Eu não vejo a Janaína há tanto tempo que não posso dizer se continua com aquele sorriso acolhedor e olhar curioso. Já o Bão, com quem me encontro cotidianamente, não mudou nadinha e acha tudo maravilhoso. Mas, rapaz – eu o cutuco –, e essas guerras, essa carnificina infantil, esses donos do mundo destrambelhados da vida? Ele dá de ombro e responde categórico: “Bão, isso está fora do meu alcance”. Assim é ele, e talvez por isso eu o veja, finja que não o vejo e nunca dou publicidade de seu nome.
Quando falo em Janaína, sim, ela existe, é minha prima, mas
seu nome é outro – sei bem qual é, mas não vou dizê-lo. O sorriso e o olhar dela
são daquele jeitinho mesmo, ou eram há uns vinte, trinta anos, última vez que a
vi. O mundo é cruel. Já o Bão, esse não existe, é uma mistura de figuras que
encontro por aí. Para o sucesso dos doidos extremistas, é preciso que haja os
que batem palmas para eles. O Bão – também chamado de Isentão, embora de isento
não tenha nada – é o sumo dessa turma.
Vou ser bem sincero: acredito nas coisas e pessoas inexistentes. Personagem de livro, desse fico amigo. Feito aquele menino do “Tia Julia e o escrevinhador”, do Vargas Llosa. Cara legal, pô. Quer ser escritor e, como é comum aos dezoito anos, se apaixona por uma mulher mais velha – não tem quarenta e é tratada pelos familiares como um estorvo, um absurdo –, que também se apaixona por ele. Além disso, tem um bom amigo, é bem aceito pelos tios e pelos avós (até o surgimento da tia, que não é exatamente tia), vira e mexe bota panos quentes em conflitos na rádio em que trabalha, inclusive naqueles nos quais os patrões estão envolvidos. Não é um garoto legal? Aos dezoito eu era um pouco assim, é verdade que com umas doses a mais de canjebrina. E aquela mulher do “Syngué sabour –– Pedra de Paciência”, do escritor afegão Atiq Rahimi? Numa das intermináveis guerras internas no país, o marido se feriu, requerendo assim todo o tempo da esposa. Ao lado do homem sem nenhum sinal vital além de respirar e se sujar, ela vai se soltando, falando – será ouvida? – tudo aquilo que a gente imagina não ser comum a uma afegã falar: conta de sua insatisfação sexual ou de como idolatra a tia que se tornou prostituta. Não que eu tenha me apaixonado por ela, mas, puxa vida, que mulher espetacular.Agora vou contar uma vantagem. Um amigo meu – milagre sem santo, fato sem nome – me escreveu dia desses uma mensagem enigmática. “E a Elisa”? Meu Deus, quem seria? Não demorou tanto assim para a ficha cair: é uma personagem de meu conto “Chorão”, escrito recentemente. Meu amigo caiu de amores por ela. Não fosse o compromisso de escrever minhas crônicas quinzenais para a Rubem, eu aposentava o escritor que sou, pois fui laureado com um Nobel particular. O dicionário agradece a minha boa vontade com palavras esquecidas. Canjebrina, laureado: regozijai!
Há um ponto nisso tudo que não sei se vocês estão percebendo. Não guardo nomes de personagens. Nem dos meus. Conto outro caso similar ao da Elisa. Uma de minhas irmãs (não digo como foi registrada ao nascer, embora haja uma história interessante em seu batismo) me liga – não havia essas modernidades de zap e zup e sei lá mais quê – e diz as mesmas palavras do meu amigo: “E o ...?” Ela falou a alcunha (dicionário, festejai!), eu não sabia de quem se tratava, até que fui severamente repreendido: “É o seu personagem do ‘Todas as fichas’, ora essa”. Agradeci e me desculpei. Vejam que terrível, voltei a me esquecer do nome ou do apelido dele (razão das reticências um pouco acima), um sujeito legal e, não por isso nem apesar disso, viciado em jogo e prostitutas. Conheço uma pessoa parecida. Ela, além dessas características, às três da manhã, recém-chegada da rua, fritava um bife que muitas vezes me arrancou da cama e me fez descer as escadas para filar a boia. Sei bem como se chama, mas não digo como é nem lhe faço um outro batismo.