir adiante.
A queda coletiva está acontecendo e não parece ser a soma das individuais. É um processo. Adoniran Barbosa viu situação semelhante a isso, miúda, é verdade, no desmanche do Bexiga, no ocaso do seu mundo. Ecoa agora o que o Sargento Oliveira, de “Um samba no Bexiga”, fala, com intenção de acalmar as pessoas: “Num tem importância / Foi chamada as ambulância / Carma pessoal / A situação aqui está muito cínica / Os mais pior vai pras Clínica.” A dimensão das “tragédias” tem distintas implicações: no fracasso de um país Brasil, não há clínica que suporte tantos e tantas que precisam de socorro. Não haverá toque de silêncio em cornetas ou bumbos, simplesmente chegará o fim.
Eu e minha amiga fomos ouvir o papo de Rogério Reis, o fotógrafo responsável pela foto que serviu de modelo à estátua de Carlos Drummond de Andrade em Copacabana. A história do encontro dos dois é ótima. Antes da foto emblemática, Rogério fez outras, também muito conhecidas: Drummond, com um livro indecifrável na mão, ora está sentado, ora levemente deitado num tapete persa do chão de sua casa. Rogério tinha uns vinte anos nas duas oportunidades que teve de fazer as fotografias. Alguém na plateia comentou que, para tirar fotos como aquelas, o fotógrafo deveria ter uma grande empatia com o fotografado, rara capacidade principalmente em um jovem. Verdade. Que moleque era aquele e que poeta — um velho que completava oitenta anos — era aquele?
Falo da década de 1980. O Brasil também capotava na curva, mas conseguimos um alívio, desse modo torto com o qual historicamente avançamos. E Drummond estava vivo. E Rogério, hoje com sessenta anos, um pouco mais, um pouco menos, apostava todas as suas fichas na vida que mal começava. Apostávamos nossas fichas, eis a diferença para os dias atuais. Reunimos um milhão de pessoas em várias praças para ouvir um palanque com oligarcas, democratas históricos e exilados recém-chegados levantando as mesmas bandeiras. Alguma coisa nos unia. Hoje mais nada.
Uns querem a mão dura para enquadrar os meninos levados e as meninas levadas que nos tornamos aos olhos reacionários. Solução infantil, que não encontra adeptos nem na psicologia mais velha e/ou velhaca. Outros acreditam que o erro foi só do lado de lá, que há um homem bom capaz de dar jeito em tudo. Não, não há um homem bom. Ou por outra: não há um homem bom para além do que eu e você possamos ser.
Esse caso do apartamento no Guarujá, a um leigo feito eu, parece pouco substantivo, difícil de, a partir dele, levar uma pessoa à condenação. Apesar disso, Lula tem culpa pela conjuntura esfacelada. Tem sim. Culpa política. Não só ele, diga-se, e nomeiem-se mais alguns: Fernando Henrique e Aécio, um MDB de cabo a rabo e mais inúmeros entre políticos anões e religiosos devotos do cifrão. Conseguiram, em certos momentos com mérito, levar o carro para além da curva. Seguros de si, trocando a direção uns com os outros, pisaram fundo no acelerador logo em seguida. Estamos de novo no meio de outra curva. Os pneus são os mesmos de quarenta anos atrás, e o farol está queimado. A direção está e estará nas mãos de um político, e é bom que seja assim, apesar dos pesares. Os passageiros, que já tememos a velocidade, agarramo-nos à mão do destino. Somos bois abatidos, que ainda mugem (baixo).
A situação está cínica. Cínica e meia.

22.1.18

As muitas infâncias


Para o Daniel Ribas

Dia desses, fui convidado para um bate-papo com crianças, mas, infelizmente, a conversa foi cancelada. Deveria falar como me aproximei da literatura, acrescentando como a questão da violência interfere na relação livro-infância. Fiz umas anotações-guia, e são elas que, de modo geral, divido com vocês. Ah, sim, a linguagem é adulta, na hora do vamos ver, manteria outro nível, mas jamais, em hipótese alguma, falaria como se estivesse diante de animais, gorjeando onomatopeias para bebê dormir.

Cresci num mundo muito diferente do de hoje. Não havia internet nem celular; havia televisão, mas, durante muito tempo, não na minha casa. A primeira TV que tivemos foi em 1970, um pouco antes da conquista da Copa. Eu tinha nove anos.

O que fazia uma criança sem TV, internet e celular? Fora de sala de aula — o número de crianças que não frequentava a escola era grande —, a molecada brincava na rua, nos quintais. Brincava de pique esconde, de mamãe da rua, de balança caixeta, de bolinha de gude; jogava futebol; fazia guerra de mamona; pulava córrego com vara de bambu; roubava fruta dos vizinhos. Nos domingos, ia à matinê e, no fim de todos os dias, cansada, dormia cedo.

Poucas faziam um trenzinho a mais: liam um livro na hora de dormir. Liam espontaneamente, porque ajudava a desacelerar dos dias de tanto corre-corre e pula-pula. Eu lia? Só por volta dos doze anos, a leitura foi se tornando uma atividade corriqueira, que eu buscava. O que, muito cedo, eu fazia era imaginar coisas, fazer versinhos, músicas. Bolava números de circo (acrobacia, palhaçada) e convidava os vizinhos para ver. Na porta de casa, armava um jogo de argola, que muita gente parava para jogar. Investia o lucro em sorvete e figurinhas. Colecionar figurinhas era a coisa mais importante do mundo, e, graças a elas, uma vez ganhei um fogão. E o que uma criança fazia com um fogão? Nada, ué, dava pra mãe, e a mãe vendia.



O querido Carabolante mandou a turma de doze anos ler um livro de gente grande: “Capitães de areia”, de Jorge Amado, que conta a história de uns meninos de rua, muito diferentes do que eu era, ainda que fossem da minha idade. Putz, como aquilo me fez bem! O livro me acompanhou pelos dois ou três meses que gastei para lê-lo e depois fazer o trabalho. A partir de então, ler passou a ser uma atividade que se encaixava perfeitamente nas demais. É verdade que, entrando na adolescência, uma novidade — forte concorrente da rotina estabelecida — apareceu na minha vida: as meninas, quer dizer, a atração por elas.

Brincando até não poder mais, lendo livros que contavam histórias ao mesmo tempo diferentes e parecidas com as minhas e metido em paqueras, acabei, entre uma pelada e um mamãe da rua, entre “O escaravelho do Diabo” e “Lucíola”, rascunhando uns versos, uns versinhos de amor, feitos para impressionar.

Encontrei na leitura — e na escrita — terreno para alimentar a minha já robusta imaginação. Por que fui assim? Por que a fantasia sempre me atraiu? Não sei explicar, mas quem é que sabe tudo de si?

O mundo é violento desde sempre. Às vezes, a violência está mais distante, às vezes mais próxima. Na minha infância, numa cidade pequena, violência era briga de rua, eram os meninos mais fortes se impondo. Eram os meninos da periferia fazendo valer seu destemor contra a boa vida dos bem-nascidos. Era isso e mais algum crime raro, quase sempre de fundo passional, restrito ao mundo adulto. Violência, violência mesmo estava lá no Oriente Médio, eu via na TV. Estava também nos porões da ditadura, mas eu não via na TV. Hoje a violência é na esquina — de grandes ou de pequenas cidades —, por isso a infância foge da rua. Poderia ser um estímulo à leitura, mas parece que os jogos eletrônicos têm falado mais alto.

12.1.18

10 01 — do ano da graça de 2018

Não acredito em numerologia, nessas coisas, mas ontem, 10 do 01, foi um dia interessante, vai que tem a ver com a data espelhada, não é? Pois bem, o dia começou da seguinte forma: ouvi a conversa entre aqueles que chamei de revoltados da aurora (dois senhores, na primeira hora da manhã, enquanto levavam seus cachorros para as necessidades matinais, ameaçavam destruir a assembleia e o congresso na porrada) e li, num cartaz-propaganda de um leitor de búzios, a promessa de, depois de uma consulta, o cliente “ter êxito em seus problemas”.

Trabalhei, como sempre trabalho. No fim do dia, resolvi ir ao cinema. Seguindo a dica de meu amigo e xará, o poeta Alexandre Marino, fui ver “The Square — a arte da discórdia” (Ruben Östlund). Sobre o filme, digo que é importante, senão fundamental, vê-lo nesse momento. O crítico José Geraldo Couto, na primeira vez que falou do filme (no site do IMS), fez elogios rasgados, na segunda, recuou um pouco, viu certo didatismo no filme, uma tentativa de açambarcar todas as questões pungentes dos dias de hoje. É até possível que ele esteja certo, mas tudo no filme é colocado de forma intensa, verdadeira, então, a meu ver, esse didatismo se perde ou perde a importância.

Comprei o ingresso e dei um pulo na livraria que fica a um quarteirão dali. No caminho, esbarrei em dois escritores numa ilha que separa as calçadas da rua. Brinquei com eles dizendo: “poxa, já somos poucos e vocês ainda ficam aí, expostos ao perigo.” Rimos, e eu tratei de seguir para a livraria, sabia muito bem o que queria lá. Há algum tempo, numa conversa com a Suzana Vargas, ela me disse que havia conhecido e ganhado um livro do Marcelo Maluf. Me aconselhou fortemente a lê-lo. Depois, no Face, o Eugen Weiss, respondendo a uma enquete sobre quais seriam os bons escritores da atualidade, tascou um Marcelo Maluf. Então eu ia à livraria para comprar um Maluf, este, não o outro, aquele. E fui. Lá, o poeta, cantor e livreiro, Leonardo Marona, botou a livraria de cabeça para baixo (exagero) para achar o “A imensidão íntima dos carneiros” (Editora Reformatório). Eu e Leonardo, antes de qualquer coisa, ficamos embasbacados com o título, e, agora, avançado na leitura, posso dizer que o livro é bom, aliás, bem bom.

Voltei ao cinema, encontrei dois amigos, sentei num cantinho, comecei a ler a minha recente aquisição. Entrei pra sala, fui desligar o celular e, antes, resolvi dar uma espiada no Face. Para minha surpresa, o querido Marco Túlio Costa acabara de publicar um texto sobre o meu “O bichano experimental” (Patuá). Coisa linda. Respondi a ele o seguinte: “Eu aqui esperando o filme começar, numa sala lotada, onde devo ser discreto, e leio isso. Não posso gritar, nem chorar. O que me resta senão sentir-me um bichano feliz, ronronar baixinho e firmar um compromisso de, saindo daqui, tomar um chope e propor um brinde aos deuses? Valeu, grande Marco Túlio Costa." Ao sair da sala, encontro meus amigos Shirley e Átila. Cada um deles carrega uma garrafinha de cerveja. O Átila me dá a dele, já vai entrar no cinema (para assistir ao “The square”) e é com essa garrafa que cumpro o prometido e brindo aos deuses as palavras sobre o livrinho. Depois, fui pra casa comer macarrão com salsicha e, sentado no computador, ficar ouvindo o Catho, esse jovem cantor de quem nunca ouvira falar.

8.1.18

O inadiável

Acorda com a sensação de que está atrasado, de que espera por ele uma urgência não revelada.

Faz o asseio matinal sem apuro. Engole o pão e bebe apenas meia xícara de café. Não arruma a cama. Não troca uma ideia com o porteiro. Enfia-se no carro.

Enfrenta o trânsito com fúria. Faz ultrapassagens pela direita e pela esquerda, avança sobre a pista exclusiva dos ônibus, pouco se importando se, na primeira, na segunda ou na terceira vez, a câmera o flagre e multe seu excesso. Espreme um ciclista contra o meio-fio. Fura sinais e, quando não o faz, buzina — se depende de que outro carro, a sua frente, dê a arrancada — ou, se é o primeiro parado no sinal, engata a marcha e toca ainda que algum pedestre esteja terminando de atravessar a rua. Xinga o pedestre. Lamenta a falta de civilidade dos moradores de sua cidade. E acelera mais ainda.

À entrada do prédio onde trabalha, fura a fila dos automóveis que se encaminham para o estacionamento. Para de forma irregular na primeira vaga que encontra e nem se importa com as advertências do encarregado. Pega o elevador. Sai do elevador. Toma o outro elevador. Lê, no monitor de TV, que são 7h39m. Chegou cedo, a tempo (de quê?).

Dá bom-dia aos poucos que estão no escritório. Recebe, em troca, olhares desconfiados, irônicos talvez. Deve ser a hora, ele nunca chega tão cedo, é da jornada das 10h às 19h. Mas hoje é diferente, precisa se organizar.

Onde estão seus pertences? Suas canetas? Seus papéis de rascunho? A calculadora? O chefe ainda não chegou. A secretária tampouco. Depois se encarregará de saber o que aconteceu. Liga o computador. A senha é recusada. Uma, duas vezes. Se errar a terceira, terá problema, terá de pedir uma nova senha e não conseguirá uma tão cedo, os responsáveis por isso não teriam motivo para estar no escritório antes das 8h. Resolve tirar da bolsa uma caneta, um papel de rascunho, o celular para usar a função calculadora. Suspira.

— E aí, aposentado? Esqueceu o que por aqui? — Eleutério, em tom jocoso, deixa a frase no ar e dirige-se à sua mesa de trabalho, lá na ponta extrema do salão.

Na sexta-feira anterior, havia saído no Diário Oficial, hoje é seu primeiro dia útil de aposentado, ele não se deu conta, ao contrário, acordou com aquela sensação de trabalho por fazer, de rotina a cumprir. Sente vergonha. Recolhe o que espalhara pela mesa, desliga o computador. O que dirá ao chefe? À secretária? A todo mundo?

Acomoda-se na cadeira. Infla o peito de ar. Fecha os olhos. E morre.

25.12.17

Repertório

O editor da Rubem é um jovem, o Henrique Fendrich. Nem bem sei como um dia ele me convidou para escrever em sua revista eletrônica, o fato é que eu aceitei, e minhas crônicas por ali passeiam há mais de cinco anos. Encontrei em Henrique um conhecedor da crônica brasileira, um senhor conhecedor, melhor dizendo. Ele, que também é cronista dos bons, realmente leu tudo, o que deveria garantir-lhe um espaço nas festas literárias, nos saraus do Sesc, em júris de concurso, mas, até onde alcanço do seu dia a dia, isso não acontece. O jornalista Henrique vive de trabalhos avulsos em Curitiba. Oh, Brasil!

A erudição do jovem editor, vez por outra, levanta do pó do esquecimento algum ou alguma cronista. Recentemente foi a vez de Marisa Raja Gabaglia, escritora que escancarava o peito, virava-se do avesso. Não conheço absolutamente nada do que ela escreveu, portanto foi no perfil feito pelo Henrique que encontrei a seguinte frase: “Sonho com a família perdida como se a pudesse recuperar. Sonho com a família como os cegos sonham com a luz.”

Em meados de dezembro, passei uns dias na companhia do meu amigo Marco Túlio Costa — um Escritor, disse noutra oportunidade e repito em quantas julgar necessário. Acontece que o Túlio não é só um escritor, é também um sujeito que vira e mexe arruma um projeto para atuar como voluntário. Seu livro “A árvore do medo” (Editora Formato), por exemplo, foi escrito a partir de suas oficinas com crianças carentes da cidade de Passos, onde vive. Ultimamente, ele trabalha com a Associação dos Deficientes Visuais. Nesses dias que passamos juntos, meu amigo me contou várias histórias da turma que acompanha, histórias divertidas, pois aqueles cegos são alegres e contornam com humor suas limitações. Túlio perguntou a dois cegos de nascença se eles sonhavam e com o que sonhavam. A resposta é que sonhavam com sons e tatos.

Marisa Raja Gabaglia, ao dizer que sonha com a família da mesma forma como os cegos sonham com a luz, está idealizando o sonho dos cegos ou simplesmente está dizendo — ela, que abriu mão da sua — que, na verdade, não sonha com família alguma? A julgar pelo levantamento da vida da escritora, esse do Henrique, a frase está apoiada na ilusão de que os cegos sonham com a luz, pois Marisa era carente do convívio familiar.

Certa vez, ouvi o Túlio (onipresente por aqui) aconselhar algumas professoras do ensino médio a não se preocuparem com o que o escritor quis dizer; como leitores deveríamos nos perguntar o que aquilo escrito sabe-se lá por quem significa para nós. Acabei de dar esse tropeço, mas até certo ponto justifico-o. Não houvesse eu sido alertado para a espécie muito singular de que é feito o sonho de um cego (pelo menos aqueles que nasceram assim), a frase de Gabaglia teria uma única leitura. Tendo ganhado repertório, a leitura se multiplicou e desse modo tornou-se mais interessante. Ah, como isso é bom. E como leva uma vida inteira nosso processo de alfabetização.

11.12.17

Papo reto

Você que sabe que a terra é plana; que Paul McCartney morreu antes de os Beatles fazerem sucesso; que Elvis está vivo, vivíssimo. Você — o mesmo ou outro parecido com o primeiro — que não tem um pingo de dúvida de que a ida do homem à lua foi apenas um truque dirigido por Kubrick, a mando dos estúdios de Hollywood; que advoga que tomar óleo de coco, chá de boldo ou urina de homem ou mulher virgens cura até falta de dinheiro. Também você — reforço: o mesmo ou outro parecido com o/os anterior/es — que tem absoluta certeza de que Deus fala e atua por meio do pregador da esquina; que acredita fervorosamente na boa vontade daqueles homens circunspectos que, por meio de um discurso empolado, oferecem solução para tudo, particularmente para o fim da sua pobreza, que não depende da redução da riqueza deles. Você que toma uma colher de azeite para evitar a ressaca; que bebe diariamente, mas é só uma social, nada demais. Você que diz que ter fé é acreditar cegamente, sem questionamento, em tudo — esquecendo-se ou desconhecendo o fato de que muitos santos, inclusive Moisés e Jesus, exercitaram a dúvida até o limite. Você que é democrata, mas defende a violência como o melhor antídoto contra a violência; que é avançado, mas sente saudades do tempo em que os homens eram homens e as mulheres eram mulheres. Você que, solidário às mulheres, defende com unhas e dentes que o problema da violência contra elas está na minissaia que usam. Você que vê, no Brasil de Lula (e no de Temer, diga-se) e até mesmo nos Estados Unidos de Obama, a evidência da ascensão do comunismo. Você que não é racista, mas — é o que você diz — francamente tudo tem limite. Você que não é homofóbico, mas, ora, meu Deus, você se espanta, tudo tem limite. Você que já andou no lombo de mula sem cabeça. Você que já viveu de tudo e aprendeu que o esforço sempre é recompensado, ainda que não seja exatamente isso que lhe aconteceu. Você que não se deixa enganar. Você que não muda de opinião. Você que acha bobagem essa coisa de livro, de filme, de teatro, de pintura; que acredita que o mundo está como está porque ninguém quer trabalhar. Você que fuma, mas não traga.




Pois bem: é com você que estou falando e quero lhe dizer uma coisa: você está mal, muito mal. Porém sou obrigado a reconhecer: você ganhou, o mundo é seu, e você não fará bom uso dele — aliás, você, dono do mundo não é de hoje, nunca fez bom uso dele.