21.3.16

Crônica em linha pontilhada

Álvaro Campos, um dos habitantes na pátria Fernando Pessoa, escreveu “Poema em linha reta”, um de seus mais famosos. O poema começa assim: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, / todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” A essa visão heroica de seus conhecidos, Campos antepõe a de si mesmo (“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil”). Fazendo esse jogo entre vencedor (eles) e derrotado (eu) ao longo de todo poema, lá pelas tantas, Campos se questiona: “Arre, estou farto de semideuses! / onde é que há gente no mundo?” E acrescenta: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?” Apesar dessas perguntas, Campos diz que seus conhecidos, mesmo diante do fato de não terem sido amados por suas mulheres, de terem sido até mesmo traídos por elas, não se tornam ridículos, enquanto ele, mesmo sem traição sofrida, é ridículo e vil, “vil no sentido mesquinho e infame da vileza”.

Um sentimento parecido ao de Campos me toma diante das certezas tão absolutas de meus conhecidos (muitos deles amigos) em relação ao momento político por que passa o Brasil. De um lado, há aqueles que enxergam uma maquinação muito bem orquestrada entre a justiça e a imprensa de modo a jogar na boca do lobo o projeto de retirar uma imensa gama de desvalidos da condição de famintos. De outro, os que têm certeza mais que absoluta de que foi tudo um jogo de cena, que o governo dos últimos doze anos só pensou no enriquecimento de seus membros. Os primeiros pedem a inclusão de outros governos no faro da justiça (governos federais anteriores, governos estaduais de agora). Os segundos, no extremo, defendem que se esfaqueiem os partidos e os deixem descarnados na rua.

Eu, o vil ignorante, penso dentro do meu quadrado. As coisas vinham bem. Um governo deu uma ajeitada no capitalismo bárbaro brasileiro, domou a inflação (uma desgraça que ataca principalmente os mais pobres, sem defesa contra a perda de poder de compra da moeda), criou a lei que determina o controle dos gastos públicos, se desfez de empresas que a iniciativa privada lida melhor com elas (eu sei que há polêmicas sobre as privatizações, mas estou contando a história de uma perspectiva boa). O outro, aproveitando a organização anterior, atacou um problema ancestral, ferindo a pobreza e a fome. Uma evolução que poderia seguir adiante. Um governo mais preocupado com o funcionamento do capitalismo, outro impondo ao capitalismo a inclusão de todos. O espectro ideológico nessa sucessão se daria entre um partido mais à direita — mas que não ultrapassaria a barreira do centro — e outro mais à esquerda — que não chegaria ao extremo, aquele no qual se buscaria rever as privatizações e coisas parecidas. Um cenário dos sonhos.

A visão menos poliana é a que diz que o primeiro governo roubou, o segundo roubou, o terceiro roubou e o quarto vem roubando. O caos. Um caos que não encontra saída. Quer dizer, não encontra saída dentro da política e, por isso, esse caos vira uma coisa inqualificável, grande, muito grande.

Estamos mais para o primeiro ou para o segundo cenário? Me arrisco a dizer que o governo atual não é bom (o que não tira sua legitimidade), quer se olhe do ponto de vista de quem prepara o ambiente para a economia privada deslanchar, quer se olhe do ponto de vista de quem inclui os desvalidos (a inflação, volto a dizer, é uma sangria na vida dos mais pobres). Isso sem dizer do desastre de suas costuras políticas e da desfaçatez da oposição. Sendo assim, com um governo sem atitude e uma oposição que aposta no quanto pior, melhor, estamos mais para o caos. E, no caos, prolifera a voz dos que defendem a necessidade de governar com medidas de exceção, normalmente cerceando a liberdade. Em tese, dizem, por um tempo curto, na prática, por uma noite interminável.

A partir de minha ignorância e vileza pergunto: o que estamos fazendo com nossa democracia? Os não tão cheios assim de verdades, por favor, me respondam (ou me ajudem a encontrar uma resposta). Os outros, por favor, se forem responder, poupem minha mãe.

9.3.16

Brincando com o perigo

para FHC e Lula, com minha admiração ferida

Troca de mensagens entre ex-presidentes:
“E aí, Príncipe?”
“Aqui, entre livros, Metal.”
“Bicho, o bagulho tá quente, melhor a gente levar um lero, eu e tu, tu e eu.”
“No meu apê em Paris ou no seu no Guarujá?”
“Nós não temos esses apartamentos!”
“É verdade, a imprensa me confunde.”
“Melhor em praça pública, na calada da noite.”
“Vamos a Salvador, onde a Castro Alves é do povo.”


****

Em São Paulo, há uma festa para gays coroas. É um negócio bem comportado, um baile no qual os senhores dançam tranquilos e sem grande assanhamento. Isso me faz pensar em um similar para gatunos da terceira idade. A festa começa no cair da tarde, quando entram no recinto, quase ao mesmo tempo, EC e RC (não, por favor, não pensem em Erasmo e Roberto). Sentam-se na mesma mesa e, seguindo as regras do encontro, colocam as carteiras e as mãos à vista de todos. Conversam sobre as trivialidades da tarefa à qual dedicam suas vidas. Difícil, concluem, é roubar galinha quando se tem fome.

***

Wanderléa — sim, estou falando da cantora da jovem guarda, da que está sempre na companhia de EC e RC (Erasmo e Roberto, que fique claro) — é convidada para cantar num convescote na sede da justiça federal no Paraná. As autoridades estão cansadas com tanto trabalho, motivo pelo qual deram-se o direito a esse pequeno luxo. Wanderléa entra e, o que seria óbvio, mas ninguém se tocara, manda o velho e bom refrão: “Senhor Juiz, pare agora.”

***


Três dirigentes máximos das maiores empreiteiras do país estão trancafiados na mesma cela. Ou estiveram até que começaram a trocar farpas entre si e, dizem (quem? Ora, quem. Quem sabe?), logo depois, tapas. Tudo começou quando um deles afirmou que a ponte construída por um dos outros era um erro de engenharia de ponta a ponta, apesar de, ao contrário de muitas que os três se empenharam em fazer, levar gente e mercadorias de um lugar para outro. Sentindo-se ultrajado, o responsável pela ponte franziu o rosto e contra-atacou. A ponte estava lá, forte e transitável, o que já não se podia dizer do asfalto novinho da rodovia federal, na altura de uma importante cidade. Quem se sentiu ofendido não foi o dono da obra, mas o terceiro empreiteiro, que, no caso, havia sido subcontratado para pavimentar a estrada. O guardinha — designado para manter os olhos bem abertos sobre os meliantes chiques —, diante das discussões (e dos possíveis safanões), sugeriu ao chefe que os três fossem separados. Em seguida, pediu baixa da corporação. Ele ouviu dizer (de novo o zunzunzum inconcreto, boa palavra para o momento) que, em consórcio, os três haviam construído aquele presídio.

***


Em São Paulo, um menino chega atrasado à escola. A zelosa diretora, como castigo, deixa o irresponsável sem a merenda. O estudante se sente muito feliz, só assim não passará fome naquela manhã. Antes de entrar em sala de aula, confere o saco de biscoito Maria na mochila.

***


Busquem a verdade, só a verdade, nada além da verdade. Esse era o mantra do editor. Os jornalistas, recém-contratados depois do último “ajuste”, o famoso passaralho, escutam atentos, não têm coragem de pedir um aparte, de fazer uma pergunta. Quando o editor sai, um questiona o outro sobre o significado de tudo aquilo. O mais experiente — dois meses de redação — acalma os demais. A verdade, ele explica, é aquilo que interessa ao editor. Correm todos para a rua para ajustar os fatos.

***

“Senhor, por favor, — a moça se aproxima esbaforida, tentando entender um mapa, que ela vira de um lado para outro —, o senhor sabe me dizer onde fica esse país?”
“Sei direito não, filha, mas deve ser lá na esquina do desmancha-prazeres.”

***

“Mãe, eles bateram em mim.”
“O que você aprontou?”
“Tava só brincando.”
“Com cinquenta e tantos anos? Mereceu.”



7.3.16

O sequestro do sorriso

Para minha colega de trabalho Ana




No último carnaval, levei um susto e não foi com bate-bola ou com bêbado sem-noção solto pela rua. Eu gastava o tempo à beira da piscina. Estava sozinho e, como bom bisbilhoteiro, atento ao mundo de tantos desconhecidos largados a minha volta. Na água, duas mulheres conversavam em inglês. Meu domínio do idioma é pré-básico, sendo assim, nem me dei ao trabalho de esticar o ouvido e desfrutar da prosa alheia. Durante alguns longos minutos, olhei com discrição os gestos e expressões das duas. Caramba, não houve um sorriso, um menos que sorriso, um ricto insinuando alguma ironia ou uma simples afeição. Nada disso. Os olhos de uma se abriam em espanto ao que a outra dizia. E uma dizia e a outra respondia, e uma subia de tom e a outra diminuía, tudo em seca seriedade. Supus que pelo menos uma delas era estrangeira, talvez americana, e concluí que esses estrangeiros sofrem com gosto. Como é possível conversar tanto tempo sem desviar o assunto e meter nele um comentário sarcástico, bobinho, fresco? Nós, que sempre importamos as modas, chegaremos ao ponto de conversarmos horas a fio sem fazer uso de uma frase ou comentário que alimente um risinho, frouxo que seja?

Uma colega de trabalho do escritório de São Paulo me ligou. Levantou um problema, e, juntos, demos encaminhamento a uma possível solução. Despedi mandando-lhe um beijo. Ela disse então: “Alexandre, Alexandre, espere um pouco”. Daí tomou outro rumo e afirmou que, nós, do Rio, éramos mais leves, mandávamos beijos, brincávamos. Em São Paulo, ela sentia, as relações estavam muito fechadas, frias de fato. Eu disse, em tom de brincadeira, que o exemplo paulista espalhava-se por todos os cantos. Para ilustrar, contei-lhe as mudanças ocorridas na cidade em que nasci: na minha juventude, o cumprimento entre homens e mulheres se dava com três beijos (“três pra casar”), mas hoje a coisa minguara para um só beijo. Profetizei que em breve seríamos como os americanos, apertaríamos as mãos, se tanto.


Se eu estiver certo, ao aperto de mão seguirá um papo interminável e sisudo (mesmo dentro da piscina, em dia de descanso). Seremos apenas espanto, olhares furiosos, punhos fechados, rugas e disciplina. Nesse dia, o país poderá virar o jogo, tornar-se grande em todos os sentidos objetivos da grandeza (PIB estratosférico, assento nas comissões mais importantes da ONU, não sei mais quê). Nesse dia, os jovens terão o futuro dos deuses ao alcance das mãos. Nesse dia, os pobres serão uma fatia mínima da população. Nesse dia, teremos cruzado o deserto e chegado à terra da fartura. Mas nos faltarão o sorriso e o beijo de afeto. Nos faltará um pingo de nossa alegria inconsequente, carnavalizada até. Teremos sepultado o país que tanto surpreende os estrangeiros — de quem se rouba um sorriso. Nesse dia, ai, meus deuses, faça com que o Xandão seja apenas uma saudade ou, se não for muita pretensão, uns livros ainda disponíveis nalguma biblioteca ou, enfim a glória, um movimento — clandestino, se a situação exigir — pelo resgate sem fiança do sorriso sequestrado de um povo que sempre se empenhou em parecer fazer pouco caso de suas dores.

22.2.16

Sou Mangueira

Sou torcedor da Mangueira, o mais fuleiro de todos, aquele que grita aos quatro ventos o nome da escola, mas não conhece os sambas, não assiste aos desfiles. Acompanho, quando muito, a apuração e, se a Mangueira não ganha, digo que foi roubo e, se ganha, não digo nada, nem mesmo comemoro. Um torcedor desprezível, mas torcedor assim mesmo.

Por que comecei a gostar dessa escola? Um pouquinho porque gosto de manga e, mais ainda, da árvore que dá manga. Associação afetiva, portanto. Outro pouquinho porque, às vésperas de um carnaval, a Cuca, minha irmã, apareceu com um disquinho do Ataulfo Alves Júnior no qual ele cantava “Os meninos da Mangueira”, de Rildo Hora e Sérgio Cabral — “Um menino da Mangueira recebeu pelo natal um pandeiro e uma cuíca, que lhe deu Papai Noel, um mulato sarará, primo-irmão de dona Zica”. A música me levava a pensar na iniciação dos meninos ao samba. Meninos que eu antevia negros, de short e barrigudinhos, feito os meninos pobres de minha cidade, lá onde a herança africana aparecia mais nas congadas do que no samba, embora este também tivesse sua importância em escolas de samba como a “Malandro é o gato” e a “Passense”.

A razão maior dessa simpatia está ligada aos anos entre 1987 e 1997, período no qual trabalhei ao pé do morro da Mangueira. Convivi com a comunidade e percebi algumas de suas dificuldades — que iam, e decerto ainda vão, desde o acesso precário entre a rua asfaltada e o barraco, passando pela violência exercida pela polícia e pelo tráfico, até a falta completa do Estado, patente no abandono das crianças, que, cedo, bandeavam para o comércio ilegal das drogas ou, em posição menos desfavorável, se é que é possível, para o comércio informal de quinquilharias — e também de suas alegrias — entre elas, simples de perceber, o orgulho da escola. Aprendi a gostar dali e, por extensão, reforcei minha torcida pela verde e rosa.

De forma recorrente, Mangueira e Flamengo são tratados como similares. A escola e o time seriam os mais queridos do povo, os de maior torcida. Eu, um botafoguense, recuso essa abordagem, mesmo porque futebol e samba não se parecem em nada. Futebol é todo dia, os times disputam vários campeonatos. As escolas de samba vivem para um dia só. Ao longo do ano, claro, promovem festas — concurso de samba-enredo, ensaios nas quadras —, tudo para o brilho efêmero do tal dia. Nos estádios, as torcidas estão separadas, são touros bravos que, num descuido, chifram o outro, não se contentando com a simples vitória no campo. No sambódromo, não, todos estão misturados, dança-se, canta-se, namora-se. Portanto, se o amor que se tem pela Mangueira é popular, ele é de natureza distinta daquele que abraça o futebol, mais festiva que competitiva — ainda que a competição exista e sustente toda a (indústria da) festa.

Silencio minhas digressões. Abro uma cerveja hipotética e brindo a Mangueira e seu campeonato. Brindo Maria Bethânia, essa cantora que ao longo da vida, ao lado de sua música, fez questão de dar voz à poesia. Brindo a festa popular, mesmo sabendo que não há inocência nos arranjos comerciais que acomodam sem atrito dinheiro público, do bicho, do tráfico, de outras cidades, de outros países (democráticos ou não). Brindo, com muita inocência, o homem comum, que vive para o samba, que vive do samba, que se confunde com o samba. Viva!


Gustavo Pellizzon / O Globo / Arquivo: 25/07/2011

10.2.16

Crônica de uma palavra só

Gostaria de escrever uma palavra, uma única, que, isolada, se bastasse e fosse a crônica de hoje. Sei bem que não é tarefa fácil, pois qual palavra daria conta de, sozinha na briga — quer dizer, na crônica —, passar um recado amplo, quiçá uma mensagem sobre a qual se pudesse debruçar, refletir, ou um argumento capaz de estimular alguma discussão?

Aposto que alguns defendam a ideia de que a palavra Deus contém todas as demais e, sendo assim, se eu a escrevesse, pronto, teria escrito tudo. Verdade ou não, a palavra que me vem à cabeça é chinfrim e nomeia algo aparentemente inexistente. Quer dizer, a coisa existe, mas quase não se vê — se eu a vejo só de quando em quando é porque ela existe em estado de pouco, último passo antes de ser dada como exaurida.

Proponho um exercício: escolher uma palavra e pensar nela como uma crônica. Que tal hemisfério? Você abre a crônica e está lá a metade de uma esfera, palavra ligada à ideia de divisão da terra entre sul e norte, no corte estabelecido pela linha imaginária do Equador. Palavra que também tem uso na anatomia, nomeando os lados direito e esquerdo do cérebro. Ela sozinha, ocupando com pouco estardalhaço parte mínima do hemisfério norte da página em branco, poderia levar a várias suposições sem afirmar, de fato e de concreto, nada. O mesmo ocorreria caso a palavra fosse despertador, amplexo, ventríloquo, indumentária, fosfato, logopedia. 

Estou dizendo que uma palavra-andorinha só não faz uma crônica-verão? Sim e não. Poucas fariam. A que tenho em mente, sem ombrear com Deus, talvez pudesse ser uma delas. Sua força, desimportante que a palavra é, está no fato de carregar uma mensagem. Qual? De que, apesar de seus méritos, o passado chega esfarelado ao presente. Com isso, creio, deveríamos enterrar o sentimento nostálgico, tratando de, a partir do conhecimento profundo do passado, pagar nossas dívidas históricas — o acúmulo de injustiças cometidas ao longo do tempo. Olha aí a escravidão, ainda uma ferida aberta. Olha aí o maltrato ao meio ambiente, outra ferida aberta. 

Exagerei, sim, exagerei muito. A palavra, desconhecida de muita gente, não teria repercussão tão forte. Por um lado, como já disse, a coisa que ela nomeia circula em ambientes cada vez mais restritos e, por outro, graças aos regionalismos, aqui se dá um nome, ali se dá outro. Minha palavrinha, aceito, só faria sentido para mim. Logo, o fato de eu ter abortado a crônica de uma palavra só mostra que tomei com louvor uma lição do ofício de cronista, a de não falar apenas com meus botões ou para os meus botões. Mamãe, orgulhe-se, sou macaco velho, mas ainda aprendo.

Chego ao ponto em que preciso decidir entre deixar a conversa como está, sem pé nem cabeça, ou, enfim, dizer a palavra que quase desfruta de seus quinze segundos de estrelato, numa crônica pretensiosa e fadada ao fracasso. Dizê-la e sair de cena? 

Imagino que o leitor esteja aí — se ainda está — balançando a cabeça. Em alguns o gesto seria um pedido para que acabe logo essa droga, que já não lhe interessa saber de palavra alguma, nem isolada nem reunida. Nos outros, os mais suscetíveis, uma sinalização de que estariam dispostos a conhecer o que custo a anunciar para depois julgar minhas intenções. 

Como os últimos parecem mais amistosos, sussurro-lhes a palavra: gominha.



24.1.16

Infância

A Nilma Lacerda, que, ao falar da importância do mediador na alfabetização, tomou poeticamente como exemplo Graciliano Ramos.


Em "Infância", como não poderia deixar de ser, Graciliano Ramos conta como foi sua vida de menino, o que se deu na passagem do século XIX para o XX. Não só pelas mudanças tecnológicas e da organização social observadas entre aquele período e o atual — e mesmo entre aquele e a década de 1960, quando fui criança —, o livro nos leva a uma infância muito diferente da que conhecemos hoje. Graciliano nasceu e cresceu no Nordeste, região que já era sofrida ou ainda mais sofrida do que agora. Seca, pobreza, injustiça, pouco acesso a quase tudo — livros então — faziam parte do dia a dia do garoto que viria a ser um de nossos maiores escritores.



Graciliano devota particular atenção a sua luta para se alfabetizar. A gente talvez seja inclinada a achar que seus pendores (de futuro escritor) tornariam fácil a tarefa de dominar o beabá, mas, ó, doce ilusão, o que se vê em seu relato é um sofrimento só. Escolas precárias (um explicador, no mais das vezes, que se encarregava de ensinar em casa, juntando uns dois ou três meninos) e/ou uma pedagogia improvisada por algum parente. No caso de Graciliano, o pai tentou, e o “pai não tinha vocação para o ensino, mas quis meter-me o alfabeto na cabeça. Resisti, ele teimou — e o resultado foi um desastre.” Esse desastre é apontado do seguinte modo: “Afinal meu pai desesperou de instruir-me, revelou tristeza por haver gerado um maluco e deixou-me.” Como esse menino ferido em sua autoestima deu a volta na frustração e virou quem virou não está nas páginas do livro, o que está lá é um olhar que se depara com as velhas dificuldades e sobre elas reflete, sem deixar de rir de tudo.
Logo depois de o pai desistir das aulas, Graciliano não se fez de rogado e pediu a ajuda de uma irmã. Chega-lhe então à mão o seguinte texto: “A preguiça é a chave da pobreza — Quem não ouve conselhos raras vezes acerta — Fala pouco e bem: ter-te-ão por alguém.” E o menino fica intrigado: quem seria Terteão? Quem? A irmã não sabia, nunca ouvira falar dele. Graciliano, seco, ri de si, e eu rio dele, mas, sejamos sinceros: como é duro aprender, em particular o português, língua estruturada em gramática tão árida.
Graciliano ilustra outras “alfabetizações” pelas quais passou ao longo da infância. Uma delas foi a de aprender o que, afinal, é o homem. E aprender o que é o homem é conviver com fronteiras muito tênues, pois ninguém é uma coisa só. Falo isso do alto de meus mais de cinquenta anos, quando já vi demais, mas um menino aprender, melhor, viver as contradições inerentes ao ser humano é duro e muitas vezes nem é notado. Graciliano notou e notou muito bem.
O melhor exemplo de sua acuidade está no capítulo “Fernando”, que começa assim: “É uma das recordações mais desagradáveis que me ficaram: sujeito magro, de olho duro, aspecto tenebroso.” A partir daí, Graciliano conta que, antes de ter contato com Fernando, já conhecia a sua fama e, “se fosse tão mau como afirmavam, não existia patife igual”. Aparentado com coronéis, verdadeiros donos do mundo, Fernando fazia e acontecia, sem que nenhuma de suas atitudes violentas fosse punida, haja vista que a justiça não funcionava ali ou, por outra, a justiça se confundia com a vontade dos latifundiários e seus apaniguados. Graciliano cresceu temendo esse pau mandado dos poderosos até presenciar uma cena no comércio que seu pai mantinha. Os empregados tiravam mercadorias de caixas de madeiras e, distraidamente, deixaram uma tábua com pregos solta no chão. Fernando, que matava o tempo na loja, se levantou, pegou um martelo e entortou os pregos, mostrando-se preocupado com a possibilidade de uma criança ferir-se com eles. As certezas de Graciliano ruíram, e o escritor termina o capítulo assim: “Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés. Esqueci as torpezas cochichadas, condenei o dicionário vermelho que tinha bandeiras e retratos. Talvez Nero, o pior dos seres, envergasse os pregos que poderiam furar os pés das crianças.”
A lição aprendida por Graciliano, feito os devidos ajustes, está nos faltando na atual conjuntura, período no qual achamos que o outro é esse Fernando, até mesmo aquele histórico Nero, um monstro incurável.

11.1.16

Quem eu sou

Eu sou o capitalista que chora pela fome das crianças de Mali.
Eu sou a mulher que fuma charutos às escondidas da sogra.
Eu sou a sogra cega.
Eu sou o ciclista com ganas de atropelar a sombra dos automóveis.
Eu sou o que roubou a herança para comprar uma partitura original de Debussy.
Eu sou a bicha que cuida da segurança da vila.
Eu sou o motorista do carro que tem simpatia pela contramão.
Eu sou o paulistano para quem a cidade não vai além da minha rua.
Eu sou a mulher que dá ordens na cama.
Eu sou a freira cujas crenças nunca revela.
Eu sou o matador profissional de pulgas.
Eu sou o sambista de uma nota só.
Eu sou o desgraçado de bem com a vida.
Eu sou a norueguesa que planeja casar-se com uma guria guatemalteca.
Eu sou o vigarista notório que ainda tem medo do pai.
Eu sou o negro de alma branda.
Eu sou a jogadora de pôquer que aposta e entrega as calças.
Eu sou o poliglota que comete os mesmos erros em todos os idiomas.
Eu sou o poeta que prefere pudins a sonetos.
Eu sou o confeiteiro de endechas.
Eu sou o valentão que só tem mais um dente para perder em briga de rua.
Eu sou a mulher cuja beleza é meu silêncio.
Eu sou aquela que visitou o estuprador faminto.
Eu sou o velho sem idade.
Eu sou a santa que procura se manter incógnita.
Eu sou o seresteiro fora do tom.
Eu sou você que não se conhece.
Eu sou o garotão do Arpoador vivendo no Alaska.
Eu sou o policial que não brincou de mocinho e bandido.
Eu sou o Hércules domesticado.
Eu sou a amante do homem puro.
Eu sou o que em vão abastece de medo o corrupto.
Eu sou o crupiê de roleta russa.
Eu sou a mosca que vomitou na sua sopa.
Eu sou o rei nu, depois de usar o vaso sanitário e antes de se limpar.
Eu sou a rainha um pouco lesada de tanto pó.
Eu sou o melhor aluno do professor cansado.
Eu sou a professora do aluno castrado.
Eu sou o riso.
Eu sou a lágrima.
Eu sou um deus nos acuda sem dinheiro. Passo bem, apesar de tudo.

Com Mondrian na madrugada

Sem sono, zapeei até chegar ao Arte 1. Neste canal passava um documentário sobre Mondrian, parei para vê-lo. Naquele instante contava-se que, antes da Primeira Guerra Mundial, ele fora visitar o pai adoentado na Holanda. A guerra eclodiu, e o artista teve de ficar um bom tempo longe da França, onde vivia àquela altura de sua vida. Deve ter sido a referência à enfermidade paterna o que me fez lembrar-me de meu pai, de quando ele morreu.
Em minha memória armazeno inteiro e intacto aquele dia. Na tarde anterior, recebi um telefonema dizendo que meu velho havia sido internado. Intuindo o pior, corri à rodoviária e, depois de combinar com meu cunhado e minhas irmãs de irmos de carro para o interior de Minas, peguei um ônibus com destino a Belo Horizonte. Pouco dormi durante a noite. Pensava nas muitas viagens que fizéramos juntos, papai e eu. Irresponsável, ele entregava o carro nas mãos de um garoto de 14 anos — e dormia. No escuro, eu buscava me confortar com essas e outras recordações e me arrastava à boca de uma conclusão: a nosso modo, fomos cúmplices. Viagem com um tico de transgressão, nosso segredo.
Uma senhora, sentada na primeira fila, puxava assunto com o motorista, claramente uma estratégia para não deixá-lo dormir. Lá pelas tantas, ele lhe deu uma cantada, e ela reagiu indignada. A desavença me devolveu a meu pai, um sujeito que, apesar de ter nascido num mundo rural, fugiu ao estereótipo e não se tornou rude — rudes eram muitas pessoas de seu convívio, alguns parentes, outros amigos. O velho jamais cantaria uma mulher naqueles termos, jamais alteraria o tom da voz, como de fato nunca o vi fazer. Algumas vezes vi-o desmoronar, cair abatido, mas, mesmo aí, com serenidade.
Em Belo Horizonte, a notícia de sua morte veio nos olhos marejados de minhas irmãs, no abraço com que me receberam na plataforma. Elas e meu cunhado não tiveram uma noite boa, pois souberam da morte do velho na madrugada, talvez na mesma hora em que eu, sentado no ônibus, supunha que ele já estivesse morto. Cansados ou não, partimos para uma viagem — sempre uma viagem — de trezentos e sessenta quilômetros.
Nesse dia, do qual recordo todos os minutos, uma lacuna: não sei como foi meu encontro com minha mãe. Lembro-me do que ocorreu depois do impacto de entrar no recinto do velório: eu olhava atento o rosto de meu pai e observava sem pressa seus traços — fino no trato interpessoal, fino no desenho do rosto: um bom homem bonito. No que recupero o fio da meada, encontro minha mãe ao lado do caixão, de onde não se levantou. Quando nos vimos a sós, já em casa, ela me disse: “Amei muito seu pai, mas não vou com ele”. E aqui ficou por mais 11 anos, uma prova de amor a ele, a nós, seus filhos, e a nossas famílias.
Fiz piada com o Ezinho Joele. Fui e voltei da rua para ver se a família do meu irmão e minha mulher haviam chegado do Rio. Aceitei o convite da Neide e do Guido, preocupados comigo, para ir à padaria fazer um lanche. Devo ter comido uma bobagem qualquer, mas era a companhia íntima de meus amigos o que me interessava, era a confiança de saber que, no meio deles, eu poderia chorar. Não chorei nem ali nem quando o corpo de papai desceu à sepultura. As lágrimas vieram noutro momento de intimidade, minha com minha mulher, uns dez dias depois, quando toda a família se reuniu para o Natal. Choro curto, excesso de um homem seco.
A vida de Mondrian continuava na televisão. Um sujeito obsessivo. Seu ateliê reproduzia, nos móveis, os quadrados coloridos, os retângulos coloridos e o vazio (branco) que cobriam suas telas. Era rigoroso, gostava de jazz; vivia só, saía para dançar de par com alguma mulher tomada emprestada de um de seus amigos. Idoso, Mondrian mudou-se para os Estados Unidos, país no qual, finalmente, obteve reconhecimento e dinheiro. Ali sua pintura mudou, mas seus traços continuaram fiéis a figuras geométricas básicas.

Mondrian

Se meu pai fosse artista, não seria Mondrian. Tampouco Picasso ou Dali ou Schiele. Praticaria um realismo sóbrio e acadêmico, pintando seu mundo rural, seus bois, animais cujas qualidades ele reconhecia de longe, num primeiro e breve olhar. Nisso era uma autoridade. Disso não soube tirar proveito financeiro. Para ele, não houve um Estados Unidos.

28.12.15

Falando do zero

Em “Chico — Artista brasileiro”, documentário sobre Chico Buarque de Holanda, dirigido por Miguel Faria Jr., Edu Lobo, ao falar do processo criativo, cita Fernando Sabino, que teria dito que escrever é muito simples: o sujeito senta em frente à máquina de escrever — estamos num tempo antediluviano, que antecede o computador —, corta os pulsos e manda ver.

Sabino não exagera, a escrita é tarefa árdua por ser um ofício do qual nunca se sabe, no qual nunca se aprende, sendo assim, todo recomeço se dá a partir do zero. Não é como andar de bicicleta, consertar relógio, recitar a tabuada, dar o golpe do baú, essas ciências que cobram criatividade, memória, mas se baseiam principalmente na técnica. A escrita só faz uso da técnica em seu momento de depuração, mas aí o sujeito já cortou os pulsos, enfrentou o zero e deu seus dois, três, sei lá quantos passos.

Escrever exige vigor físico. Nem sempre o escritor tem grana para ter uma boa cadeira, com isso o desconforto descamba para uma dor eventual nas costas, depois para uma lombalgia crônica, sem contar as lesões por esforço de repetição, causadas pelo uso excessivo do computador. Ao escrever, a pessoa sua, perde o fôlego, ou seja, sofre os efeitos negativos da ginástica, sem que usufrua dos positivos: escrever não emagrece, não baixa o colesterol, não ajuda a controlar a glicose, o que, de fato, é uma injustiça. Quem escreve é potencialmente um forte, não fossem o uísque, a diamba, as noites em claro. Não fosse a infelicidade — irmã siamesa. Sim, qualquer um que se envolva com a escrita é infeliz, mesmo o humorista, ou principalmente ele, uma vez que tirar graça de tudo causa um dessabor tremendo.

Escrever é prazeroso, afinal de contas, saindo-se do zero, chegou-se a algum ponto com um texto bem escrito e comunicativo. É uma vitória. Uma vitória que — quando e se o texto for lido — é colocada à prova e pode causar frustração. Por exemplo, se ninguém gosta daquilo que lê — ficar frustrado por isso é um pouco mesquinho, aprende-se com o tempo, pois as pessoas são livres para gostar ou não gostar do que quiserem —, ou se ele é mal interpretado ou incompreendido. Quem está fadado a escrever vai colher a vitória ou amargar a derrota brevemente, haja vista que deve começar de novo, o zero está lá e lá não pode ficar, é preciso escrever alguma coisa a partir dele, empurrá-lo para o precipício, uma vez que o buraco é seu destino (de onde ele sempre volta).

Tarefa de Sísifo ou vício, a escrita é isso, com ou sem punho — primeiro com, depois sem. É um suicídio que se repete, êxito e fracasso simultâneos. Ao morrer na escrita, o escritor ressuscita. Renasce, melhor dizendo, já que não traz de sua pequena morte nenhuma lembrança. Sempre o zero, início e fim.


14.12.15

Lição de surrealismo (Este não é um texto surrealista)



“Pense que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva depressa, sem assunto preconcebido, bastante depressa para não reprimir, e para fugir à tentação de se reler. A primeira frase vem por si, tanto é verdade que a cada segundo há uma frase estranha ao nosso pensamento consciente pedindo para ser exteriorizada.” (Manifesto do Surrealismo, André Breton, 1924)


René Magritte
Enquanto teço o silêncio que roubei aos mortos, você borra sonhos e lustra angústias. Vamos engolir um sete a um sem eloquência. Vamos sem ir. Para ver se passa. Se passa a dor. Se a roupa se passa sozinha. Se o dia pássaro. Se o pássaro anoitece. Se a noite adoenta. Se a doença compensa. Se o pensamento cala a boca das sobras palavreadas ao longo da vala incomum da mudez.

Enquanto rego meu choro com caldo sulfúrico, você suspira feito amor perdido, cantando a liturgia turva do ocaso. Do ocaso de caso perdido. Das perdas petrificadas. Das pedras lanhadas no lodo. Do lodo esquecido na mão que o tentou deter. Da detenção dos matadores coxos da ingenuidade.

Preciso, masco ventre e mente. Quando não, desvario vazio, consumido em canudos de doce de leite. Você cata coquinhos na manhã lisa e sem brisa, e eu lhe pergunto se já esculpiu vento num soçobro. Quem inespera meus clamores?

Para mergulhar em tudo que nos é tão próprio e único, o empurrão de um baseado, o gosto ocre-duro do uísque, a dança vertical de um coro de violinos ou o segredo que só os oboés guardam quando soprados. Três perguntas secas descansam à escuridão: De quantos navios nenhuma tábua corrida? De quantos rios nenhuma alma varrida? De quanto dinheiro nenhuma felicidade comprovendida?

Chegarei, sim, no dia não. Chegarei a cavalo, cavalo montado em meu cansaço baio. Papai, tenho piolhos ainda. Mamãe, são caraminholas que coçam e caçoam. Nenhum peixe no anzol vergado pela leveza da água — isso que veio da lágrima do peixe, segundo Adriane Garcia. Pisceomasoquistas choram pelo único prazer de nadar nas próprias lágrimas. E nadam. Nado também. Nada. Na(da)dor. 

Agora, daqui a pouco, nunca. O tempo coleciona relógios famintos, cuja fome mal tiquetaqueia, berra. O berro atravessa a hora. Ao ir sem ir, a hora é uma luz vagarosa. Você paranda pelo sono dos sapatos e pisa em mim, capacho ao pó recolhido. Somos cágados, sujos filhos de um dos deuses desbraçados, esses mitos que crucifixam uns nos outros. Nós somos o prego. Nós somos o pau chutado da barraca. (E aproveitado na cruz. Também no credo.)

Isso não é tudo.

29.11.15

Outros tons de cinza


Era sexta-feira, e eu e o mundo estávamos entre uma tragédia e outra. Uns dias antes, em Mariana, uma das barragens com rejeitos da extração de minério havia rompido e jogado nos povoados vizinhos da cidade histórica — os mais atingidos foram Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo — uma quantidade de lama que soterrou tudo, dando cabo à vida de muitas pessoas. Mas isso era só o começo, apesar de a Samarco, dona da mineradora, afirmar, em suas primeiras declarações, que a única questão era o volume de lama derramado. Em não havendo toxicidade no lodaçal, prosseguiu a empresa, as consequências do desastre estavam limitadas àquele ali e agora. Não se eximiam de responsabilidade, mas afiançavam que a lama era do bem.

Aos homens, mulheres e crianças atolados no primeiro golpe somaram-se animais, vegetação, água. A lama, feito monstro de filme B, entrou pelos riachos, mergulhou no Rio Doce, passou por hidrelétrica, foi comer o mar (atualizemos Caymmi: é doce comer o mar). Enquanto cumpria seu caminho, as notícias passaram a dar conta de que não era só lama, restos tóxicos iam agarrados a ela. Um rio morto, como se tem dito que está o Rio Doce (que, aliás, já não andava bem do leito), acarreta mortes hoje, amanhã, depois. No Facebook, nos dias que se seguiram à avalanche, escrevi o seguinte: “Chamem um dactiloscopista, essa lama tem digitais (esquecidas nas mortes somadas aos dedos).” Fala de quem não se deixava e não se deixa convencer pelo discurso da empresa.

A outra tragédia viria ainda naquela sexta, o ataque à França. Mais de cem mortos. O país, na mira de radicais não é de hoje, além de tomar medidas de exceção emergenciais, tratou de entrar de arma e cuia na guerra, bombardeando, no dia seguinte, as regiões da Síria dominadas pelo Estado Islâmico. As mortes a serem contadas, nesse caso, não são apenas as desses dias, haja vista que tudo teve início muito antes, num caldo que vem sendo temperado por interesse econômico, fé obscurantista, corrupção e pelo simples prazer de exercer o poder ou a força do poder.


Lupicínio Rodrigues, em foto extraída do blog de Milton Ribeiro.

Mas era sexta-feira, e eu e o mundo ainda estávamos entre uma tragédia e outra. Eu corria da praia de Botafogo até a do Flamengo, no parque do Aterro — corria com um fone no ouvido, usufruindo da música, que me distrai do cansaço. Não estou muito certo do que ouvia, mas, depois da corrida, ao parar em uma lanchonete para beber água de coco, coloquei para tocar uma antologia do Paulinho da Viola. E ele foi cantando sambas daquele jeito tão próprio até chegar ao gaúcho Lupicínio Rodrigues. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor, meu senhor/nos braços de um outro qualquer.”

Ali, entre não saber o que aconteceria pouco depois em Paris e remoer sobre a destruição que a lama gerada pela negligência causara, continuaria e continuará a causar, Paulinho da Viola me jogou no colo do drama miúdo. O abandonado, no samba de Lupicínio, chega a dizer que não sabe se mesmo os de nervos de aço não reagiriam ao passar por aquilo que ele passou. Diz ainda que, quando revê seu amor perdido, é tomado por um desejo de morte ou de dor. Alguns iluminados seguram as pontas e fazem um samba, no entanto, um número expressivo de homens, sob pressão, costumam matar. Matam a mulher, matam o estranho, matam. No dia anterior ao que descrevo, um dos 100 mil habitantes da minha cidade natal desceu de uma moto, entrou numa padaria, atirou e matou o dono.

Lupicínio fez música a partir de sua fúria masculina, retratando um homem que, hoje, não deveria mais existir, mas que insiste em existir. Um deles quer ser prefeito da cidade do Rio de Janeiro.

Ao pensar em um adjetivo para encerrar esta crônica, quase escolho um da alçada do best-seller ao qual o título dela remete, mas não, seria grosseiro e gratuito. Assim, digo a vocês, amigos, estamos (somos?) podres — e a ponto de explodir.



16.11.15

Drummond, uma professora, poetas na plateia e a pele da poesia

Não sou de frequentar saraus de poesia, pois, a meu ver, a poesia pede intimidade e recolhimento. Mas, por favor, não tirem conclusões apressadas, escutem-me: sei que há pessoas que recitam magistralmente, com arte (uma arte a serviço da outra). A primeira memória que tenho de poesia vem de um compacto simples (disquinho de vinil) no qual Juca de Oliveira falava Drummond e Vinícius de Moraes. Para ser sincero, essa é uma segunda memória, a primeira são os poemas que circulavam em minha casa, entoados por meu padrinho, por meu irmão mais velho e pelos primos da idade dele. Mesmo sabendo da força da palavra dita, ainda prefiro, livro na mão, manter-me só e deixar os olhos correrem pelas páginas e, se tanto, a boca segredar-me aquele verso estupendo que não cala em si. 

Sarau imperdível: Sabadoyle, com a presença de Drummond.


Vencendo a minha resistência, neste ano participei, no dia 31 de outubro, de uma parte das comemorações do aniversário de Drummond. Sentadas num dos jardins da casa dos Moreira Salles, transformada em sede do instituto que leva o nome da família, umas vinte pessoas ouvimos uma professora do Colégio Pedro II, Mariana, se não estou equivocado, comentar “A flor e a náusea”, do livro “A rosa do povo”, lançado pela José Olympio em 1945. Sua palestra teve início com a leitura do poema — contra a minha expectativa, pessimista como de hábito, lido de forma sóbria (uma murmuleitura bem a meu modo, com a vantagem de a voz da Mariana não ser anasalada feito a minha). Depois contextualizou o poema, chamando a atenção para o fato de a publicação ter ocorrido quase no final da II Guerra Mundial (“O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.”). Acrescentou que Drummond, ao longo do tempo, foi se definindo em torno de uma militância não partidária (“Posso, sem armas, revoltar-me?”), tendo se afastado com certa rapidez (e rispidez) do Partido Comunista. 
Esticado seu pano de fundo, Mariana percorreu o poema verso a verso, estrofe a estrofe, especulando quanto daquele mundo convulso ecoara em cada um de seus trechos. O poeta criticava a coisificação (“Melancolias, mercadorias espreitam-me.”), sem, contudo, perder o compromisso rítmico. Com entusiasmo, analisou o verso: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” Ao não fazer uso de uma só exclamação, a falta de ênfase sobressai, tornando as coisas mais tristes ainda. Mariana, dispondo de não mais que uma hora, raspou essas questões e foi adiante: debruçou sobre o momento em que o poeta se mostra solitário (“Quarenta anos e nenhum problema/resolvido, sequer colocado./Nenhuma carta escrita nem recebida.”). Resumindo: a professora fez e aconteceu. (Professora feito a Mariana dá alento a nós que andamos imersos na desesperança dos dias atuais.)
Havia, entre os ouvintes, um poeta famoso, que, enquanto esteve entre nós, tanto quanto eu, não deu um uivo — apesar de ser, em grande parte do tempo, o foco da professora, que o reconheceu. Lá pelas tantas, quando ele já havia deixado a palestra, outro poeta se juntou ao grupo. Fumando, manteve-se afastado e igualmente mudo até o final, quando então, meio de gracejo, perguntou ao vento qual a cor da flor que nasceu no asfalto. O ponto central do poema é o anúncio feito pelo homem coisificado, solitário, cuja arma é um poema: “Uma flor nasceu na rua!” Flor descrita mais adiante: “Sua cor não se percebe./Suas pétalas não se abrem.” O tal poeta piadista queria instigar os ouvintes ou, quem sabe, nos convocar a enxergar a cor que não se deixava perceber.
A flor, na visão da professora, tinha muitas características alheias a ela. “Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é realmente uma flor.” Flor que, descobrimos no desfecho do poema, “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. De uma forma ou de outra, a flor, ao irromper, estava apta a cumprir seu papel e empurrar o mundo para um lugar no qual a coisificação e a solidão indesejada (tudo que afasta o humano de sua integridade) não encontrariam espaço. “Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu.”(1)
Um verso não foi comentado pela professora ou por qualquer um de nós, espalhados pelo jardim. Na descrição da flor, contrária em essência a uma flor, Drummond escreve: “e lentamente passo a mão nessa forma insegura.” Forma insegura? As formas não deveriam ser planas ou não? Simétricas ou não? Até mesmo frágeis? Que forma é essa que é insegura?
Um poema não pode ser desvendado por completo nem por uma professora dedicada a ele, nem por um poeta que abandone uma palestra cujo tema é aquele poema, nem por outro que adentre por ela como um tufão histriônico. É da natureza sedutora do poema ocultar-se sob medida. Em “Procura da poesia”, que, no mesmo livro, antecede o “A flor e a náusea”, Drummond alerta e provoca: “Chega mais perto e contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra/e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?”
O que um bom poema propõe — mostrar a pele, esconder o corpo — é um jogo erótico, talvez por isso goste tanto de lê-lo em silêncio, na cama, quando posso comê-lo e por ele ser devorado.
Do acervo da Casa de Rui Barbosa.




(1) O poema completo pode ser lido na Revista Germina.


2.11.15

Escrevendo e andando


Gosto de caminhar: areja o espírito. Faz bem a si mesmo quem leva o cérebro para tomar sol e depois o corpo sarado para ler/escrever/cogitar à sombra. A ciência já mostrou que mente e corpo são uma coisa só, em processo permanente de retroalimentação. Em nichos específicos, a resistência em aceitar o benefício recíproco entre o trabalho intelectual e o físico é alimentada com ironia, mas, apesar disso ou justamente por isso, há um monte de histórias mostrando que o exercício corporal, mesmo o mais tênue e indisciplinado, ajudou muitos pensadores/escritores/leitores.

Rimbaud.

Em “Autobiografia poética e outros textos” (Editora Autêntica), Ferreira Gullar pontua que Rimbaud foi um viajante — com notórias idas e vindas da casa da mãe, no interior da França — que encarou as distâncias caminhando. Quando partiu para a África, no último terço de sua vida (período nebuloso e pouco conhecido), ele cumpriu a pé o trajeto da França à Turquia, dali à Síria e, por fim, à África — caminho similar, ainda que em sentido oposto, ao que se percorre nesta diáspora contemporânea a que assistimos — quase sempre vexados — pela televisão. É verdade que, nesse período final, não se tem notícia de que Rimbaud tenha escrito (traficava armas), mas, enquanto fez seus poemas, seus deslocamentos não foram esporádicos. Da caminhada, concluo, alimentava-se o poeta — e, depois, o traficante.


Hemingway.

Rimbaud nada mais foi que um depositário dos ensinamentos de Aristóteles, criador da Escola Peripatética. Segundo o Aurélio, peripatético é aquilo “que se ensina passeando”, e era isso que o filósofo fazia: ao ar livre, indo de um lado para o outro, repassava suas lições aos estudantes. Por sua vez, Hemingway — e também Victor Hugo, segundo Mario Vargas Llosa, em recente artigo em El País — escrevia de pé, colocando os papéis em branco em um atril. Ele não andava, veja bem, mas seu trabalho de escritor, associado a sentar e produzir, fugiu do lugar comum. Isso sem contar que Hemingway era adepto da pesca, da caça, enfim, um cara que se mexia — e bebia atleticamente, o que não vem ao caso. Outro americano, Philip Roth, não só escreve de pé como caminha para burilar as ideias, se é que não caminha para encontrá-las.

Numa época em que eu não estava nada bem, passei a caminhar pelos sete ou oito quilômetros da lagoa Rodrigo de Freitas. Lembro-me de que, ao começar o exercício, eu me via refém dos tais problemas que me afligiam, porém, a partir do primeiro quilômetro, os pensamentos tornavam-se leves, e essa leveza acabava por dar um nó no baixo astral. Não raro, entre um passo e outro, surpreendia-me um clique “poético”. Eu não suportava encarar a folha em branco sem que pudesse, de cara, emoldurar nela o título do que, incerto, escreveria dali em diante. Numa dessas caminhadas surgiu “Relato das taturanas”, título de um conto de meu primeiro livro, e, de quebra, vislumbrei o próprio conto.

Ao longo do tempo, alguns escritores — quem sabe desejando compensar o sedentarismo — têm criado personagens que caminham. Fiando apenas na memória, listo Geraldo Viramundo — o louquinho de “O grande mentecapto” (Record), de Fernando Sabino, perdido em andanças por Minas Gerais —, tantos errantes na literatura de João Gilberto Noll, uma andarilha de distâncias curtas, Alice, de “Quarenta dias” (Alfaguara/Objetiva), o mais recente romance de Maria Valéria Rezende, e, ainda, Don Quixote, verdadeiro atleta montado em seu Rocinante, ou o ladrão de Jean Genet — à maneira de Rimbaud, cortando a Europa a pé.

Estou feliz. Levantei a bola da relação entre o trabalho intelectual e a atividade física, listei exemplos — meio besta, um meu — e, assim, desenhei um honesto painel sobre a questão. Posso me preparar para finalizar esta crônica com bafos de ensaio (de banda de garagem agarrada a dois ou três acordes). Então, para concluir...

Opa, espere, ouço vozes.
O quê?
Onde?
Quem?

Ah, é ele, o diabo que me habita. Vem dizer que Rimbaud morreu de um câncer que brotou em uma de suas pernas — logo amputada depois de o poeta que não mais escrevia voltar, já doente, mas ainda a pé, da África para a França. O coisa-ruim vai além e me pergunta o que acontece ao personagem de “Hotel Atlântico” (Francis), de João Gilberto Noll. Perde a perna, lembro-me bem. Pergunto ao chifrudo o que afinal tem a ver o fato de um andarilho acabar morrendo de uma ferida em suas pernas. Evasivo, ele se cala. Aproveito seu aparente desânimo e afirmo que a morte é um acidente. No caso de Rimbaud e no do personagem de Noll, um acidente com toque elevado de ironia, pois suas pernas eram a fonte da qual eles emergiam e se firmavam na vida.



Rimbaud. foi da Europa e voltou para ela. Muitos estão fazendo o contrário, com ganas de voltar para suas casas.