30.3.12

Arranjos fresquinhos para uma velha cantiga pornográfica e outra antipatriótica


Mariquinha do Fubá

Ô, Mariquinha do Fubá, se eu pedir você me dá a mão e me consola. Diz pra mim: “Menino, não tenha medo, o escuro dura um segundo, passa logo”. Lá de trás da bananeira, é, Mariquinha do Fubá, a gente pode mirar o resto do mundo e rir dos que levam tudo tão a sério. O prefeito carrancudo, a dona de casa para quem, se a roupa não seca, a vida acaba. O professor que não entende a ironia do Joãozinho lá da classe dele.
Se eu pedir você me dá, Mariquinha do Fubá, a misericórdia por eu me assustar tanto com a fanfarrice dos dias que nascem mansos, passam em tempestades pela hora do almoço e dormem de lua cheia?
Se você me dá mão e misericórdia, vou andar de bonde com meus sustos. Em cada susto, rabisco um desenho. Em cada susto, alinhavo um poema. Em cada susto, em vez de envelhecer, fico eterno — ou tento.
Você me dá, ô, Mariquinha do Fubá?

Da Independência

Japonês tem quatro filhos, todos quatro nascidos no lajeado. O primeiro é filho de búlgara, o segundo de uma que quase transformou o japa num desgraçado. O terceiro nasceu prematuro e o quarto foi adotado. Vivendo sua terceira viuvez, depois de crescidos os filhos, o japonês largou as beiras do lajeado, berço de pedra de sua prole, e se mandou pra capital. Tentou ser meganha, a idade não permitiu. Arriscou-se como compositor, suas rimas não caíram no gosto da plateia. Foi boxeador até levar o primeiro soco. Acabou, como muitos, no informal; no caso dele, no ilegal. Passou a contrabandear. No circuito Uruguai, Paraguai, Argentina, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela, tirou seu ganha-pão. Dali trazia um cadinho da felicidade guarani, outro da felicidade dos descendentes de Tupac Amaru, outro da cota dos guerrilheiros da selva amazônica e até mesmo um pouco daquela que persiste no coração dos descontentes com Hugo Chavez. Distribuía gotas de felicidade nos quatro cantos do Brasil. Para trabalhar, corrompeu. Escondeu-se. Um dia foi preso. Em defesa do réu, o rábula, contratado por alguns clientes desacorçoados com a abstinência forçada, não poupou palavras: “Esse homem, ceteris paribus, compôs o hino de nossa independência, posto que, sem felicidade, não há nação”. Talvez por não compreenderem o latim e o português da defesa, todos no Palácio da Justiça fecharam os olhos diante de tal argumento. O japa percebeu que, estando cega a justiça, bastava andar na ponta dos pés, porta afora, aeroporto afora, Brasil afora. No debate que se seguiu à fuga, jornalista armado de ironia bradou em sua coluna: “Ficou a pátria livre sem que ele (o contrabandista, bem entendido) morresse pelo Brasil”. Especula-se que hoje o japonês, que tem quatro filhos, todos quatro nascidos no lajeado, é monge tibetano numa terra de homens coxos nas barbas do Arzeibaijão.

Ilustrações retiradas de site de imagem livre.

16.3.12

Yoani Sánchez não vem


Cuba vive uma ditadura. Ponto final. Ou ponto e vírgula, sinal que induz a tomar fôlego e completar o raciocínio. Ditadura engendrada no maior movimento revolucionário da América, justo aquele que encheu muita gente de esperança e influenciou seu jeito de viver vida afora.
Há coisas interessantes feitas sob o manto do socialismo cubano. O país tem medicina de boa qualidade e nível de escolaridade alta, por exemplo. Todavia, não apenas pela pressão dos EUA, particularmente depois do fim do império soviético, os ganhos se deram à custa do cerceamento da liberdade.
Recentemente, a presidente Dilma esteve em Cuba e deu uma mancada ao fugir do debate sobre a existência de presos políticos e de outras formas de constrangimento individual naquele país. Não bastasse negar-se a falar da situação, jogou luzes sobre o absurdo de Guantânamo e, dando mostras de um comportamento de líder justa e altruísta, chamou a atenção para o fato de a situação brasileira, no que tange aos direitos humanos, não ser exemplar.
Muito bem, não discordo da presidente, a situação nos EUA e no Brasil tem de melhorar muito, mas e a de Cuba? O Brasil não quer fazer mais negócios lá? Então, bom momento para pressionar positivamente o país, clamando por maior liberdade. Quando for aos EUA, Dilma que trate de falar de Guantânamo. E, quando estiver no Brasil, arregace as manguinhas e cuide dos problemas de cá.
Tenho imensa simpatia por Cuba, até mesmo por seu ditador-mor, Fidel Castro. Mesmo cometendo erros, o país se arriscou a seguir adiante com aquela ideia (hoje chamada de maluca) de socialismo. Todavia, um país socialista, ao garantir o bem da coletividade, minorando as diferenças, deveria promover as individualidades. No socialismo, a individualidade não seria essa nossa — agarrada ao direito ao consumo desenfreado — e se basearia fortemente na liberdade de expressão e no compromisso de criar mentalidades críticas. Seria algo mais elevado. A diminuição das diferenças materiais entre os indivíduos deveria estimular o aumento de suas outras diferenças. Cuba, ao negar essa face da complexidade social, derrapa na curva. Pena.
Que raio caiu sobre minha cabeça para me meter em análise tão rasteira e desentendida da política internacional brasileira e do modelo de socialismo cubano?
Tem a ver com a proibição de Yoani Sánchez vir ao Brasil. Pela décima nona vez, o governo cubano proibiu a moça de sair da ilha. É uma questão seriíssima. E, do ponto de vista cubano, burra. Com a proibição, a imagem do país piora numa extensão maior do que ocorreria com as acusações que ela viesse a fazer.
Yoani Sánchez estudou filosofia e gosta de internet. É da geração Y (nome de seu blog, plataforma a partir da qual dialoga com o mundo), gente nascida na década de 1970 e batizada com nomes em que aparece a letra Y. Jovem. Inconformada como devem ser todos que se deparam com a delinquência das ditaduras. Corajosa, pois não se cansa de denunciar as atrocidades cometidas pelas forças governamentais, como a que recentemente levou à morte o ativista político Wilman Villar Mendoza. Na versão oficial, um marginal em greve de fome para angariar a simpatia das pessoas.
Negar a essa moça que circule no mundo faz com que eu reforce minha ideia de que Cuba não passa de uma ditadura, uma droga de ditadura. Mesmo que a medicina de boa qualidade esteja disponível a todos, Cuba é um país menor. Mesmo que todos estudem, Cuba é um país menor.
Será que um dia Yoani Sánchez vem? Não estou otimista.

28.2.12

Com os olhos na Babilônia


        Lá fomos nós, eu e meus filhos homens, para Minas Gerais, para a vizinhança de Passos. Como é bonita a região, farta em água e trombas d’água. Passamos ao largo do perigo, atirando-nos ao mar de Minas, como se diz, na boa, quando o tempo mostrou-se seguro. Não conhecia o Vale do Céu e, até agora, não encontro palavras para descrever tudo aquilo que vai do caminho morro acima, passa pela estrutura do hotel e termina na série de cachoeiras. A natureza caprichou naquele trecho.

Vista da Babilônia a partir da Parada dos Lagos. Foto própria.


Antes de chegar ao Vale do Céu, alojei-me na Parada dos Lagos, pousada de um casal amigo, Parada e Deucélia. Poderia falar maravilhas dessa estada, mas vou me ater a um único detalhe. Enquanto estive lá, meus olhos cuidaram da Serra da Babilônia. Ora ela estava emoldurada pelo céu azul. Ora coberta de nuvens. Ora tampada pela chuva. Não me distraí dela em momento algum, pois ela é filha da gente e mãe da gente. Meu pai levava boi por aquelas dobras de Minas, nas sombras da Babilônia, vez ou outra fazendo os cascos do cavalo pisarem em seus aclives. Agora a Serra está, como diria Drummond, presa às minhas retinas nem tão cansadas e fixada em alguma foto de qualidade duvidosa. É pouco, voltarei para contemplá-la, para, de tanto olhá-la, tirar-lhe algumas lascas invisíveis e tomar, assim, posse intangível dela.
Um parêntese: Parada me contou que Deucélia começou a escrever contemplando a Serra: musa num mundo sem musas. E ela tem levado tão a sério isso de escrever que acaba de lançar “Léa e a lua”, livro prefaciado pelo Barreto. As palavras são dele, nosso poeta: “Nesta história deliciosa — igualzinha aos seus pratos, quitandas e confeitos mais saborosos — Deucélia nos coloca nas asas de uma mariposa que, metaforicamente, retoma a trajetória da humanidade inteira quando quer se ver, se conhecer, ou viajar para o distante, o inatingível... a fim de descobrir sua própria beleza.” É livro pra ler (nem todos são), como a Serra é pra ver.
A viagem não foi só deslumbre e reencontro. Um certo Barba me disse que, pulverizado do céu por um avião amarelo, ave mecânica, o veneno que mata as pestes sempre prontas para destruir as plantações de soja e cana tem matado também os pássaros, bicho que enche a pança com insetos. Tanto mosquito morto ali no chão, banquete pantagruélico, e os passarinhos nem para se darem conta de que, como cantava Ataulfo Alves, “laranja madura na beira da estrada, tá bichada, Zé, ou tem maribondo no pé”. Lá na Ponte Alta, pássaro-preto, sanhaçu, canarinho e não sei mais quantos estão degustando veneno e, pumba, caindo durinhos no chão. Morrem e, do mesmo veneno, matam os filhos e as cobras, que comem sem esforço pais e filhos largados no chão. Enfim, há um desastre ecológico pras bandas de Delfinópolis. Quem cuida disso?

30.1.12

Caymmi de Passos e Passos de quatro



1.


Conheci a música de Dorival Caymmi por intermédio do bom Baiano, pai de minha amiga-irmã, Neide.

Aconteceu assim: fui com amigos fazer serenata para a Neide, o Baiano abriu a porta e nos serviu uísque com água de coco. Devia estar doido para que algo distinto de dormir acontecesse naquela noite, era boêmio. Em pouco tempo, e animados com a birita, a serenata virou festa. Quando o violão foi parar na mão do “velho”, bem, Caymmi sentou-se ao nosso lado e cantou: “João Valentão é brigão/Pra dar bofetão/Não presta atenção e nem pensa na vida”. Como era doce o compositor baiano; e como se parecia com ele, fisicamente, mas não só, o Baiano de Passos.

Em dezembro, Baiano foi embora. Foi no embalo do mar distante. Foi de jangada. Foi encontrar a companheira, dona Hilda, que o havia deixado havia muito tempo, morrendo jovem, jovem demais. Por sorte, em novembro, pude vê-lo e, de certo modo, despedir-me dele. Já descia a ladeira, jeito estranho de chegar ao céu, mas continuava bonito, com aqueles olhos cheios de vida.

Os olhos do Baiano e os olhos da Neide foram, os dele, e são, os dela, coisa muito séria. Bolotas acesas, diferentes dos meus, tímidos e desconfiados. Transparentes, deixam, ou deixaram, à mostra a dose exata do interior desses dois que, para além de pai e filha, foram e continuam sendo — pois isso a morte não arranca de ninguém —carne e unha.

Meu irmão, quando seus filhos eram pequenos, gostava de acalmá-los com “Acalanto” (“É tão tarde/A manhã já vem/Todos dormem/A noite também/Só eu velo por você, meu bem/Dorme, anjo/O boi pega neném”), feita por Dorival Caymmi para ninar sua filha, a Nana. Conjecturo que o Baiano também a cantou para sua Neide. É certo que sim. Como eu nasci um pouco antes dela, exatamente uma semana antes, é possível que, ainda na Santa Casa, eu o tenha ouvido cantar a música de Caymmi. Assim, teria sido a primeira música que ouvi na vida. Conjecturo. Conjecturo e, feliz, fecho uma história: Baiano me deu Caymmi nos meus sete dias, repetiu a dose nos meus quatorze, quinze anos e depois outras tantas vezes vida afora. Agradeço-lhe por isso. Não só por isso, já que ele me deu a Neide também.

2.


De longe, via jornal e facebook, acompanho a onda de violência que tomou Passos de assalto. Segundo as estatísticas disponíveis neste site, Passos figurava em 2010 (dados provisórios) com 7,5 mortes por 100 mil habitantes, ocupando, portanto, a 2887ª posição no ranking dos municípios brasileiros. Se atualizamos os dados com as mortes ocorridas em 2011 (por volta de 45), Passos saltaria para o honroso posto de 385ª cidade mais violenta do Brasil. Em termos de unidades da Federação, segundo a mesma fonte, os destaques negativos são: Alagoas (66,8 mortes/100 mil habitantes), Espírito Santo (50,1), Pará (45,9) e Pernambuco (38,9). Passos, se fosse uma unidade da Federação, seria, em 2011, a quarta mais violenta do Brasil, tirando de cena Pernambuco, aliás, estado que tem reduzido seus níveis de violência.

As estatísticas por si só não dizem nada, são apenas uma porta de entrada para entender determinado fenômeno. As anteriores dizem o seguinte: tenham urgência. Se São Paulo e Rio de Janeiro, megacidades, estão conseguindo reverter seus índices de violência, o mesmo pode ser feito em Passos, talvez de forma mais fácil, ainda que o aumento da violência de Passos deva ter alguma relação com a diminuição nas capitais. Fenômenos sociais são complexos por natureza.

Como princípio norteador de uma ação em favor da segurança, creio que não se deve culpar ninguém, nem tirar a responsabilidade de ninguém. O ideal é promover o casamento entre ação policial e assistência social (termo genérico para dizer presença do Município, do Estado e da Federação). A sociedade civil — em suas várias representações, que vão, digamos assim, do fazendeiro magnata ao desempregado — deve participar de todo o processo.

No facebook, há um começo de movimentação contra esse quadro lastimável, todavia é preciso que ela saia do virtual para as praças da cidade (são muitas, houve mesmo um prefeito que ficou conhecido como Zé Pracinha, pois o que gostava mesmo é de construí-las). Depois das praças, o movimento tem de entrar no gabinete do prefeito, no quartel do coronel, na delegacia e principalmente na casa de cada um de nós, passenses, pois será o momento de fazer diagnósticos, traçar estratégias e, claro, agir. Será preciso passar por cima das divergências, e é bom não deixar a luta ser privatizada pelos partidos políticos, que devem, sim, participar, mas de coração aberto, sem segundas intenções. 

Vamos lá, gente, janeiro já ficou para trás, não podemos permanecer de quatro.


10.1.12

A faxina


O ano está acabando, momento ideal para arrumar a sala, retirar os livros e discos nela esquecidos e extirpar o pó das coisas. Nada de requintes, uma faxina de bom tamanho deve ficar no limite do que minhas mãos e uma flanela trabalhando juntas forem capazes de fazer.
Começo por levantar, largado na mesinha de canto, o “Modern Time” (2006, Sony), de Bob Dylan. Confesso que passei a curtir esse mito a partir desse disco. Dele deslizei para os outros, os antigos e clássicos. Aprende-se com “Modern time” e, de resto, com toda a obra de Mr. Zimmerman uma coisa importante: o terreno da simplicidade é fértil. Dylan e seu grupo, econômicos no número de instrumentos, criam uma imensidade de climas, de sons, de barulhinhos bons que gente leiga como eu nem acredita que se pode fazer tanto com tão pouco.
Ao lado de Dylan, o livro de Marco Túlio Costa, “Mágica para cegos — contos e contracontos” (2011, Editora Saraiva). Marco Túlio ficou conhecido por seus textos para jovens, um dos quais, “Fábulas do amor distante” (2003, Record), ganhou o Jabuti. Todavia, ele escreve para todas as idades, prova disso é esse “Mágica”, um achado. Escrevendo um conto de uma determinada perspectiva para depois escrevê-lo de outra, o autor mineiro, além de contar boas histórias, traz à luz o próprio ofício de escritor. Como Dylan, sem ultrapassar as fronteiras da simplicidade.
Tiro o pó da pedra de mármore. E, ao enfrentar a sujeira que desce até os pés da mesinha, deparo com uma peça que me é cara: um papel amarfanhado, no qual registrei o seguinte verso: “Dize-me tu, montanha dura,/onde nenhum rebanho pasce,/de que lado na terra escura/brilha o nácar de sua face.” A letra está péssima, mas o poema de Cecília Meireles, “Serenata” (Retrato Natural, Obra poética, Nova Aguiar), não para: “Dize-me tu, palmeira fina,/onde nenhum pássaro canta,/em que caverna submarina/seu silêncio em corais descansa.” E assim termina: “Dize-me tu, ó ceu deserto,/dize-me tu se é muito tarde,/se a vida é longe e a dor é perto/ e tudo é feito de acabar-se!” Que homem eu era quando transcrevi o poema? E que outro então quando amassei o papel? E ainda o que o deixou ali, largado a moscas analfabetas?
Jogado ao chão, passo os olhos pela extensão da sala. Vi um resto do garoto que fui... Não, minto; desejei vê-lo. É tarde, dialogo com Cecília. Em seguida, ouço, sem que Nelson Ned cante: “E tudo passa, tudo passará”. Já passou.

Ao lado do telefone, a receita de meu médico, seu conselho para que eu abandone os doces, não bastasse ter deixado o álcool, e a sugestão de fazer um exame que custa o olho da cara. Tudo em nome de um fígado supimpa, apesar dos pesares. Uso a receita como leque, enxugo o suor com o dorso da mão. Gestos, pequenos gestos, os quais, cogito, dão uma espécie de chupeta na memória — essa maldita que não me ajuda, que só me mostra nacos retalhados —, fazendo com que ela, empurrada ladeira abaixo para pegar no tranco, me imponha um sobre-esforço para lembrar a “cena” de “Luz em agosto” (William Faulkner, Cosacnaify) na qual Lena se coloca na estrada à procura de Lucas Burch, o homem que a deixara prenhe. Cena inesquecível, lindamente escrita e traduzida (Celso Mauro Paciornik), mas da qual não recordo — ou da qual não recordo além do ponto aqui e agora registrado —, vítima que sou desse jogo de gato e rato em que estamos eu e meus miolos moles.
Ainda fora do lugar, o DVD do Arnaldo Baptista (“Lóki”, Paulo Henrique Fontenelle, MZA), o que fez o durão aqui ir às lágrimas. Não só pelo drama do roqueiro, mas pelo drama de todos nós, seus contemporâneos, que também temos passado por poucas e boas. Dia desses, um chegado levantou a seguinte estatística: ele e seus amigos de adolescência formavam um grupo de cinquenta e sete pessoas; hoje, quando beiram os cinquenta anos, estão reduzidos a seis. Foram caindo pela estrada afora, por onde deveriam ter ido bem contentes levar doces para a vovozinha. Foram sofrendo overdoses, contaminando-se com vírus letais, envolvendo-se em acidentes. Suicídio ao pé da letra, aparentemente nenhum. Arnaldo está vivo.
Parece melhor não cair nessa de virar o ano com tudo organizado e limpo, pois a limpeza externa tem contrapartida na (minha) sujeira interna e íntima. Abandono a arrumação. Distraído, levanto o caderno de telefone e topo com uma barata. Ela se espreguiça e, de pronto, começa a crescer... E a crescer mais ainda... E ainda mais... Até que dela brota Kafka, que, um tanto quanto assustado, me pergunta: "Onde estou?"
No meio do meu caos de cada dia, Kafka. Bem no meio. 

23.12.11

Guia gastronômico para quem tem fome de quê


Os Titãs foram, a meu juízo, a porção mais rock’n’roll das plagas tupiniquins. Os meninos tinham atitude e davam voz aos inconformados — rebeldes com causa, não outro qualquer. Eles gritaram, no quarto disco (“Jesus não tem dentes no país dos banguelas”, 1987), o famoso refrão: “Você tem fome de quê?/você tem sede de quê?” (Comida, de Marcelo Fromer, Arnaldo Antunes e Sérgio Brito).

Para essa espécie de famintos e sedentos, preparei um pequeno guia gastronômico.

Foto capturada bem aqui.
Tira-gostos existenciais extraídos da lama do dia a dia são encontrados por aqueles que frequentam o pôr do sol. Não com pretensão única de contemplá-lo, mas, sim, de se confundir com ele, passando a ser, mesmo não sendo (impossível sê-lo), um dos fiapos do sol que tocam as águas do rio ou do mar.

Para sede de justiça, um happy hour no qual são engolidos litros de indignação. Toma-se dela um gole para esquentar o peito e ativar a mente. Trago compartilhado de tal maneira que, ao fim e ao cabo, não reste mais indignação, e a garrafa vazia esteja embalada na velha e boa esperança.

O falecimento nosso de cada dia nos dê hoje e sempre um gole de coragem, pois, quem se regala com o doce da covardia amanhece mais pra lá do que pra cá. Sendo assim, atire-se ao doce mais doce que o doce de batata-doce: o sorriso dos meninos. O melhor deles pode ser encontrado onde menos se espera, às vezes numa lembrança de si mesmo.

Na dobra noroeste do desejo, vende-se o que, na mente dos carrancudos, não passa de ilusão. É boa dica de compra para fazer acompanhado daquele sujeito — do poema de Pessoa (Tabacaria), agora redivivo em romance de valter hugo mãe (“a máquina de fazer espanhóis”, Cosacnaify) — sem nenhuma metafísica. Esfregue nas fuças desse cabra da peste que, sim, isso que não é ilusão tem rosto. Tem nome. Não é metafísica, nem precisa ser, pois é o amor, esse alimento que, cru ou não, é único, porque mata a fome e devora o mal.

Contra sandices mais gulosas que famélicas, a estratégia ideal passa por um mergulho na noite do meu, do seu, do nosso bem. Nela, como cantou Dolores Duran, há “paz de criança dormindo e abandono de flores se abrindo”, temperos para uns e outros, para estes e aqueles. Em noites como essa, babau infortúnios.

Sempre há um segredo que nem mesmo o guia dos guias revela, pois ele cuida de reservar um canto para os iniciados, os críticos, os capazes. Menos por elitismo e mais por necessidade, esse esconderijo é onde ganha corpo o espírito iluminado, capaz de indicar aos outros a melhor sopa, o melhor vinho, o crème de la crème da culinária. Igualmente, no caso da culinária intangível tratada aqui. Não revelo o endereço onde nos reunimos para desfrutar de delícias sem igual, mas adianto: lá a janta é um vento que despenteia o careca, e a sobremesa tira a vergonha daqueles que, no carnaval, sambam com desalento.


Para terminar, um conselho: depois de comido e recomido o pasto sublime, amigo, não resta alternativa a não ser fazer a sesta que nos leve ao sono do sono do sono do sono. Nesse instante, chegamos ao subúrbio de nós mesmos, onde reciclamos o que somos.

12.12.11

ZY UNIDÊ – a rádio para você




A ouvinte de morada distante oferece ao amor de sua vida esta singela melodida: “Esta é a última canção que faço pra você”. Ouvimos a música e pensamos nas razões que levaram Zenóbia, a ouvinte, a querer ouvir e oferecer essa espécie de carta de despedida. Por que os corações são estraçalhados no rescaldo do amor?

O chão de sua casa, senhora que se deixa levar pelas ondas da rádio ZY Unidê, não deve ficar entregue à cera da moda ou ao desinfetante de fácil aplicação, longe disso. Ele merece, sim, dedicação e força, que somente o esfregão Mop, duro e pesado, faculta à esmerada dona de casa.

Ainda há pouco, nas rendondezas de Copacabana, um jovem infrator, com mais de mil passagens pela polícia nos últimos meses, jogou fora a própria sorte e acabou preso. Tudo ocorreu, como conta o repórter Alvim Alveiro, no momento em que o meliante, em fuga, viu uma senhorinha com dificuldades de atravessar a selvagem Nossa Senhora de Copacabana. Condoído das dificuldades da anciã, Larapios, alcunha do dito-cujo, abandonou a fuga e os objetos que, não fazia muito, furtara da loja de roupas Gorduducha Sex, nossa anunciante — olá, dona Isabel, espero que a senhora receba tudo de volta. Bem, dizíamos, o vagabundo largou tudo e foi ajudar a velhinha a cruzar a avenida. Sua boa ação custou-lhe caro.

Nos escreve Pigorrilho Bartolomeu, poeta da serra, para dizer que ganhou a visita da musa. O resultado, ou parte do resultado, já que não podemos ler todas as quatrocentas e cinquenta páginas recebidas do ilustre trovador, é o seguinte: “A galhardia merencória/danação silenciosa do amor minúsculo/repousou sua lágrima no colo da amada”. Bom que ainda temos poetas como esse da serra. Obrigado, Pigorrilho Bartolomeu. Cai bem recitar suas trovas depois de molhar as palavras na cerveja Belgadulce, aquela de sabor sem igual.
Ouvimos, agora, uma canção que, dessa vez, quem a oferece sou eu mesmo, este locutor que voz fala, o “homem da voz” como alguns fãs me chamam por aí. E a música, tirada lá do fundo da cartola e cujos primeiros acordes todos já escutam, é esta. (Aumente o som, mesa.) “Only you can make this world seems right/only you can make the darkness bright/only you, and you alone, can thrill me like you do/and fill my heart with love for only you”. Como canta esse The Platters. Talvez, ouvinte do Catete, de Brás de Pina, da Tijuca, aguçe-o a curiosidade de saber a quem ofereço essa pequena obra-prima da canção popular americana. Digo-lhes: à minha mãezinha, dona Inaneia, que hoje comemora seus oitenta e sete anos.

Dona Inaneia sempre foi uma mulher sabida, por isso, em sua casa, nunca entrou outro arroz que não fosse o agulhinha Agulhão. Macio, saboroso, ele rende mais, muito mais do que qualquer outro. Duvida? Faça o teste. Ou não faça, pois, quando seus guris provarem o Agulhão, nunca mais aceitarão outro.

Morreu hoje, vítima de doença ruim, o ex-presidente da escola de samba “Surdo, repique, tarol”, senhor Finorácio Callado Tunes. Em sua homenagem, a escola fará, no domingo, feijoada de adesão. Em respeito, os surdos estarão mudos.

Estamos na linha com Mariovalda Codajás, guia espiritual da igreja “Sou de Cristo, Estou com Buda”, que nos fala sobre os caminhos para a juventude.
— Senhora Mariovalda, bom-dia, é uma honra poder falar com a senhora.
— Honrada fico eu em participar de programa tão importante.
— Pergunto-lhe — depois de refrescar a garganta com pastilhas Verdefrescor, as verdinhas fáceis de encontrar, aqui, ali e acolá — qual é, de fato, o caminho para a juventude.
— Não existe um caminho, estou certa disso, mas todos os existentes passam por Jesus e Buda.
— Isso soa estranho, senhora Mariovalda, pois, até onde sei, Cristo é Cristo, Buda é Buda.
— Sim, óbvio. Mas, na realidade, são, ambos, apenas encarnações da divindade maior.
— Ah, sim, agora entendi. Agradeço então, senhora Mariovalda, suas esclarecedoras palavras. Os jovens que nos escutam neste instante têm outra possibilidade para viver uma vida regrada.
O programa vai chegando ao final. Amanhã, às seis, “Acorde sem sono”, na voz de seu amigo, eu, Trúlpide Coelho, estará de volta com mais música, com notícias e entrevistas. Fiquem com Deus, Cristo e Buda e, depois do almoço, pasta de dente é Esmalte Verniz. ZY UNIDÊ – a rádio para você. Fui, deixando na agulha, em homenagem ao timoneiro Nelson Vasconcelos: "Amanhã, será um dia lindo".

29.11.11

Em Passos


Estou com os pés nos 50 anos. Na realidade, quando esta crônica for lida, já terei a metade de 100. Se é muito ou pouco, não me interessa. Sei que vivi muita coisa, tive ilusões, incertezas, decepções, alegrias, tudo isso, como é da vida e de todos.
Chego aos 50 sem nenhuma vontade de comemorar a data no estilo bolo e velas. Nunca gostei. Prefiro, no dia, jantar com a família. Isso não quer dizer, todavia, que não festeje. Festejo sim.
Desta vez, por exemplo, o início dos festejos se deu em Passos. Foram, depois de um ano longe da cidade, três dias de folia. No dia 11 do 11 de 2011, relancei, no Bule Verde — espaço cultural que é sonho mais que sonhado do Paulinho Buldog  —, meus três livros. Bem, para isso, o pessoal do Bule armou uma noite daquelas, com congadas, música com os Jerônimos, perfomance. Isso tudo se já não bastassem o espaço em si, as peças expostas nele e sua arquitetura. Não, mas não acaba aí. Além de amigos e parentes, estiveram lá para conversar comigo pessoas de alguma forma especiais para mim, entre elas (não fiquem com ciúme os demais, se não os nomeio), o Sebastião Borges, sapateiro das antigas, homem que carrega a memória da língua do sapateiro e outras tantas, as quais poderíamos chamar de história da cidade.
Praça da Matriz, foto própria (2009).

A festa continou no outro dia, quando eu e meus amigos de adolescência nos reunimos, pelo terceiro ano consecutivo, para celebrar nossa amizade. Talvez tenha sido a reunião com o menor número de pessoas, mas, ai, ai, ai, ninguém nos tira o amor que sentimos uns pelos outros. Este ano tínhamos a dor da perda do Piccirillo, mas conseguimos fazer dela um fato a mais para ganharmos força e seguir adiante. Tem de ser assim, e assim tem sido e será.
Olho para o final de semana e reafirmo o que talvez já tenha dito por aqui: há algo raro em minha cidade. Não sei a palavra que possa defini-lo nem ouso inventar alguma. Apenas digo que essa raridade é feita de coisas simples. Do sotaque. De nosso português não muito chegado a plurais. Do tempero nem muito quente como o baiano, nem muito frio como os sugeridos pelos nutricionistas zelosos com nossa saúde. Da música triste — não, nada de tristeza, não é isso, estou enganado. A música dos pretos das congadas nos carrega para a proximidade de Deus, talvez com muito mais eficiência do que as orações, católicas ou não.
Claro, nem tudo foram flores, e eu cometi uma rata e tanto. Fui pro microfone do Bule Verde recitar um poema meu, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, e engasguei, esquecendo seus versos bem no meio. Para tentar salvar minha pele, reproduzo o poema. E me despeço. Vou ali viver meus 51, que, dizem, é uma boa ideia.

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                                                                                  Para Bia Werneck
Meu coração mineiro
Ante a poluição de São Paulo
Sente, como quem traga traças,
A solidão sólida de correr aflito
Avenidas adentro, entre gigolôs e maníacos,
Procurando, procurando, looking for...
Teu nome em outdoor é lavanderia,
E sou a acidez da cidra crua,
Enquanto a rua espalha medo.
Atravessá-la e socorrer-me ou
Paralisar nádegas pulmões?

Meu coração mineiro,
Longe das montanhas, em desabrigo,
Treme, como gelatina gelada,
Ao deparar o olhar cego
Comendo com as mãos
Outros, outras, others...
Teu nome no disco é música,
E sou marginal moda de viola,
Enquanto a rua espelha o meu medo.
Atravessá-la e socorrer-me ou
Paralisar pés rins?

18.11.11

Nas Quebradas da Vida


Vamos, confesse aqui para o seu amigo, você já namorou em uma quebrada, não foi? Sua mãe não precisa saber, prometo sigilo, e seus filhos, se você os tiver, sabem o que é estar quebrado, mas não sabem o que é uma quebrada. Vamos, amigo, amiga, contem aqui no meu ouvidinho, sem medo, sua história.
Com o advento do motel, as coisas mudaram. Por um lado, ficou mais fácil namorar, por outro, não. Se chegar a um quartinho todo arrumado e desfrutar dos doces momentos da vida é uma beleza, chegar ao motel nem sempre é trivial. Às vezes, o casal tem o carro, mas está sem grana. Às vezes, tem o carro, tem a grana, mas a cidade é pequena e o porteiro é conhecido de um tio, do pai.
Nessas horas difíceis, dar uma meia-volta na modernidade e aceitar a única opção possível é o que nos resta. Pois, quando um casal fez o pacto do encontro, se não for no conforto de um quarto será no Fusca. Ah! O Fusca. Quanta ginástica, meu Deus. Muitos dos problemas de coluna que temos hoje se devem aos movimentos que fomos obrigados a fazer dentro de um Fusca. Por amor, é claro. Até o amor, que não tem contraindicação, tem efeitos colaterais.
Todos sabemos, entretanto, que as quebradas têm lá os seus perigos. Mesmo em cidades pouco violentas, sempre há um espírito de porco doido por assustar alguém. Comigo já aconteceu de ser a própria polícia a me pegar no flagra. Sorte que foram compreensivos e fizeram vista grossa à minha tentativa de corrompê-los — quer dizer, não aceitaram os meus minguados 5 contos — e nos mandaram, a mim e à namorada, dar o fora da área. Que não se repetisse aquilo outra vez, senão... Com outros amigos foi pior. Uns bandidos os deixaram nus com a mão no bolso — não é exagero. 
Se para o amor a quebrada foi deixada de lado, servindo apenas como a última opção, para coisas ilícitas, ela passou a ser o quente. A moçada corre aqui e ali para enrolar seus baseados; o lado A e o lado B de uma transação fora da lei marcam encontro no mais escondido dos lugares. E por aí vai. A quebrada mudou da água para o vinho; ou melhor, deixando a citação bíblica de lado: não é mais cantinho do amor, mas escritório de negócios escusos.
Todavia, a grande transformação da quebrada ocorreu lá em casa, já vai um tempo, quando meus filhos mais velhos tinham não mais que dez anos. Estávamos recebendo amigos. Os adultos ficamos na sala, sorvendo um bom vinho, beliscando queijos e pães. As crianças espalharam-se pelo resto da casa, pulando da cozinha para a sala, da sala para um quarto e deste para outro. Era uma farra medonha. Para nós, os coroas, estava tudo bem, as crianças gritavam, mas a gente conseguia botar a conversa em dia.
Numa certa hora, resolvi pegar um CD no meu quarto. Eis a surpresa: escondido entre o guarda-roupa e o armário em que estão trancados meus preciosos CDs, o que eu vejo? O Ken e a Barbie transando. Sim, caro leitor, estava lá o namorado da Barbie, aquela boneca bonitinha, mas sem sal, deitado sobre ela.
Tudo bem, os dois são só bonecos, e meu quarto não é um matinho providencial. Mas, nestes tempos em que o ser humano transa por computador, aquela foi realmente a mais explícita das cenas de sexo. Não tive vontade, leitores, de repreender os meus filhos. Pai de primeira viagem, não acreditava em repressão sexual pura e simples. Hoje, com filhos na casa dos vinte anos, não me arrependo. 
Não posso negar, entretanto, que fiquei pasmo, sentindo o mesmo assombro que nossos pais teriam sentido quando éramos nós que crescíamos. Talvez um pouco mais: precocemente, intuí que meus próximos passos seriam dados dentro de um túnel, dentro da escuridão que a estúpida responsabilidade nos impinge. Assim tem sido, e não sei avaliar se estou me saindo muito bem.

27.10.11

Autoajuda para iniciantes e assemelhados


Lance mão de uma bengala. Apoio para pernas vacilantes e verdadeira arma, a bengala, além de tudo, é um instrumento elegante.

Olhe-se no espelho até se dar por convencido de que é uma pessoa razoável. Acumula erros, mas, igualmente, acertos. São poucos aqueles que se quedam na dúvida defronte da chapa fria, pois, no mais das vezes, ninguém abandona a si mesmo ao léu.

Lustre os sapatos ou as sandálias. Se estiver de havaianas, preste bastante atenção nas unhas; se for o caso — e tendo em mente que vermelho alimenta a falta de juízo própria e alheia —, no esmalte.

Antes de sair, coloque livros sobre a cabeça e ande ereto pela sala. Não escolha livros pesados, na avaliação de uma balança, nem leves, em conteúdo. É aconselhável simular dois passinhos de valsa, cantarolando aquela velha canção.

Ligue para o telefone de um amigo, deixe-o atender, certifique-se de que de fato é ele, e então desligue sem lhe dirigir a palavra. O amigo, se tiver aparelho com bina, ligará de volta. Caso contrário, achará tratar-se de mais um erro desse sistema telefônico que está por um triz. O importante é você ter ligado sem errar o número. Sua memória está tinindo, ao contrário da de muitos da sua geração. Viva! No entanto, se a ligação cair em telefone errado, bem, o sistema telefônico anda mesmo por um triz.

Carranca do Museu de Artes e Ofício - BH/MG (foto própria)
Antes de ir para a rua, dê dois, e somente dois, gritos. Exagere. Faça de conta que é sua última palavra, mesmo não sendo feito de palavra seu grito. Agora sim, dirija-se à porta. Use as chaves para abri-la e, posteriormente, para fechá-la. Em porta trancada, não entra o olhar mosquito do vizinho.

Antes de descer até a portaria, vá, de elevador ou de escada, ao cume do prédio. Pode ser que a sorte lhe tenha reservado, ao fazer esse caminho, um encontro capaz de dar uma sacudidela em sua vida. No caso de morar em casa, troque portaria por portão. O caminho até o cume da casa, por sua vez — particularmente nas casas térreas, de um só andar —, não reserva surpresa alguma, esteja certo disso. Então, se morador ao rés do chão, pule essa parte, corra ao portão e seja o que Deus quiser.

 Museu de Artes e Ofícios - BH/MG (foto própria)


Cumprimente as pessoas de forma silenciosa, apenas movendo a cabeça. Com isso, não se corre o risco de cair na armadilha ardilosa da entonação da voz, invariavelmente cheia de segundas intenções, e, ainda, ajeitam-se as ideias soltas e mal arranjadas no interior da cuca.

Tome café com o dedo mindinho esticado. Esteticamente é aconselhável, mas não só isso. Em um momento de tédio, recolhe-se o dedinho, tornando, com um simples gesto, menos aborrecidas a tarde, o dia, quiçá, a vida.

Não alimente os santos com a danada da cachaça. Está provado que eles não gostam de sexo, droga e rock’n’roll. Além do mais, as cachaças andam pela hora da morte, ostentam grifes e ficaram caríssimas. Não desperdice seu dinheiro, nem arrume inimigos no reino do céu.

A cada seis horas, como se fosse antibiótico, tome uma atitude insuspeita. Se, por acaso, tal atitude não cheirar muito bem, trate de se afastar do local do crime com um assobio preso à boca. Escolha uma melodia de Wagner, compositor difícil e adulto, haja vista que parecer difícil e adulto poderá livrá-lo de qualquer desconfiança das vítimas do futum.



Por fim, uma crônica sem-noção é melhor do que má noticia, dessa forma, perdoe o cronista e seja feliz — ou não.

7.10.11

Um segredo para o Drummond


Para Angela Bittencourt, que sugeriu a crônica



Dia desses, uma “notícia” no site de humor G17 registrava a provável ideia do Governo do Rio de Janeiro de mandar internar as pessoas que costumam sentar-se ao lado da estátua do Drummond e conversar com ela.

Numa conversa com Otto Lara Resende.
Em suas colunas na Folha Carioca, Lilibeth Cardozo e Ana Flores já registraram suas conversas com o poeta agora em estado de bronze. No Facebook, muitos se confessaram igualmente íntimos do Drummond. Nunca falei com ele, mas já troquei ideias com outra estátua, a do Otto Lara Rezende, que fica na esquina da Jardim Botânico com a Pacheco Leão. Nenhum de nós, interlocutores das estátuas, é maluco.

Há duas maneiras de se ler a tal “matéria”. A primeira do ponto de vista da crítica ao governo, podendo, por omissão no texto, ser o municipal ou o estadual. Ambos, nesse tempo de urgência na arrumação da casa para as olimpíadas e a copa do mundo, são alvo fácil dos humoristas. E os políticos, aventurados como eles só, fazem por onde, seja não cuidando do bonde de Santa Tereza, um dos cartões postais da cidade turística, seja deixando cair sobre a vida pessoal, à medida que o particular se imbrica com o público, toda espécie de suspeita. Tendo os políticos que temos, não é de todo descabido aparecer do nada um decreto, ou mesmo uma lei, nos termos imaginados pelo G17. Pensariam assim o prefeito e/ou governador: não cuidamos do bondinho, é verdade, mas antes amealhar meia dúzia de mortos pelo caminho do que deixar esses perigosos órfãos e viúvos de Drummond exibirem sua loucura à luz do sol na praia mais famosa do mundo.

A outra leitura poupa os políticos, colocando-os na pretensa matéria apenas como a azeitona com caroço da empada nossa de cada dia. Nesta leitura sobressai a confiança, ou idolatria, que depositamos no Drummond. As colunistas da Folha, o bêbado de uma foto famosa, eu, algum dia, você, talvez, e outros, muitos outros já recorremos ou vamos recorrer ao colo em bronze do mineiro das terras do ferro, que está em Copacabana, como o verdadeiro anjo torto, à disposição de quem carece de consolo. Não basta abrir e ler seus livros, precisamos do contato fingido e teatral, que a existência sem vida de uma estátua permite.

Chacrinha, Drummond, Otto Lara Rezende, Pixinguinha, Noel Rosa, Braguinha e Ary Barroso são alguns dos que ganharam estátuas espalhadas pela cidade. Na maioria delas, os homenageados foram flagrados em momento de intimidade. Drummond sentado no banco da praia; mineiramente, de costas para o mar. Otto com o cotovelo na mesa do escritório, tendo à mão um livro. Noel pedindo ao garçom para levar a ele uma média que não seja requentada.

Sendo as estátuas de personagens mais ou menos nossos contemporâneos é justo que os visitemos. Que levemos nossos segredos para compartilhar com quem compartilhou de certa maneira os seus conosco. Artistas de modo geral falam de si o tempo todo, mesmo que não se possa ligar diretamente sua vida a sua obra. Contam-nos segredos de forma tão dissimulada, que um poeta, dos maiores, definiu seus pares como aquele que “finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. E completa: “e os que leem o que escreve, na dor lida sentem bem, não as duas que ele teve, mas só a que eles não têm.”

As estátuas, enfim, dão-nos à mão o que, sem elas, seria apenas sonho: o convívio amiúde com nossos ídolos. Por tudo que estes significam, falar com eles, mesmo em presença simbólica, não é loucura. Sendo assim, concluo que o G17 estava mesmo de pinimba com o prefeito e/ou com o governador. Aposto, e torço por isso, que humoristas continuarão na cola deles. E não só na destes, pois os políticos andam extrapolando o contorno do razoável. Merecem, portanto.






29.9.11

Uma viagem sob o sol, outra sob a lua


Depois de dias de muita chuva, vieram outros de plena estiagem. O calor voltou a pino, e a estrada levantava poeira à toa. Uma poeira fina, é verdade, mas, como eu suava, a camada de pó grudava na pele sem piedade. Meu cabelo ia pouco a pouco ficando nojento, duro. Quando voltasse para casa, mesmo tendo passado dias fora e tendo tomado regularmente o banho, minha mãe, sempre ambígua, murmuraria: — Nossa!
Lá ia eu pensando na volta mal a jardineira apontava para a subida que desemboca no seu Tuca. A estrada da Julieira terá uns 40 quilômetros de cabo a rabo, não sei, e não cortáramos mais do que um décimo de toda a distância, muito pouco até mesmo para o meu destino e o de meu padrinho, a Fazenda do Gordurinha, a 20 quilômetros de Passos. Pensava na volta porque sempre pensamos na volta — como uma espécie de lembrança de segurança, que não nos deixa perder do mundo e pelo mundo. Mas eu tinha, meu Deus, alguma coisa entre oito e dez anos e nenhuma noção de que somos cheios de escapes, subterfúgios. Eu pensava na volta e daí a pouco não pensava mais — só isso. Sonhava então com pomar, com bica de água fria, com a aventura de ter de ir cagar no mato. Planejava andar no Segredo, cavalo grande e manso. E tinha certeza de que meu padrinho, ali do meu lado, batendo seus dedos no apoio de braço do banco, olhando tudo e todos, me deixaria fazer aquilo que me desse na veneta: comer pão de queijo antes do almoço, não almoçar, chupar a fruta que estivesse no galho mais alto da árvore.
Jardineira fashion. Foto própria.
Dentro do ônibus, eu viajava no espaço, rumo à fazenda. E, de pensamento em pensamento, roçava distraído o beco inominável. Insisto: tendo aqueles oito, dez anos, não podia imaginar que existisse, dentro da gente, um oco, buraco negro que engole nossas brandas certezas.
Tendo passado outros dez anos, ia eu de novo dentro de um ônibus velho. Agora a estrada, embora poeirenta, era outra, e a distância, maior. Cruzava a Bolívia, desde Santa Cruz de La Sierra até Cochabamba e de Cochabamba até nem sei onde e de aí, por fim, até La Paz. Meu padrinho não ia comigo, dessa vez minha companhia era o Carlos, amigo chileno que cometeria o desplante de morrer com pouco mais de 40 anos. Apesar de meus 20 anos de então e de viver sempre um pouco bêbado e de mascar as folhas de coca que me ofereciam e de ter deixado um amor no Brasil e de estar lendo com indomada fúria (Cem anos de solidão – Gabriel Garcia Marques, Editora Record) e de ter medo do desconhecido que estava por vir e de ouvir música em um toca-fitas que era uma verdadeira geringonça; apesar de tudo, já tocara com as próprias mãos aquele oco imponderável. Aprendera que ele é feito de pau e luz, de ferro e brasa, de barro e sombra.
Uma jardineira na Guatemala. Foto própria.
Os motoristas desses ônibus são gente muito qualificada. O menino que tinha o cabelo cortado a mando da dona França (nuca quadrada) via, com encantamento, o homem que vinha muito sério lá na frente de repente subir na capota da jardineira e ir direto e reto na mala da senhora que desceria ali nos Meireles.
O universitário em férias sentia frio quando, no meio da madrugada, o motorista viu-se obrigado a parar o ônibus, que rateava havia algum tempo. Tendo pegado uma lanterna muito mixuruca e enchido a mão de ferramentas, ele desceu à estrada, esticou um forro de papelão no chão frio, deitou-se sob o chassi e começou a fuçar para ajeitar aquilo e poder dar prosseguimento à viagem. Havia crianças espalhadas pelo corredor do carro; Carlos dormia, tombado pelo excesso de chicha; o velho ao meu lado, meu fornecedor de folhas de coca que me caíam bem pra diabo, tinha uma única preocupação: manter viva a galinha sob sua jaqueta esfarrapada. 
Foi na noite boliviana, onde brinca o sono dos lhamas, que escrevi, sem lápis e sem papel, um livro esquecido logo depois.


(Esta crônica foi publicada, aqui mesmo, em 10/09/2005, sob o título de Dentro das Viagens.)

23.9.11

A casa do Beco dos Aflitos

Por volta de 1955, chegando a Passos, depois de viverem o início da vida de casados no Rio de Janeiro, meus pais compraram o sobrado no qual eu só entraria tempos depois, quando tinha meus cinco anos. Explico: de fato, logo após a aquisição, eles foram morar no seu novo ninho, mas dele se mudaram, não tardou muito, por um capricho de minha mãe. Segundo soube, a inquilina da casa de baixo era tão ranheta que mamãe preferiu deixar a própria casa e pagar aluguel em outra. Assim, nasci no endereço alugado, na Rua do Ouro, perto do doutor Breno, do Quinca Meu Genro, do Antônio Soares e do dentista Joaquim Getúlio — destruidor das bolas que craques ou pernas de pau faziam cair em sua propriedade. 
Não posso me esquecer de listar entre os vizinhos a família do Cícero Parenti, mais conhecido por Caolho ou, para ser rigoroso, Caôio, pai do Cunha. Pois o Cunha foi um menino levado da breca. Uma das travessuras do meu futuro amigo foi a de soltar o freio do caminhão de seu tio Tatão Lemos, pondo-o em disparada Rua do Ouro abaixo. Não fosse o muque da parede do quarto onde eu dormia, feita de matéria bruta e bom cimento, eu poderia ter partido desta pra melhor.
Conto isso para mostrar que, quando passei a morar no sobrado do Beco dos Aflitos, eu já era um sobrevivente. E acrescento: na mudança, com preguiça de fazer a pé o curto trajeto entre a morada nova e a velha, pulei na rabeira da carroça, meio usado à época para o transporte da mobília, e, pumba, levei um tombo. Meus pés ficaram presos a um estribo pendurado na traseira da carroça, e, com isso, fui arrastado pelos paralelepípedos, como, no passado, no chão de terra com cascalho, arrastavam-se os inconfidentes. Enfim, quem subiu as escadas e cruzou o batente da porta da nossa propriedade era um menino que havia resistido a um ataque e a um acidente que o deixara bastante esfolado.
A nova casa, aos poucos, tratou de curar meus traumas, fazendo questão de me ensinar que a vida não era tão ruim como minha experiência até então indicava. De fato, não sofri mais atentados, e as esfoladelas, aquelas e outras, foram sempre bem curadas com arnica ou mercurocromo ou merthiolate. (Soube-se depois que este antisséptico não passava de uma trapaça da indústria farmacêutica, o que não o impediu de curar minhas feridas.)
Fecho a tese: a casa do Beco dos Aflitos me transformou no que sou. Tudo começou quando fiz de uma das mangueiras — a da manga Carlota, trazida de outras terras por meu avô materno e sem igual na cidade — meu pouso de garoto em busca de privacidade. Passava a novela Meu pé de laranja lima, baseada no romance de José Mauro de Vasconcellos, e aprendi com seu personagem a dialogar com arbustos e outros vegetais. Hoje, depois de ter tido um breve romance com uma bananeira, falo abobrinhas apenas com repolhos e manjericões; logo, não posso me dizer íntimo nem dos nobres nem dos vassalos do reino vegetal. De toda forma, bom brasileiro, bato no peito e declaro-me amicíssimo do rei.
(Ah, como me perco!)
Tentava dizer e agora digo: no sobrado, descobri o encanto da solidão. Quando me meto comigo mesmo, invento, desinvento, acalento-me e, não raro, esqueço-me da vida cachorra, sempre pronta para, lá fora de mim, abocanhar meus calcanhares. Não me tenham como um retraído empedernido, pois não alimento casmurrice. A casa me enfeitiçou de outro modo com sua mania de festa, tornando-me sociável, às vezes até engraçado, pronto aos amigos.
Sejamos honestos, uma casa é feita de seus tijolos, de suas árvores, de suas cores, de seu telhado com goteiras — e do balde embaixo retendo as gotas da água mais pura, xixi de Deus —, mas também e, principalmente, é feita de sua gente. Na casa do Beco, essa gente começava por Joaquim e Haydée, meus pais. Passava pela Célia, minha segunda mãe. Ampliava-se com Dita, Sá Tereza, Sá Inês, Ana Germana e Nilzinha. Crescia mais um pouco com a visita dos tios Lozo, Goy, Vera, Expedita, Yole e Elin, e de muitos primos, em particular a Viveca e a Boinha, que passavam as férias na casa. Abria-se à presença constante da Celina, do Zé Luís, da tia Lurdinha, do Marquinho e dos vizinhos chegados. Embriagava-se dos jovens, que gostavam de rodear minha mãe. Alguma gente latia: o Zorro, o Tilo e o Nicolau. Outra, por viver no meio desse povaréu, aprendia com ele: eu e meus irmãos, Salazar, Teresa Cristina e Patrícia. Os sinais que recebemos foram positivos, com o que, na outra volta do relógio, otimistas e na comunhão com nossos maridos e esposas, povoamos sem exagero o sobrado com filhos.
A casa não existe mais. Minto: está lá; talvez permaneça como é hoje, não sei. Só deixou de ser nossa. Entregamos ao novo dono as chaves, mas não se abandona esquecida no silêncio das paredes uma história. Vendemos uma casa pela metade, conquanto o comprador tenha adquirido uma inteira.
Apartado agora do sobrado, ando na contramão do tempo até me ver de novo com as marcas de antigos arranhões, que ardem como nunca. Em vez de procurar livrar-me da dor, dou de ombro, ao mesmo tempo que sou tomado por uma sapituca de cantar; de cantarolar para ser exato. Hum, humhumhumhum, humhum, hum, humhumhumhum... Villa-Lobos, sim, Villa-Lobos. A arnica para curar os dodóis da minha alma é Villa-Lobos. E, quando ouço sua 5ª Bachiana, sou reposto na mangueira das mangas Carlota, onde sou amigo do rei, ainda que não o seja.