16.6.25

Mil nomes nenhum

Eu não vejo a Janaína há tanto tempo que não posso dizer se continua com aquele sorriso acolhedor e olhar curioso. Já o Bão, com quem me encontro cotidianamente, não mudou nadinha e acha tudo maravilhoso. Mas, rapaz – eu o cutuco –, e essas guerras, essa carnificina infantil, esses donos do mundo destrambelhados da vida? Ele dá de ombro e responde categórico: “Bão, isso está fora do meu alcance”. Assim é ele, e talvez por isso eu o veja, finja que não o vejo e nunca dou publicidade de seu nome.

Quando falo em Janaína, sim, ela existe, é minha prima, mas seu nome é outro – sei bem qual é, mas não vou dizê-lo. O sorriso e o olhar dela são daquele jeitinho mesmo, ou eram há uns vinte, trinta anos, última vez que a vi. O mundo é cruel. Já o Bão, esse não existe, é uma mistura de figuras que encontro por aí. Para o sucesso dos doidos extremistas, é preciso que haja os que batem palmas para eles. O Bão – também chamado de Isentão, embora de isento não tenha nada – é o sumo dessa turma.

Vou ser bem sincero: acredito nas coisas e pessoas inexistentes. Personagem de livro, desse fico amigo. Feito aquele menino do “Tia Julia e o escrevinhador”, do Vargas Llosa. Cara legal, pô. Quer ser escritor e, como é comum aos dezoito anos, se apaixona por uma mulher mais velha – não tem quarenta e é tratada pelos familiares como um estorvo, um absurdo –, que também se apaixona por ele. Além disso, tem um bom amigo, é bem aceito pelos tios e pelos avós (até o surgimento da tia, que não é exatamente tia), vira e mexe bota panos quentes em conflitos na rádio em que trabalha, inclusive naqueles nos quais os patrões estão envolvidos. Não é um garoto legal? Aos dezoito eu era um pouco assim, é verdade que com umas doses a mais de canjebrina. E aquela mulher do “Syngué sabour –– Pedra de Paciência”, do escritor afegão Atiq Rahimi? Numa das intermináveis guerras internas no país, o marido se feriu, requerendo assim todo o tempo da esposa. Ao lado do homem sem nenhum sinal vital além de respirar e se sujar, ela vai se soltando, falando – será ouvida? – tudo aquilo que a gente imagina não ser comum a uma afegã falar: conta de sua insatisfação sexual ou de como idolatra a tia que se tornou prostituta. Não que eu tenha me apaixonado por ela, mas, puxa vida, que mulher espetacular.Agora vou contar uma vantagem. Um amigo meu – milagre sem santo, fato sem nome – me escreveu dia desses uma mensagem enigmática. “E a Elisa”? Meu Deus, quem seria? Não demorou tanto assim para a ficha cair: é uma personagem de meu conto “Chorão”, escrito recentemente. Meu amigo caiu de amores por ela. Não fosse o compromisso de escrever minhas crônicas quinzenais para a Rubem, eu aposentava o escritor que sou, pois fui laureado com um Nobel particular. O dicionário agradece a minha boa vontade com palavras esquecidas. Canjebrina, laureado: regozijai!

Há um ponto nisso tudo que não sei se vocês estão percebendo. Não guardo nomes de personagens. Nem dos meus. Conto outro caso similar ao da Elisa. Uma de minhas irmãs (não digo como foi registrada ao nascer, embora haja uma história interessante em seu batismo) me liga – não havia essas modernidades de zap e zup e sei lá mais quê – e diz as mesmas palavras do meu amigo: “E o ...?” Ela falou a alcunha (dicionário, festejai!), eu não sabia de quem se tratava, até que fui severamente repreendido: “É o seu personagem do ‘Todas as fichas’, ora essa”. Agradeci e me desculpei. Vejam que terrível, voltei a me esquecer do nome ou do apelido dele (razão das reticências um pouco acima), um sujeito legal e, não por isso nem apesar disso, viciado em jogo e prostitutas. Conheço uma pessoa parecida. Ela, além dessas características, às três da manhã, recém-chegada da rua, fritava um bife que muitas vezes me arrancou da cama e me fez descer as escadas para filar a boia. Sei bem como se chama, mas não digo como é nem lhe faço um outro batismo.

2.6.25

Crianças na rua

Em 1980, ano em que cheguei ao Rio, foi lançado o disco “Raíces de América”, gravado a partir de um show do grupo homônimo, formado por músicos argentinos, chilenos e brasileiros, com participação especial da atriz Isabel Ribeiro e direção de Flávio Rangel. Provavelmente foi uma das minhas irmãs que, na casa de nossos pais, no período das férias, me apresentou o som que, bonito de muitos jeitos, me marcou principalmente pelo trecho do poema do argentino Armando Tejada Gómes (aqui reproduzido sem que eu saiba de quem é a tradução) declamado por Isabel. 

Há uma criança na rua

A esta hora, exatamente, há uma criança na rua.

É dever do homem proteger o que cresce,

Cuidar para que não tenha uma infância dispersa pelas ruas,

Evitar que naufrague seu coração de barco,

Sua enorme vontade de pão e chocolate,

Caminhar por seus países de bandidos e tesouros

Pondo-lhe a esperança no lugar da fome.

 

De outro modo é inútil ensaiar na terra a alegria e o canto,

De outro modo é absurdo porque de nada vale se há uma criança na rua.

Importam duas maneiras de conceber o mundo:

Uma, ser alguém como as outras pessoas ou

Arrancar cegamente dos demais a bolsa.

E a outra, um destino de salvar-se com todos,

Comprometer a vida até o último náufrago.

 

Como se pode dormir de noite se há uma criança na rua?

Exatamente agora, se chove nas cidades,

Se desce o nevoeiro gelado no ar

E o vento não é nenhuma canção nas janelas,

Não deve andar o mundo com o amor descalço

Levando um diário como uma asa na mão.

 

Trepando nos trens, provocando-nos o riso,

Golpeando-nos como um anjo de asa cansada,

Não deve andar a vida, recém-nascida, já lutando,

A meninice arriscada a um pequeno ganho,

Porque então as mãos são dois fardos inúteis

E o coração, apenas uma má palavra.

 

Eles esqueceram que há uma criança na rua,

Que há milhões de crianças que vivem na rua

E uma multidão de crianças que cresce nas ruas.

A esta hora, exatamente, há uma criança crescendo.

 

Eu a vejo apertando seu coração pequeno,

Olhando para todos com seus olhos de fantasia,

Percorrem e olham para o homem rico,

Um relâmpago forte cruza seu olhar,

Porque ninguém protege essa vida que cresce

 

E o amor se perdeu como uma criança na rua.



Se o garoto de dezoito anos que eu era nunca foi insensível à dor humana e não se preocupava apenas com o próprio futuro, ao ouvir esse disco se convenceu de que não se poderiam ignorar as questões sociais, mais ainda, era preciso olhar para além de Passos, Rio de Janeiro, Brasília. Havia um mundo maravilhoso, mas também sofrido, ao nosso lado. Alguns anos mais tarde, eu dividiria um apartamento com meu irmão Gonzalo, boliviano, e, a partir de nossa amizade, conheci muitos argentinos e chilenos principalmente. Meu mundo se abria, e nele entravam outros grupos musicais – o Inti-Illimani, por exemplo – e Borges, Cortázar, Benedetti, essa turma da pesada. 

O “Raíces de América”, em particular o poema na voz de Isabel Ribeiro, voltou à minha memória porque, quarenta e cinco anos depois de minha chegada a esta grande e complexa cidade, constato que a infância continua desprotegida, e não só aqui. Crianças são alvejadas nas favelas de nossos países e exterminadas, por bala ou fome, na Palestina, nessa guerra em que o que parecia uma resposta a uma agressão se transformou em um massacre sem fim por parte dos que comandam Israel e seus aliados. 

Em uma publicação em rede social, a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho compartilhou um post de Sami Abu Salem, um “pai de filhos pequenos” sobrevivendo aos horrores da guerra. O texto dele, em tradução chinfrim, começa assim: “a arma mais feroz que Israel usa contra Gaza é a fome”. Depois, em itens, registra tudo que um faminto é capaz de fazer (dois exemplos: “a fome transforma as pessoas em monstros”, “a fome destruiu muitas paredes da vida, da piedade, da fraternidade, da generosidade, do tempo e dos laços sanguíneos”), terminando assim: “a fome é mais perigosa que foguetes”. 

Sebastião Salgado, que nos deixou no dia 23 de maio, disse numa entrevista que uma fotografia começava bem antes dela e terminava bem depois. Que na apreciação de suas fotos enxergaríamos, para além das pessoas ou animais, das paisagens ou construções nelas registradas, o próprio Salgado, sua vida, a família, a escola, tudo que o cercava. Acho a imagem de uma beleza sem fim, e a trago para cá na esperança de que tamanha consciência artística e humana supere, se possível brevemente, a maldade cultivada por esses homens orgulhosos da guerra.

19.5.25

Novos dinossauros

Quase caí da cadeira quando soube que um amigo de meu caçula pretende ser dublador. Essa é uma função – profissão, bico, trabalho, seja lá que diabo isso possa ser (imagino que para uns seja uma coisa e para outros, outra) – em extinção. Há na TV anúncio de um banco com um ator americano falando português. É a voz dele, “dublada” por uma inteligência artificial, esse meteoro que destruirá os novos dinossauros: além dos dubladores, programadores, funcionários de bancos, professores de línguas... poetas. Sim, até nós, brutos. Lamentar, lamentamos, mas como evitar esse trem que desce do céu em velocidade alucinante?

Thiago Germano, autor do ótimo “O que pesa no Norte” (editora Moinhos), escreveu uma crônica contando de uma crise de criatividade pela qual está passando. Empacou na escrita de um livro que já consumiu quatrocentas páginas. Quer dizer, por sorte não gastou folhas de papel e, consequentemente, árvores, mas está usando memória de computador e, por isso, se entendo bem, algum minério que é a base dessa memória (escrever sempre causa danos ecológicos). No meio do bloqueio, ele se deparou com gente se oferecendo para escrever livros por uma quantia ínfima, obviamente recorrendo à inteligência artificial. Thiago foi então àquela que está à mão de todos nós e pediu que continuasse seu romance. Ele gostou do parágrafo que lhe foi entregue, embora, a seu ver, coubessem algumas modificações. No fim do imbróglio, resolveu continuar seu romance – escreveu um parágrafo em substituição àquele de autoria da IA –, sabendo estar metido em uma guerra contra um mundo cada vez mais utilitário. Escrever, como sempre e mais agora, é uma excentricidade à qual se dedicam os lunáticos. Os escritores, poetas como disse há pouco, estão condenados a, quando muito, viver num parque em que estarão reunidos os últimos dinossauros. Tomara que o Estado nos dê bons e amplos espaços e alguma criança nos jogue pipocas, mesmo sendo proibido.

Vou contar um troço pr’ocês: acho isso de IA tão grande, tão complexo, que nem penso nela – modo alienação ligado. Imagino que, no rabo dessa geringonça, virão mil maravilhas (sou otimista), apesar dos estragos, que não serão pequenos (não sou besta). Mas, cá entre nós, no campo da escrita, continuarei catando meus milhos em algum teclado – já foi o das máquinas de datilografia manuais e elétricas, agora é o dos computadores e celulares, não sei o que nos reserva o amanhã – e escrevendo minhas besteirinhas. Sou pouco pretensioso de um lado e tão insignificante de outro que acho que essa dona nem vai se dar por mim. E eu não vou me dar por ela. Quer dizer, desfrutarei de suas benesses – na medicina, na economia, na uva que partiu – e levarei umas cacetadas de seus malefícios.

Estou errado e meio, bem sei. Mas, gente, cheguei a um ponto da vida em que consigo manter apenas um foco de atenção. O meu tem sido escrever à moda antiga, e assim continuará sendo. Não estou me entregando à velhice, longe disso. Impulsivo como um jovem, planejo dançar um tango em Tuvalu, na (última) maré alta antes de a ilha ser varrida dos mares.

5.5.25

Tipos da cidade

Motoqueiros

Não gostam de engarrafamento. Preferem colocar a cabeça a prêmio a usar e desgastar seus capacetes. Conversam com quem vai na garupa e, se não há ninguém, falam sozinhos. Assobiam sofrências em ritmo lento, incompatível com a pressa com que costuram no trânsito. Na dor, gemem como o cano de descarga de suas máquinas.

 

Anotador do jogo do bicho

O que anota os jogos da turma lá perto de casa é um senhor encurvado. Ele arrasta o corpo como se os bichos que oferece pesassem sobre seus ombros. Fuma, fuma desesperadamente. Por estar atento ao celular, no qual registra as apostas, não olha para a frente. O porteiro do prédio em cima da loja de hortifrutigranjeiros chega religiosamente entre as seis e as seis e dezoito da manhã, quando saio para a caminhada. Os três que vivem pendurados no balcão do pé-sujo não são pontuais, ou, sei lá, jogam muitas vezes e, por isso, em vários momentos estão sentados ao lado do anotador. O senhor do jogo do bicho recebe todos do mesmo modo, encurvado, os olhos fixos na telinha. Talvez só conheça a voz de seus fregueses, se é que se pode chamá-los assim.

 

Atendente do mercado

Arriscaria a dizer que ela mora longe do trabalho. Arriscaria mais: seus filhos passam parte do dia na escola – quando não há tiroteio – e outra em casa, aos cuidados de ninguém, quer dizer, uns cuidando dos outros. Afirmaria ainda que a atendente do mercado é tranquila, quase digo feliz, mas seria exagero. Ninguém é feliz, sabemos disso. Não seria ela a exceção.

 

Seguranças

Primeiro é preciso saber se fazem parte de uma milícia, que nem sempre é uma estrutura organizada, nascida nas barbas do Poder. Os seguranças do meu bairro são, no mínimo, um bacalhau, um jeitinho que os comerciantes dão para contornar a impossibilidade – ou a má vontade – do Estado em proteger o baixo clero do capitalismo. Me desculpo pela sociologia de esquina, vou desembarcar dela, meu negócio é outro.

Um dos seguranças tem o nome daquele jogador que cai muito – além de promover bacanais, infringir os códigos ambientais na região de Angra dos Reis e ter cara de quem está debochando de nós, o que de fato está. O homônimo do boleiro não parece nem ser dos que caem – acreditam os comerciantes do bairro que ele derrube, é um zagueiro pelo qual a bola passa, o atacante, não – e, se participa de bacanais, é de algum de pouca pompa, digamos que de circunstância. Tem os olhos tristes e enfezados.

Outro tem cara do tio que não deu certo na vida. Sempre está com uma lata de refrigerante nas mãos e encara as pessoas certo de que aquele olhar é suficiente para impedir qualquer atitude suspeita: roubo, assédio, escândalo. Como disse, tem cara do tio perdido, que vive de favor na casa da mãe. Daqueles que chamaríamos num canto para lhe dar um toque assim: “Ô, velho, procure ajuda”. Tios desses costumam perder as estribeiras quando chamados à realidade.

 

Bela

Meu bairro – imagino que aconteça em todos os lugares, até mesmo em cidades nem tão grandes – viu aumentar o número de moradores de rua nos últimos tempos. A leva atual não parece ser de quem não conseguiu – ou não quis, pois esses existem – viver dentro das possibilidades disponíveis: emprego, quando há; bicos, quando se descola; família, quando se tem. Os novos estão sequestrados pelo vício. São os cracudos, zumbis que não amedrontam, mas nos causam dor, pena, sensação de impotência. O fato é que são na maioria jovens, e, sendo jovens, mesmo abatidos fisicamente, estão com a libido acesa. É aí que aparece a moça miúda, do mesmo modo chupada pela droga, mas transformada em deusa pelo infortúnio. Ela sempre troca o moço igualmente esquálido com quem anda de mãos dadas pelas calçadas, quando não pelo meio da rua.

 

Jovem poeta

Ele não sai de casa, não tolera gente. Escreve movido por nada.

21.4.25

A cocada do Bruxo

Igor Calazans é um poeta de Niterói e vive no Rio. É também um animador cultural, oferece oficinas de poesia e organiza saraus, entre outras coisas. Enfim, é um cara desprendido que gosta de juntar poetas os mais distintos. E junta.

Ultimamente ele organiza dois saraus. Um, no Baratos da Ribeiro – sebo e ponto de eventos culturais fincado no coração de Botafogo –, é um tributo a algum poeta, o "Ode ao Poeta". O encontro funciona assim: Igor distribui poemas da pessoa homenageada, e aqueles no público que se sentirem à vontade escolhem um para falar ao microfone. Quando o homenageado está presente, ao final lhe é feita uma pequena entrevista, e o espaço fica aberto para que ele leia seus poemas e outros que o influenciaram ou que são de seu agrado. É comovente.

O outro é o Epoché – termo grego, cunhado pelos céticos, em oposição ao dogmatismo –, um sarau mais tradicional, no qual poetas são convidados para declamar dois ou três poemas. O surpreendente é que desfilam poesias de toda sorte – sem dogmas – e os ouvidos se adaptam às mudanças de rumo. Há algum tempo, a reunião tem sido no Capitu Café, situado no último endereço de Machado de Assis.

Quando anunciei que estaria no sarau, que aconteceu no dia 12 de abril, minhas amigas curitibanas, as arquitetas e cronistas Fernanda (Morishita) e Mônica (Moro Harger), me avisaram que estariam no Rio e iriam me ver. E foram. E não couberam no recinto, tendo de ficar na calçada, por sorte, em mesa servida pelo café. Com elas estavam o filho da Fernanda, o Theo – que eu já conhecia de papel, por ser a figura central do livro de crônicas de sua mãe, "Cartas para Theo" (Editora Verso) –, e outras amigas, pessoas agradáveis que esticavam os assuntos sempre de forma leve e inteligente. Me dividindo entre os dois espaços, entrei e saí da área do sarau várias vezes (no outro dia, me justifiquei com os poetas que acabei por não assistir, o motivo era justo e retratava o sucesso do evento).

É inevitável, nesses nossos dias documentais, que a gente se fotografe. Para escritores, o Capitu é um sonho. À porta há uma escultura do antigo e ilustre morador, um convite para rodeá-lo e fazer selfies e não selfies a perder de vista. Na escultura, Machado está sentado à mesa. Numa das mãos, uma xícara vazia de café, na outra uma caneta-tinteiro que se aproxima do papel pousado bem à sua frente. O Bruxo toma notas. Mais na ponta da mesa, um pote que se parece com um balde de leite pequeno – na certa, o recipiente da tinta – e um pratinho com doce. Sugeri que não era doce nenhum e sim um prensado de maconha. Rimos, tiramos fotos. Numa delas, um homem aparecia assim no canto, e eu disse que na edição da foto a gente o tiraria. Mais risadas, inclusive do futuro excluído.

Esse homem, Alviño seu nome, se aproximou de nós, o celular aberto em uma foto. Queria tirar de nossa cabeça a ideia espúria do conteúdo do pratinho, aquilo não era maconha, mas uma cocada. Aí virou zueira, bagunça, brincadeira sem fim. Ele então nos contou que é o autor da escultura. Mais ainda, dentro do café, a série de desenhos do criador de Capitu e Braz Cuba é também dele. Ou seja: ao lado do sarau, uma exposição bem bonita. Viva Machado, que, descubro, se amarrava numa cocada.

Em seus últimos dias do décimo ano de vida e já se preparando para subir a ladeira da adolescência, Theo dormiu nos braços de um tio, o que levou minhas queridas cronistas de Curitiba para casa antes da esticada a um tradicional restaurante do Cosme Velho. Lá, nesse dia tão intenso e fraterno, formou-se uma imensa mesa recheada de poetas. Uma beleza só, promovida pelo nosso Calazans.

7.4.25

Meu Deus particular

 Se não estou lelé da cuca, falei do Milton Nascimento em uma crônica recente. Volto a falar dele, leitor e leitora, agora por conta do documentário “Milton Bituca Nascimento”, dirigido por Flávia Moraes. O filme acompanha a parte internacional de “A última sessão de música”, a derradeira turnê do menino nascido carioca e crescido mineiro.

Na viagem, Bituca confessa seu amor à mãe, desfruta de momentos de carinho com o filho, canta para plateias europeias e estadunidenses, tudo entremeado por depoimentos sobre sua dimensão artística. O filme carrega a ideia de que ele teria apresentado o Brasil ao mundo. É verdade, mas Carmen Miranda, Tom Jobim, João Gilberto e tantos outros o precederam. Milton, por sua vez, percorreu uma trilha especial, tendo sido abraçado por Wayne Shorter, Herbie Hancock, afluentes do grande rio chamado Miles Davies. E continua sendo, agora, por exemplo, por Esperanza Spalding, baixista e cantora de jazz com quem gravou um CD (“Milton + esperanza”) indicado ao Grammy, cuja cerimônia de premiação esnobou o senhor de oitenta anos, com saúde debilitada. Uma vaia aos organizadores.

Que som é aquele, de onde veio? A essa pergunta, repetida em depoimentos e na narração, ensaiam-se várias respostas, inclusive a sempre lembrada influência mineral, das montanhas. Não me lembro quem fala – Chico Amaral (músico mineiro), se não me engano – que o melhor a fazer é fechar os olhos e se deixar levar pelo mistério, sem querer entendê-lo. Com as mãos em movimentos circulares, Quincy Jones sugere uma benção especial de Deus em Miles Davies e Milton Nascimento. Acredito nessa distinção, mas isso não os impediu de cortar bons dobrados em suas vidas terrenas. O vício do primeiro, a doença do segundo. O racismo, nos dois casos.

O depoimento do Wagner Tiso, parceiro desde os tempos de meninos em Três Pontas, é comovente. Desculpando-se, ele chora – a moça na fila de trás da minha no cinema faz eco: “eu também estou chorando”. Bom, e eu também. O Chico Buarque, outro octogenário, ao assistir àquele vídeo famoso – Milton vocalizando o início de “O que será?”, ao lado de um Chico encantado –, experimenta a mesma emoção, expressa num leve piscar de olhos, uma forma de não deixar as lágrimas caírem. A gente está no mesmo barco, bambino.

Há pelo menos um momento de poesia absoluta: Criolo e Mano Brown, um sem saber o que se passa com o outro, falam a letra de “Morro Velho”. Criolo, sereno, se agarra à beleza da amizade entre o preto e o branco, o rico e o pobre. Mano Brown, contestador, não esquece a luta de classe, delimita bem que, no fim, é o preto na lida e o branco no comando, dono de tudo. Há que se dizer que as duas coisas estão na letra do Milton. Essas leituras tão distintas acontecem com Hamilton de Holanda solando a melodia no bandolim. Nessa cena, o filme toma outra dimensão, são três caras que se chegaram ao Bituca bem depois do Clube da Esquina, das andanças mundo afora, das parcerias com Elis, Chico, Caetano e Gil. É forte. Assim como é forte o final, Milton ouvindo e regendo Angela Maria cantar Babalu. Presenciamos a reverência sentimental do homem ao seu berço musical, as cantoras.

Corro o risco de cometer uma heresia, mas vamos lá: o texto narrado por Fernanda Montenegro é fraco, repetitivo. E a narração da atriz – que me marcou em “Eles não usam Black-tie” e nos recentes “Ainda estou aqui” e “Vitória” – me pareceu excessiva.

Fui à estreia de “A última sessão de música” (na saída, Lenine flanava pelo estacionamento assobiando “Meu menino”, música da Ana Terra e Danilo Caymmi, gravada no Clube da Esquina 2 e não cantada no show). Não sou chegado a ninguém, não fui agraciado diretamente com um convite vip, mas estava lá. A história é longa, não a contarei, o que interessa é que eu e uma grande amiga fazíamos parte da plateia. O show me jogou nas cordas, emoção que deixou de ser momentânea, transformando-se em perene: ficou como memória de minha querida amiga que em breve nos deixaria.

É nascimento.

É vida, “vida, que amor brincadeira”.

Não poderia deixar de ser morte.

Milton é meu Deus particular.





22.3.25

Março dançante

 Este março de 2025 tem sido agitado. Festas de aniversário, inclusive do meu caçula e da editora Patuá no Rio de Janeiro, lançamentos e encontros casuais com amigos do peito. Sem contar o carnaval. Não é sempre assim e, aliás, esse ritmo poderia ser mais intenso se meus quatro sobrinhos marcianos (é assim que se fala?) morassem no Rio, pelo menos no Brasil. Dois estão na França, um na Austrália e outro, que vai ser papai já, já, no Canadá. Eu os saúdo de longe.

Ao mesmo tempo tem sido um mês intenso de leituras, quer dizer, de leituras de originais. Leio um livro com um conjunto de textos curtos, que ora são crônicas, ora contos (alguns dando voz a animais, quase fábulas, ou fábulas sem moral da história), ora ensaios, ora artigos de opinião. Um olhar amoroso sobre o mundo do Moacyr Godoy Moreira, escritor com quem mantive intensa troca de e-mails há um tempo, antes de nos perdermos. Fui reencontrá-lo em fevereiro, também numa festa, a da Patuá em São Paulo.

Justamente essa leitura me fez pensar em como somos atingidos de tantas maneiras por ela. Antes de continuar com o Moacyr, cito um vídeo do escritor Décio Zylbersztajn, de sua série no Instagram chamada Bibliotopia. Umberto Eco teria dito que há diferentes leitores, Décio complementa: também diferentes leituras: a compartilhada, a releitura, a de textos de múltiplos sentidos, muitas outras. Cita a escritora polonesa Olga Torkaczuk, que lamenta o fato de as leituras contemporâneas serem muito ao pé da letra, literais demais (ou, digo eu, literárias de menos). A partir disso, me ocorre como uma frase – ou verso, no caso de um poema ou de uma letra de música – pode ser poderosa.

Volto ao Moacyr. Um de seus personagens confessa que em “Sol de primavera”, música de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, seus olhos se enchem de água ao ouvir “abre as janelas do meu peito”. Acho isso bonito, quase (ou hiper) religioso. Tenho uma coisa parecida com “eu sou o cheiro dos livros desesperados”, de Caetano Veloso em “Reconvexo”. Aliás, essa é a música que me tira da cadeira (obviamente depois de ter encharcado as palavras e desenferrujado os pés) nas festas. Virou até uma marca da família.

Há algum tempo, pilotava a churrasqueira na festa de minha filha –  uma dezembrina –, e o piloto de churrasqueira, vocês sabem, jamais passaria no teste do bafômetro. Pois bem, quando tocou essa música, larguei espetos e picanhas quase prontas, olhei a turma e disse: “Renata, vamos dançar?”. Renata é uma amiga de minha filha, dessas que a gente adota na família expandida que construímos na vida. De lá para cá, quando a música toca, ouço: “Renata, vamos dançar?”, nem é preciso que ela esteja na festa. Quase sempre a pista enche, e nela rodopio todo serelepe.

Mas, veja bem, enquanto todos olham meus pesinhos claudicantes, meus quadris animados, minhas mãozinhas erguidas ao céu, ninguém percebe, à moda do personagem do Moacyr, meus olhos nublando ao pensar nos livros desesperados. Não são todos, mas são os meus e os de muitos amigos.

10.3.25

Oscar e escola de samba, nem ligo

 Se há duas coisas que, em graus variados, não me pegam são desfile de escola de samba (um pouco) e entrega do Oscar (bastante). Apesar disso, me vi às voltas com ambas durante os dias de Carnaval.

As escolas que gostaria de ver, Mangueira, da qual sou torcedor, e Portela reverenciando Milton Nascimento, eram as últimas a se apresentar em seus respectivos dias. Sem atraso, entrariam na avenida às duas e meia da matina. Nessa hora, meu bem, durmo o sono dos justos e o dos injustos. Com o desfile de cada escola disponível aos assinantes, bem acordado, no meio da tarde, assisti aos dois e, de quebra, ao da Beija-Flor.

A Mangueira me comoveu. Aquela bateria simulando um tiroteio, som que faz parte da paisagem de quem vive nas favelas cariocas, e depois saltando para o funk e o jongo, para, por fim, chegar ao samba tradicional, e tão próprio da Estação Primeira, foi um acontecimento. Um dos jurados – justo o que foi meu vizinho – achou por bem tirar um décimo da Verde e Rosa. Deve ter suas razões, não posso discutir, mas os outros três cravaram a nota máxima, e a “Surdo Um” (apelido carinhoso), sob o comando de Taranta Neto e Rodrigo Explosão, ficou com dez. Numa leitura política que tem marcado a escola, a comissão de frente destacou os “crias”, como são chamados os jovens da favela, ao dar a eles lugar de potência e criatividade, uma contestação à perversidade dos que os veem como problema. Bem, os jurados não gostaram, e a comissão não faturou a nota máxima.

A Portela mexeu comigo quando escolheu Milton Nascimento como tema. Isso tanto é verdade que anunciei – quer dizer, comentei com dois cupinchas – minha troca circunstancial da casaca verde e rosa pela azul e branco. Esperei por um espetáculo brilhante, porém, confesso, não captei muito o sentido do que foi para a avenida. Mas isso não deve ser problema da escola, eu é que não entendo nada de desfile. De todo jeito, ver o Bituca sentado no trono abençoado por Paulinho da Viola, Monarco, tia Surica e tantos outros já vale um Carnaval e duas missas. Sabendo ainda que um dos carnavalescos é filho de um amigo meu, botafoguense ainda por cima, todo o meu envolvimento com essa invasão “mineira” só fez crescer.

A Beija-Flor, odiada por tantos – talvez por ser, junto da Imperatriz Leopoldinense, a que mais ameaça o domínio da Mangueira e da Portela –, com um samba-enredo fácil de aprender, sustentou a beleza das fantasias, a alegria dos integrantes, a emoção da despedida de Neguinho da Beija-Flor como puxador de samba e, o mais importante, a homenagem a um personagem da escola, o Laíla. Campeã sem contestação. Opa, eu não contesto, mas, entre as próprias escolas, há insatisfação e acusação de falcatrua. Isso é lá com eles, meu samba é no pé. Me corrijo, no sofá, vendo o desfile gravado.

O Oscar assisti ao vivo e inteiro. A tradução simultânea funcionou bem, e isso facilita a vida de um monoglota. De todo modo, com boa ou má tradução, a cerimônia é chata. Alguns momentos são bonitos – destaco o discurso pé na porta dos diretores (Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor, Hamdan Ballal, uns palestinos, outros judeus) de “No Other Land”, vencedor de melhor documentário –, mas as piadas são pífias, quando não equivocadas. Ao dizer que sua mulher achou uma boa ideia o marido sumir, como no filme brasileiro, o apresentador se mostrou tão desconectado de “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que deveria, um pouco depois – aconselhado ou pressionado pelos produtores da festa –, pedir desculpas. (E eles lá pedem desculpas?) Enfim, o brasileiro ganhou merecidamente como o melhor estrangeiro e temos de comemorar e esperar – sem muito otimismo – que isso se traduza em mais recursos para o cinema nacional. Só para lembrar: em Berlim, "O Último Azul", do pernambucano Gabriel Mascaro, levou o Urso de Prata, o Grande Prêmio do Júri.

O ganhador do Oscar, “Anora”, de Sean S. Baker, é uma salada de frutas. Começa com uma pegada “Mil tons de cinza”, passa por uma comédia pastelão e, a meu ver, salvando-se de um vexame, tem um final no mínimo sóbrio – amiga minha o viu como um desfecho machista; entendo, mas não concordo. O Carnaval deu o tratamento que o filme merece, parodiando uma clássica marchinha, que agora é assim:

 

"Se você fosse sincera, oh, oh, oh, Anora

Devolvia o nosso Oscar, oh, oh, oh, agora.”

 

Mário Lago, autor da música, lá do infinito, ergueu um brinde. Fernanda Torres, atriz de ponta e figura simpática e engraçada, deve cantar a versão no escondidinho de seus quartos de hotel, onde tem vivido os últimos meses.

24.2.25

Enfim, o verão

 O tão esperado verão chegou.

Tiramos da gaveta a roupa de praia, o protetor solar, a sede de cerveja, caipirinha e pilantragem e vamos tratar de desfrutar dessa deliciosa estação.

Encontrei minha amiga Solange e, mal falei seu nome, ela me interrompeu, não se chama mais Solange, está brigada com o sol. É agora Ange, mas prefere ser chamada de Anja. O que te aconteceu, menina? Ela resolveu, no calor do meio-dia, refrescar-se nas águas do mar. Três horas depois, voltou para casa cheia de hematomas, como se houvesse levado uma surra. Vai entrar em demanda contra a prefeitura por não instalar ar-condicionado naquelas areias escaldantes. Revoltou-se quando tentei lhe explicar que isso seria impossível e me mandou ver o que fazem os árabes no Catar. Não sei o que fazem, e ela tampouco esclareceu. Fechou a cara e me deixou a ver navios. Aliás, navios lotados, em debandada do inferno.

Mas isso é pouco diante do ocorrido com um casal amigo. Começaram a se beijar, a se tocar, a se querer com toda a luxúria do desejo, reforçada por uma segunda intenção talvez até mais forte: ficarem nus para amenizar o calor. Não funcionou. Resolveram então sacar a pele. Nem assim. Se desfizeram das carnes, preservando, no início, o coração. Mas como dele também emanava um outro tipo de calor, o dispensaram igualmente. Esqueléticos, sem suas formas de mútua atração, não se diferenciavam um do outro. Assim, não chegaram aos finalmentes, convencidos de que seria ou masturbação, o que não condizia com a idade, ou necrofilia, o que apontaria uma psicopatia grave.

Vi com meus olhos umedecidos – não de lágrimas, mas de suor – um jovem derreter-se. Caminhávamos pela Atlântica, ele indo pro Leme, eu, por motivos que não vêm ao caso, fugindo de lá. À medida que nos aproximávamos, ele se liquefazia e começava a evaporar. Quando cruzamos um com o outro, só lhe restava de concreto o pensamento. Um pensamento, aliás, em alto e bom som. Não reclamava do calor, mas desses tempos em que nem podia mais ser machista em paz.

Diante de tanta bizarrice, pensei em salvar o mundo. Nosso presidente poderia convidar o homem-laranja para desfrutar de um verão tropical. O convite seria politicamente incorreto – oferecendo ao visitante mulatas, escravos para transportá-lo em liteiras, índios capazes de dar, em troca de espelhos, caça, ouro, mulheres –, impossível de ser recusado por tipo desprezível como o convidado. Logo que chegasse ao paraíso, correria para a praia e, em um segundo, iria de laranja a vermelho, de vermelho a roxo, de roxo a esturricado, de esturricado a, como diriam os jornais do dia seguinte, uma coisa parecida a uma lenha sendo levada pelas ondas frias de Copacabana.

Não posso me perder em fantasias, então volto a pensar com serenidade nas delícias do verão. Nas palavras do Foguinho Inimigo, meu colega de copo, bons tempos eram aqueles em que o calor carioca, em seus piores momentos, se assemelhava ao do Saara. Agora, quando fazem essa comparação, é porque deu uma refrescada, bateu um vento. Estou pronto para discordar, quando Ian, nosso estimado garçom, deixa a cerveja na mesa depois de encher nossos copos. Pô, menino, essa tá quente. Impossível, ele rebate, ela saiu da geladeira vestida de noiva, a ponto de congelar. Três passos entre o freezer e a mesa transformaram o vinho em água vulcânica. O Anticristo está solto.

Ah, como é bom o verão! Que assim continue.

Derrubemos florestas.

Tiremos petróleo da foz da bacia do Amazonas.

Ergamos edifícios.

10.2.25

Finícios

Não, meu leitor, não quis escrever fenícios, de quem quase nada saberia falar. Inventei uma palavrinha (não o alfabeto), se é que inventei, haja vista que não há muita criatividade em juntar o fim e o início.

Essa pequena pérola de gosto duvidoso me ocorreu ao me dar conta de que ainda em janeiro já havia perdido um primo, visto a padaria que frequentei por vinte e oito anos ser fechada e, como se não bastasse, assistido ao Trump voltar à presidência dos EUA, agora mais poderoso e sem a preocupação de esconder seus pendores autoritários, fascistas.

Meu primo está morto. Ele – preciso contar a vocês, por favor, escutem, mesmo sem interesse – nasceu em São Paulo e jovenzinho começou a passar férias na minha cidade natal. Nos tornamos amigos. Eu o invejava não só por ele ser bonito, mas por também ser desembaraçado. Uma vez, fomos tomar um ônibus e, mal chegamos à rodoviária, ele já conversava com uma menina e, mais que isso, dava uma mordida na maçã que ela comia. Seriam Adão e Eva não fosse a minha presença nem um pouco divina, mas cerceadora. Esse dom o levou a trabalhar com turismo e viver na Bahia, onde se deu nosso último encontro, em 2016. Me ocorre outra lembrança: no final dos anos de 1970, andávamos pela avenida do Contorno, em Belo Horizonte, e discutíamos como seriam os fogões do ano 2000. Não guardo ideia de como chegamos a esse assunto e me pergunto por que não apaguei tamanha insignificância da memória. Um palpite: o afeto é alimentado de miudezas, de verdadeiras bobagens. 

Devo confessar que a padaria não era de excelência. Estava mais para inconstante. No dia que acertava a mão, produzia um francês de me fazer esquecer o da padaria do Neném, a da minha infância. Mas não raro a receita desandava. Acontece. Seja como for, quando uma empresa fecha, histórias tristes se insinuam. Pode ser que o dono não tenha resistido à concorrência. Pode ser que a família em conflito tenha renunciado ao negócio para não cultivar a rixa entre os herdeiros. Certo, certo mesmo, é que um fato desses aumenta a fila do desemprego. Alguns talvez logo se ajeitem, outros, não. No caso da padaria, o que será da moça da chapa, faladeira e simpática? Do moço do café e do suco de laranja, mestre em infernizar a vida da chapeira? Do Russo? O Russo, por onde ele anda? Já não estava na padaria havia tempo. Por que não perguntei por ele? Quando uma padaria é fechada, nos descobrimos menos atentos do que imaginamos ou piores do que parecemos ser.

Quanto ao Trump, bem, ele em si já é ruim – figura grotesca, de ideias torpes etc. –, mas pior ainda é que ele abre espaço para os seus iguais ou seguidores mundo afora. Digo uma verdade, palavra de sábio, praticamente de um fenício inventando o alfabeto: a civilização não evolui, os boçais, que ocupam os poderes, não deixam.

Ah, ia me esquecendo. Ainda em janeiro perdi minha paciência. Quer dizer, minha paciência com o verão.

27.1.25

Atores

Nas relações pessoais, namoro, por exemplo, não é raro um dizer que chegou ao limite, que não tem um minuto de paz. É um exagero, quem não tem um minuto de paz é a população de Gaza, os favelados desse Brasil imenso, também os de nossos países vizinhos, africanos de todos os quadrantes, ucranianos, sírios, bem, a lista é grande. Somos superlativos ao expressar nossas pequenas falências e, do mesmo modo, as alegrias miúdas. Sou a pessoa mais feliz do mundo, comi o melhor pão de queijo do universo. Enfim, as palavras nos servem para nos levar além de nós.

Ney Latorraca, em entrevista à Bruna Lombardi – se não estou enganado –, respondeu que não era bom de cama, mas de texto, sim. Uma namorada, naquela altura vivendo em Portugal, de vez em quando ligava para ele e dizia: fala, Ney, fala aquelas coisas, fala. Já o Ney Matogrosso, ao se aproximar dos cinquentas anos, respondeu a um repórter que sua vida sexual estava morna, que tinha muita preguiça de tirar a roupa. Nossos dois Neys mentiam? Isso não faz a menor diferença. Somos, eis a verdade, personagens de nós mesmos.

Lá em Passos, na minha infância... Passos é a minha infância. E parte da adolescência. Passos é a minha vida, mas isso não interessa agora. Enfim, lá havia um garoto, Tiãozinho, goleiro nato e frangueiro. Se o elogiávamos – bravo, Tião! – por agarrar uma bola, ele se atirava no campo. Esclareço. Alguém dava um chutão e Tiãozinho encaixava a bola sem precisar fazer movimento nenhum, um petardo direcionado aos seus braços. Era nessa hora que, aplaudido, ele pulava no chão. Grande Tiãozinho, ator de um único papel, mas ouso dizer, do quilate do Selton Mello, nosso conterrâneo.

Por falar no Selton, a família dele é de artistas. Seu tio, Silas, fez muitas peças com o histórico grupo Alfa, uma turma que não só atuava, como também escrevia boas peças sobre a “Ardeia”. Além do mais, muitos eram (alguns ainda são) professores, logo influenciaram um bando de garotos, eu entre eles. Me lembro do badalado diretor Gabriel Vilela, nascido no Carmo do Rio Claro, cidade vizinha a Passos, dizer que sua paixão pelo teatro teve início ou foi reforçada ao ver nosso maior ator, Gustavo Lemos, o Gugu, atuar em “O Inspetor Geral” (Gogol), dirigido pelo Reinaldo Fonseca, um dos que alimentaram minha cabecinha com migalhas da arte. Outro tio do Selton, Stanley (a letra “S” foi patenteada pela família, só faltou serem Silva), vestia-se de palhaço durante o Carnaval e era a alegria da garotada, mas não só dela. Stanley, a quem eu procurava para uma conversa logo que chegava à cidade, era exímio imitador. Uma de suas melhores imitações era a de um primo de mamãe, Dirceu, que, não sei bem por que, tinha uma voz rouca, provavelmente consequência de alguma cirurgia. Dona Haydée adorava esse primo e, quando visitada por ele, preparava um prato especial, sempre o mesmo. Meu pai morria por aquela comida que só dava o ar de sua graça naquela ocasião rara. O que ele fazia para contornar o problema? Pedia ao Stanley que passasse um trote em minha mãe imitando o primo e marcando um almoço para o dia seguinte. Mesa posta, papai lambia os beiços, enquanto mamãe cultivava uma raiva pelo bolo recebido. Raiva passageira, no outro dia já tinha se esquecido de tudo, rindo da molecagem do marido e do Stanley.

Tínhamos um vizinho que trabalhava numa loja de eletrodomésticos e, um dia, ao chegar para almoçar, me viu, distraído e assobiando – eu era de assobios –, sentado na escada de minha casa. Aproximou-se e perguntou se não compraríamos uma TV para torcer pela seleção canarinho na Copa de 1970 que estava por acontecer. Olhei bem para ele e disse que sim, inclusive minha mãe havia me pedido para passar na loja e resolver esse assunto. Um parêntese: eu tinha oito anos. Ele não se importou com minha idade, anotou a encomenda e mandou entregar, no final da tarde, uma enorme Telefunken valvulada. Minha mãe não se fez de rogada e nem se chateou com a atitude de um pirralho e de um vendedor sem vergonha, instalou a danada e, bem, a vida a partir daí foi novela, futebol, a Copa, a grande Copa, um punhado de campeonatos que acompanhei, programas de auditório, o básico dos poucos canais existentes. No início, ao assistir às novelas, eu pensava que, enquanto acompanhava a vida de umas pessoas, elas acompanhavam a minha. Todos estávamos atuando – ou, ao contrário, todos estávamos ali, na real. Acho que a tecnologia de hoje nos levou a esse ponto.

13.1.25

As férias dos desacontecimentos

 Muita coisa aconteceu durante esse meu período de férias, embora as mais importantes estejam no rol do desacontecimento. Um cachorro que conheço superficialmente, Dado, foi minha companhia durante uma longa caminhada. Quer dizer, num percurso de cinco quilômetros, ele foi comigo até o terceiro e me abandonou do mesmo modo que se juntara a mim. Observei galinhas e galos, pavões e pavoas. Todos os dias em que estive no campo, um canarinho pousou numa árvore bem próxima de onde nos reuníamos. Descobriu-se depois que uma fêmea vivia num ninho perto dali. Formavam um casal e pareciam dialogar. Será que ela dizia para ele ir à padaria comprar pães, não muito clarinhos, tampouco aquele esturricado do dia anterior? Quem sou eu para saber? Sei da beleza, e basta. Numa noite, expulsei três vezes um besouro do meu quarto. O mesmo? Prefiro acreditar que sim. Vou além: ele queria me dizer alguma coisa, que recusei a saber qual era. Não conto detalhes do método utilizado para me livrar dele pelo simples fato de prezar os momentos de paz nas redes sociais. Seja como for, da intenção ao fato, todos sabem, vai uma grande distância, e o besouro só não voltou uma quarta vez porque me impus o isolamento radical, fechando o vitrô e, como ninguém é de ferro, ligando o ventilador.





Esse mundo bucólico me fez rascunhar um poema, logo eu cuja intimidade com a natureza ficou na infância, no Gordurinha, a fazenda da minha avó. De todo modo, gosto do silêncio e, enredado nele, de ler. Li muito, o que para mim não é um desacontecimento, mas para muita gente é. Para que serve a leitura, se pergunta o utilitarista, acumulador de dinheiro e consumidor contumaz de uísques, pílulas e insônias.

Embora o ano novo não me reserve grandes ilusões, ao contrário, será um dos mais complicados, minhas palpitações serenaram, me deixando descansar. O corpo e a mente sabem se dosar. No meu caso, tudo se dá sem o auxílio desses remédios ditos milagrosos, o que me afasta do interesse da indústria farmacêutica. Quer dizer, consumo cápsulas para o sangue fluir melhor e, ao contrário dos negacionistas, vacinas para me proteger razoavelmente dos inimigos invisíveis soltos no mundo. No futuro, distante ou não, sucumbirei a todas as armas para manter-me em pé e lúcido. Quero seguir vivo, ainda que me filie entre os que se encantam – não é apenas respeito – com a decisão do poeta Antônio Cícero de dar adeus à vida antes que a mente se ausentasse e o corpo persistisse.

Grande parte desses acontecimentos miúdos, que nomeio negando-os, se deu ao lado de amigos e familiares. Por isso, eles tomam vulto, embora não transbordem para fora do grupo, nem mesmo para fora de mim, para ser sincero. Assim, repercute ainda no meu descompasso uma frase ouvida no sabor das cervejas, numa mesa grande, na qual era difícil ouvir o outro. Ou, numa conversa reservada, o olhar que, ao perceber o blefe da minha alegria, abandonou a galhofa e se fixou atento e solidário sobre mim. Minha alegria não é um blefe, devo esclarecer, só está temporariamente em banho-maria. Filho de meu pai, sou alegre e raso.

Comprei um vinho errado para levar ao campo. E não uma garrafa, mas duas. Isso me fez escrever o poema abaixo. Considero-o um embrião de poema – aliás, não passo de um poeta embrionário –, mas compartilho-o assim mesmo.

 

Frio Temporão

 

Enfim, o vinho é o errado,

no lugar do seco, o meio seco,

que é quase doce.

 

No penúltimo dia do ano faz frio

na serra, peço então ao vinho

sua mão companheira.

 

Amigo que aos olhos dos pais

é sempre errado, ao meu

calha também de ser,

 

mas nesse frio temporão,

bebo o inconfiável, dando-me à alegria

em tudo espalhada.